quinta-feira, 7 de abril de 2016

I. A Vida Religiosa.

Filosofia. Escrito por Friedrich Nietzsche (1844-1900). A dupla luta contra o infortúnio. Quando um infortúnio nos atinge, podemos superá-lo de dois modos: eliminando a sua causa ou modificando o efeito que produz em nossa sensibilidade; ou seja, reinterpretando o infortúnio como um bem, cuja utilidade talvez se torne visível depois. A religião e a arte ( e também a filosofia metafísica) se esforçam em produzir a mudança da sensibilidade, em parte alterando nosso juízo sobre os acontecimentos (por exemplo, com ajuda da frase: “Deus castiga a quem ama”), em parte despertando prazer na dor, na emoção mesma (ponto de partida da arte trágica). Quanto mais alguém se inclina a reinterpretar e ajustar, tanto menos pode perceber e suprimir as causas do infortúnio. O alívio e a anestesia momentâneos, tal como se faz na dor de dente, por exemplo, bastam-lhe mesmo nos sofrimentos mais graves. Quanto mais diminuir o império das religiões e de todas as artes da narcose, tanto mais os homens se preocuparão em realmente eliminar os males. O que, sem dúvida, é mau para os poetas trágicos – pois há cada vez menos matéria para a tragédia, já que o reino do destino inexorável e invencível cada vez mais se estreita – mas é ainda pior para os sacerdotes, pois até hoje eles viveram da anestesia dos males humanos. Sofrimento é conhecimento. Como gostaríamos de trocar essas falsas afirmações dos sacerdotes, segundo as quais existe um Deus que de nós exige o bem, que é guardião e testemunha de toda ação, todo momento, todo pensamento, que nos ama, que em toda desgraça deseja o melhor para nós. Como gostaríamos de trocá-las por verdades que fossem tão salutares, calmantes e benfazejas como esses erro? Mas tais verdades não existem; a filosofia pode lhes opor, no máximo aparências metafísicas (também inverdades, no fundo). A tragédia é que não podemos acreditar nesses dogmas da religião e da metafísica, quando trazemos no coração e na cabeça o rigoroso método da verdade, e que por outro lado, graças à evolução da humanidade, tornamo-nos tão delicados, suscetíveis e sofredores a ponto de precisar de meios de cura e de consolo da mais alta espécie. Dai surge o perigo de o homem se esvair em sangue ao conhecer a verdade. Lord Byron (1788-1824) exprimiu isso em versos imortais: “Sofrimento é conhecimento, aquele que mais sabem devem prantear, mais profundamente a verdade fatal. A árvore do conhecimento não é a da vida”. Para tais preocupações não há melhor remédio que evocar a solene frivolidade de Horácio (65 AC 8), ao menos para os piores instantes e eclipses da alma, e juntamente com ele dizer para si: “porque afadigas a alma pequena com desígnios eternos? Por que não deitar sob o alto plátano ou sob este pinheiro”. Mas certamente a frivolidade ou a melancolia, em qualquer grau, é melhor do que uma meia-volta ou deserção romântica, do que uma aproximação ao Cristianismo sob qualquer forma. Pois no presente estado do conhecimento já não é possível nos relacionarmos com ele sem manchar irremediavelmente nossa consciência intelectual e abandoná-la diante de nós mesmos e dos outros. Essas dores podem ser bastante penosas, mas sem dores não é possível tornar-se guia e educador da humanidade, e coitado daquele que quisesse sê-lo e não mais tivesse essa pura consciência! A verdade na religião. Durante o Iluminismo não se fez justiça à importância da religião, não há como duvidar disso. Mas igualmente é certo que na reação subsequente ao Iluminismo se foi além da justiça, ao tratar as religiões com amor e até com paixão, e ao lhes atribuir uma profunda, mesmo a mais profunda, compreensão do mundo. Compreensão que a ciência teria apenas que despir do hábito dogmático, para de forma mística possuir a “verdade”. As religiões devem, portanto, esta era a afirmação de todos os adversários do Iluminismo. Em sentido alegórico, em consideração à inteligência da massa, aquela antiquíssima sabedoria que é a sabedoria em si, na medida em que toda verdadeira ciência dos tempos modernos nos teria sempre levado em direção a ela em vez de para longe dela. De modo que entre os sábios mais antigos e todos os que os sucederam reinaria harmonia e mesmo identidade de opiniões, e o progresso dos conhecimentos, querendo-se falar de um progresso, não diria respeito à essência, mas a comunicação dela. Tal concepção da religião e da ciência é inteiramente errada, e ninguém ousaria ser partidário dela hoje em dia, se a eloquência de Arthur Schopenhauer (1788-1860) não há tivesse tomado sob sua guarda. Essa eloquência altissonante, mas que somente após uma geração alcançou seus ouvintes. Do mesmo modo que da interpretação moral religiosa queSchopenhauer fez dos homens e do mundo podemos tirar muitíssimo para a compreensão do Cristianismo e de outras religiões. É certo também que ele se enganou quanto ao valor da religião para o conhecimento. Nisso foi apenas um discípulo extremamente dócil dos mestres da ciência de seu tempo, que estimulavam o Romantismo e haviam abjurado o espírito das Luzes. Se tivesse nascido em nosso tempo, não poderia falar do senso alegórico da religião, prestaria antes homenagens à verdade, como  costumava fazer com estas palavras. Até hoje nenhuma religião, seja direta ou indiretamente, como dogma ou como alegoria, conteve uma só “verdade”. Pois foi do medo e da necessidade que cada uma delas nasceu, e por desvios da razão insinuou-se na existência; um dia, talvez, estando em perigo por causa da ciência, introduziu mentirosamente em seu sistema uma doutrina filosófica qualquer. De modo que mais tarde ela fosse ali encontrada, mas esse é um truque teológico, do tempo em que uma religião já duvida de si mesma. Esses artifícios da teologia, que de fato foram praticados muito cedo no Cristianismo, religião de uma época erudita e impregnada de filosofia, conduziram à superstição do senso alegórico. Mais ainda, porém, o hábitos de os filósofos (especialmente os mistos, os filósofospoetizantes e os artistas filosofantes) tratarem todos os sentimentos que encontravam em si mesmo como essência fundamental do homem, permitindo a seus sentimentos religiosos terem uma influência significativa na estrutura intelectual de seus sistemas. Como os filósofos muitas vezes filosofaram sob a influência da tradição religiosa ou, no mínimo, sob o poder antigo e hereditário daquela “necessidade metafísica”, chegaram a teorias que de fato eram bem semelhantes às teorias religiosas judaicas, cristãs ou indianas. Semelhante tal como os filhos costumam semelhar as mães, exceto que nesse caso os pais não tinham ciência da maternidade, como às vezes acontece. Mas, na inocência de sua admiração, inventaram fábulas a respeito da semelhança de família entre as religiões e a ciência. Na realidade, entre a religião e a verdadeira ciência não existe parentesco, nem amizade ou inimizade; elas habitam planetas diversos. Toda filosofia que deixa brilhar, na escuridão de suas últimas perspectivas, uma cauda de cometa religiosa, torna suspeito aquilo que apresenta como ciência; tudo é, presumivelmente, também religião, ainda que sob os enfeites da ciência. De resto, se todos os povos concordassem acerca de determinadas coisas religiosas, por exemplo, acerca da existência de um deus (o que não sucede neste ponto particular, diga-se de passagem), isso seria apenas um argumento contrário às coisas afirmadas, por exemplos, a existência de um deus; o sendo entre os povos e mesmo o senso entre os homens só pode justamente ser tido como uma tolice. Não existe absolutamente um consenso de todos os sábios em relação a uma coisa sequer, exceto aquilo de que falam os versos de Johann Goethe (1749-1832): “Os mais sábios de todos os tempos. Sorriem, acenam e estão de acordo. É tolice esperar a melhora dos tolos! Filhos da sabedoria, façam tolos dos tolos, com deve ser!”. Dito em verso nem rima, e aplicado a nosso caso o consenso entre os povos é uma tolice. Do Livro Humano Demasiado Humano. Ano da primeira publicação 1878. Abraço. Davi.

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