Religião
Afro-brasileira. O Candomblé da Bahia – Rito Nago. Tradução de Maria Isaura
Pereira de Queiroz (1918-2018). Capítulo II. O ESPAÇO E O TEMPLO SAGRADO V. Segundo a opinião
dos próprios membros dos candomblés mais tradicionais, é a religião católica
que explica a ligação entre Oxalá e a sexta-feira. Oxalá é o filho do grande
deus Olorun. Seu equivalente católico é Jesus Cristo, e Jesus Cristo morreu
numa sexta-feira. Os africanos de Porto Alegre festejam-no, ao contrário, no
domingo. E todavia me derem razão análoga: o domingo é o dia da missa. Nos dois
casos, a situação de Oxalá durante a semana é determinada por sua equivalência
com Cristo. Portanto, para a Bahia, a sexta-feira é o dia do culto do céu.
Sábado é o dia da água em forma dupla: de água salgada com Yemanjá e de água
doce com Oxun. A gente da Bahia as reúne facilmente num mesmo culto. É assim
que a festa da Purificação, que é consagrada a Oxun, é também a do presente de
Yemanjá, pelo menos num dos candomblés derivados do chamado “Língua de Vaca”.
Entre os cânticos recolhidos no decorrer da oferenda à deusa do mar, notei um
que é de adoração à deusa da água doce. Iê – iê – quêê – êêdêê. Ê iê – ê minha xau
êlê. Onde mora iê – iêê. Ora iê ê Oxun. Finalmente o domingo reúne uma mesma
adoração Todos os Orixá, os que foram celebrados no decorrer da semana e
aqueles que nela não encontraram lugar. No interior de um mesmo dia, há pois
como que uma harmonia entre as divindades que reúne. Mas encontrarem também uma
ordem lógica se passarmos à sucessão dos dias da semana? Os escravos que vieram
para o Brasil estavam habituados a semana de quatro dias e, devendo se adaptar
a semana de sete dias, redistribuíram seus deuses de modo diferente. É claro que tal não se deu sem confusões, o que explica
as variações encontradas de cidade para cidade. Poder-se-ia seguir uma ordem
genealógica, e encontramos efetivamente fragmentos dela: a quarta-feira liga
marido e mulher, Xangô e Yansan; a quinta-feira, dois irmãos, Oxossi e Ogun.
Mas Nanan é a mãe de Omolú e encontra-se colocada depois de seu fi1ho. Oxalá é
o pai de Yemanjá, que o segue imediatamente na semana; contudo, todos os filhos
de Yemanjá se situam muito antes dela. A ordem da adoração não segue, pois, a
dos casamentos, dos nascimentos e das fraternidades divinas· Poder-se-ia supor
que a importância é dada aos quatro elementos, que efetivamente se encontram em
nossa classificação: a terra (segunda-feira), o fogo (quarta-feira), o ar
(sexta-feira) e a água (sábado). Aos quais se juntaria a sociedade dos homens (quinta-feira),
cortando os quatro elementos em dois casais ou pares divinos, como se a
sociedade humana se encontrasse em sua intersecção. Mas ainda aqui deparamo-nos
com uma objeção que torna esta interpretação difícil de sustentar, e é que o
primeiro par está separado em dois pela terça-feira, na qual se presta
homenagem a uma divindade da água e ao deus que transporta a água da terra até
o céu. Uma terceira possibilidade seria considerar que a ordem de distribuição
dos Orixá obedece a um plano progressivo, que nos levaria pouco a pouco do
homem suplicante ao deus que abençoa, e parece mesmo que, em certa medida, aqueles
que organizaram o calendário das festas teriam pensado nisso. A divisão seria
então em duas
séries de três dias, separadas muito naturalmente por um dia de transição: Três
dias para as relações entre os homens e os deuses, isto é: segunda-feira,
consagrada às divindades que iniciam o tempo; terça-feira, consagrada às
divindades que intercedem pelos vivos; quarta-feira, àquelas que punem os
homens quando não se desempenham de seus deveres religiosos, apesar das
intercessões na Bahia como na África, efetivamente, a morte pelo raio é
considerada castigo e punição de más ações). O fim da semana seria consagrado
às divindades cujo caminho nos foi aberto por Exu, até os quais Oxun marê levou
nossas orações, e que não aturam nossa falta de fé ou nossa infidelidade:
deuses do céu, do mar, dos rios, conjunto dos Orixá. A quinta-feira forma realmente
uma transição entre dois grupos, pois reúne divindades ligadas aos homens que,
na terra, rezam, celebram cultos, organizados em clãs de caçadores ou castas de
ferreiros. Mas ainda assim há qualquer coisa que nos atrapalha neste tipo de
organização, o último grupo, das . divindades das águas, aparece depois do das
divindades do céu; Oxalá estaria muito mais no seu lugar no sábado, para que a
gradação fosse mais marcada. Das divindades sociológicas passar-se-ia para as
das águas, que ainda tocam a sociedade na medida em que a Bahia é cidade de
marinheiros e de pescadores, depois para as do céu, mais elevadas de todas e
que, no domingo, presidiriam à reunião de todos os Orixá. Sente-se que a
influência do catolicismo ambiente trouxe aqui um elemento de perturbação,
pois, sem aquela única mudança, esta ordem seria uma ordem lógica. Na África,
os quatro dias da semana, se ligam aos quatro pontos cardeais: o primeiro a
leste, onde habita Exú. O segundo ao norte, onde habita Ogun. O terceiro a
oeste, onde habita Xangô. O quarto ao sul, onde habita Oxalá. E a ordem de sua
distribuição é a mesma das filhas de santo dançando em torno do poste sagrado.
Ora, encontramos justamente na Bahia a ordem africana, com algumas
complicações, como nos mostra o exemplo do candomblé de Opo Afonjá. A segunda-feira
é o dia de Exú e de Omolú. A terça-feira é o dia de Ogun, de Nanan Buruku e de
Oxunmarê. A quarta-feira é o dia de Xangô e de sua mulher Yansan, que também
lhe é associada na região yoruba. A quinta-feira é o dia de Oxossi. A sexta-feira
é o dia de Oxalá. O sábado é o dia de Yemanjá e de Oxun. A distribuição dos
Orixá segundo os dias da semana, com exceção da quinta-feira e do sábado que
constituem os dias suplementares da semana ocidental, segue exatamente a
distribuição dos deuses africanos: Exú, Ogun, Xangô, Obatalá. Não seria, pois,
o acaso dos acontecimentos, mas um plano teológico que teria inspirado os afro-brasileiros.
Seja como for, o que para nós é importante é que cada dia tem sua coloração
religiosa para definir o tempo sagrado, acarretando uma diversidade
correspondente, a dos rituais privados. Os estudos antigos sobre os candomblés
ficaram hipnotizados pelas grandes festas públicas; ora, estas deixam escapar o
que me parece realmente essencial, a profundidade da influência que a religião
africana exerce sobre seus membros. Que se diria de uma descrição do
catolicismo que se contentasse em narrar todos os pormenores da missa, deixando
na sombra os comportamentos cotidianos dos fiéis? O culto individual ou
doméstico ocupa, entre os africanos da Bahia, lugar infinitamente maior do que
o culto público. Começa-se agora a compreendê-lo, ao que parece, e os livros
mais recentes trazem já certo número de dados sôbre o assunto, ainda muito
incompletos e não muito aprofundados. Cada filha de santo tem o seu Orixá, o
qual está ligado a um dia da semana; nesse dia, deve ela prestar-lhe culto articular.
Além de se abster de qualquer relação sexual, renovará a água ou as oferendas
de seu pegi doméstico. Pois toda filha de santo possui num canto de sua casa, o
altar consagrado à divindade de sua cabeça. Assim, a sucessão dos dias está
marcada por toda uma série de "obrigações", como se diz na Bahia, por
tabus e gestos sacramentais. Mas que, em cada dia que se renova, estão a cargo
de pessoas diferentes. Eis a cidade diante de nós, com suas vielas que se
despenham morro abaixo, casas pintadas de vermelho sangue, amarelo dourado,
azul rei, pátios barulhentos formigando de crianças seminuas. Pode-se assegurar
que a qualquer momento numa dessas ruas, numa dessas casas, no fundo de um desses
pátios, uma filha de santo está em vias de cumprir seus deveres religiosos. Cada
dia é uma que o faz, de acordo com o Orixá que possui. Podem se conhecer umas
às outras, podem se ignorar; podem habitar no mesmo bairro ou em bairros
diferentes: seus gestos não deixam de ser complementares. Pois necessitamos que
todas as divindades nos sejam favoráveis e, para tanto, é preciso que cada
santo tenha seu rebanho diligente de filhos que, no dia consagrado e para o bem
comum de todos os descendentes de africanos, desempenhe exatamente os deveres
do culto privado. Talvez nossa tentativa de querer encontrar uma ordem de
distribuição dos Orixá ao longo dos dias da semana seja um pouco ridícula. Pois
o que conta é unicamente isto, esta complementaridade de gestos e de
"obrigações" pessoais para o bem comum, a fim de que o conjunto de deuses
fiquem satisfeito com os fiéis e lhes agradeça, enviando-lhes sua bênção. A
ordem das adorações tem pequena importância; o que importa é que todos os
deuses recebam, no fim de contas, o que lhes é devido. Eis porque cada dia
certo número de yaos, de ogans e também de babalaos, etc., celebram seus Orixá.
O Orixá correspondente àquele dia, de
tal modo que cada qual faça suas oferendas numa data fixa, constituindo a
semana, toda ela, uma única e mesma adoração. Mas além dos pegi individuas há,
no pegi do candomblé, pedras que durante o bori ou a iniciação foram postas em
relação com os membros da seita ou foram "feitas" ao mesmo tempo que eles.
Por sua vez estas pedras, a fim de não perderem seu poder de encarnação, devem
receber alimentos determinados. Uma série de cerimônias privadas tem lugar
também no interior do candomblé, que poderia se estender como as outras ao
longo da semana, mas que tende a se concentrar num dia determinado, geralmente
a sexta-feira, em que se renovam as oferendas do pegi. É a cerimônia de ossé
quando se trata de oferendas para Oxalá, Ogun, etc. E de amalá quando se trata
de oferecer a Xangô seu prato preferido de quiabos. Neste caso de concentração
dos cultos privados num só dia, ou mais exatamente, num quarto de dia de
dezoito às vinte e uma horas, têm lugar. 1) consulta aos búzios para saber qual
a filha de santo – filha de Yemanjá, filha de Oxossi, etc – que deve ser
encarregada de atirar fora as oferendas antigas, que os deuses já comeram; 2)
segunda consulta para saber em que lugar devem ser jogadas: no mar, no meio de
um caminho, no mato, etc. 3) preparação das novas oferendas. 4) deposição das
novas oferendas diante das pedras divinas, onde ficarão uma semana, até o ossé
ou amalá seguintes. Não é tudo; uma vez por ano, escolhendo-se, bem entendido,
o dia do Orixá que é o "dono da cabeça", deve-se oferecer à divindade
um sacrifício sangrento no interior do candomblé. Pois o sangue, muito mais do
que o alimento, é o princípio da vida, e as divindades não podem passar sem ele.
A importância das obrigações, assim como sua quantidade, varia, bem entendido,
com o lugar que o fiel ocupa na seita. As filhas de santo têm mais deveres, por
exemplo, do que os ogans. Uma filha de Xangô que conheço ia todas as terças-feiras
ao santuário passar a noite e preparar, na quarta-feira de manhã, os alimentos
de sua divindade. Na primeira quarta-feira de cada mês, se desincumbia de uma
"obrigação" maior e, no dia 29 de junho, finalmente, oferecia um
sacrifício. Os oba não vão ao santuário toda a semana, mas somente uma vez por
mês, e além do mais, oferecem o sacrifício anual. Finalmente, os ogans não têm
que oferecer senão o sacrifício anual; nos dias de seus santos, fazem as
oferendas no interior das próprias casas onde, pode haver também, além destas
cerimônias obrigatórias, "obrigações extraordinárias", por exemplo
quando se faz promessa a uma divindade para obter uma graça ou quando se quer
agradecer-lhe a graça concedida. Nos dois casos, a obrigação dura o dia inteiro,
com sacrifício feito de manhãzinha e danças rituais à noite. Além disso, os
amigos que acompanham a pessoa que oferece o sacrifício não podem se retirar,
têm de ficar no candomblé até terminada a festa. Como se vê, a duração é uma
continuidade temporal, na qual todos os momentos têm valor místico; mas sobre este
fundo contínuo, embora heterogêneo, destacam-se momentos de maior consagração.
A duração religiosa contínua é formada pela multiplicidade dos cultos
individuais que se sucedem dia após dia. Os momentos de consagração mais
pronunciada, que se destacam nesta continuidade, são os cultos privados das
sextas-feiras, por exemplo, feitos no candomblé, no interior do pegi comum. Depois
ainda as festas privadas dos aniversários dos membros das seitas, que oferecem
sacrifícios sangrentos às suas pedras, festas que podem se suceder de mês em
mês, e finalmente, em terceiro lugar, as grandes cerimônias anuais da seita,
que são públicas e marcam o ponto mais alto deste continuum, com a
representação dramática constituída pelas danças extáticas. Vem-nos a tentação
de definir o candomblé como uma sociedade de auxílio mútuo. Cada filha de santo
só tem obrigações para com o seu Orixá unicamente, mas não os desempenha somente
para si mesma, e sim também para as filhas que pertencem a outras divindades,
contando, naturalmente, com a reciprocidade do favor. Espera, com efeito, que
também as outras se desempenhem de suas obrigações respectivas durante os
outros dias da semana, para que o benefício destes gestos, nos quais não toma
parte, se derrame sobre o santuário. A sociedade se organiza, pois, à imagem do
tempo, do mesmo modo que o santuário, como vimos, é a imagem do cosmos. A
continuidade religiosa é formada pela complementaridade dos ritos cotidianos e
sucessivos, pela heterogeneidade destes momentos do tempo numa unidade superior
que os une para formar um só todo. Do mesmo modo, a comunhão social repousa, em
última análise, nesta diversidade das funções litúrgicas, cada filha de santo
trabalhando para as outras, como as outras trabalham para ela. Resulta que
nenhuma pode dispensar as companheiras. A solidariedade mística deriva da
divisão do trabalho religioso. E é preciso acrescentar que a distinção célebre
de Georges Gurvitch (1864-1965), entre comunidade e comunhão, esses dois graus
de solidariedade, corresponde em nossa categoria do tempo sagrado. Os momentos
de mais baixa ou de mais intensa consagração. A comunidade se realiza na
complementaridade dos gestos individuais; acompanha a continuidade dos dias da
semana e é um efeito desta continuidade. A comunhão tem lugar na unificação de
todos os êxtases particulares, de todas as filhas possuídas por seus Orixá, no
decorrer da cerimônia anual pública, isto é, no momento da mais alta
consagração do tempo. Mas os conceitos sociológicos sempre se reduzem a
conceitos religiosos. O social é fruto do místico ou, como indica Marcel
Griaule (1898-1956), a organização material reflete a organização espiritual. Página
nº 133. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Abraços. Davi.
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