quarta-feira, 27 de maio de 2020

O ESPAÇO E O TEMPLO SAGRADO V


Religião Afro-brasileira. O Candomblé da Bahia – Rito Nago. Tradução de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018). Capítulo II. O ESPAÇO E O TEMPLO SAGRADO V. Segundo a opinião dos próprios membros dos candomblés mais tradicionais, é a religião católica que explica a ligação entre Oxalá e a sexta-feira. Oxalá é o filho do grande deus Olorun. Seu equivalente católico é Jesus Cristo, e Jesus Cristo morreu numa sexta-feira. Os africanos de Porto Alegre festejam-no, ao contrário, no domingo. E todavia me derem razão análoga: o domingo é o dia da missa. Nos dois casos, a situação de Oxalá durante a semana é determinada por sua equivalência com Cristo. Portanto, para a Bahia, a sexta-feira é o dia do culto do céu. Sábado é o dia da água em forma dupla: de água salgada com Yemanjá e de água doce com Oxun. A gente da Bahia as reúne facilmente num mesmo culto. É assim que a festa da Purificação, que é consagrada a Oxun, é também a do presente de Yemanjá, pelo menos num dos candomblés derivados do chamado “Língua de Vaca”. Entre os cânticos recolhidos no decorrer da oferenda à deusa do mar, notei um que é de adoração à deusa da água doce. Iê – iê – quêê – êêdêê. Ê iê – ê minha xau êlê. Onde mora iê – iêê. Ora iê ê Oxun. Finalmente o domingo reúne uma mesma adoração Todos os Orixá, os que foram celebrados no decorrer da semana e aqueles que nela não encontraram lugar. No interior de um mesmo dia, há pois como que uma harmonia entre as divindades que reúne. Mas encontrarem também uma ordem lógica se passarmos à sucessão dos dias da semana? Os escravos que vieram para o Brasil estavam habituados a semana de quatro dias e, devendo se adaptar a semana de sete dias, redistribuíram seus deuses de modo diferente. É claro que tal não se deu sem confusões, o que explica as variações encontradas de cidade para cidade. Poder-se-ia seguir uma ordem genealógica, e encontramos efetivamente fragmentos dela: a quarta-feira liga marido e mulher, Xangô e Yansan; a quinta-feira, dois irmãos, Oxossi e Ogun. Mas Nanan é a mãe de Omolú e encontra-se colocada depois de seu fi1ho. Oxalá é o pai de Yemanjá, que o segue imediatamente na semana; contudo, todos os filhos de Yemanjá se situam muito antes dela. A ordem da adoração não segue, pois, a dos casamentos, dos nascimentos e das fraternidades divinas· Poder-se-ia supor que a importância é dada aos quatro elementos, que efetivamente se encontram em nossa classificação: a terra (segunda-feira), o fogo (quarta-feira), o ar (sexta-feira) e a água (sábado). Aos quais se juntaria a sociedade dos homens (quinta-feira), cortando os quatro elementos em dois casais ou pares divinos, como se a sociedade humana se encontrasse em sua intersecção. Mas ainda aqui deparamo-nos com uma objeção que torna esta interpretação difícil de sustentar, e é que o primeiro par está separado em dois pela terça-feira, na qual se presta homenagem a uma divindade da água e ao deus que transporta a água da terra até o céu. Uma terceira possibilidade seria considerar que a ordem de distribuição dos Orixá obedece a um plano progressivo, que nos levaria pouco a pouco do homem suplicante ao deus que abençoa, e parece mesmo que, em certa medida, aqueles que organizaram o calendário das festas teriam pensado nisso. A divisão seria então em duas séries de três dias, separadas muito naturalmente por um dia de transição: Três dias para as relações entre os homens e os deuses, isto é: segunda-feira, consagrada às divindades que iniciam o tempo; terça-feira, consagrada às divindades que intercedem pelos vivos; quarta-feira, àquelas que punem os homens quando não se desempenham de seus deveres religiosos, apesar das intercessões na Bahia como na África, efetivamente, a morte pelo raio é considerada castigo e punição de más ações). O fim da semana seria consagrado às divindades cujo caminho nos foi aberto por Exu, até os quais Oxun marê levou nossas orações, e que não aturam nossa falta de fé ou nossa infidelidade: deuses do céu, do mar, dos rios, conjunto dos Orixá. A quinta-feira forma realmente uma transição entre dois grupos, pois reúne divindades ligadas aos homens que, na terra, rezam, celebram cultos, organizados em clãs de caçadores ou castas de ferreiros. Mas ainda assim há qualquer coisa que nos atrapalha neste tipo de organização, o último grupo, das . divindades das águas, aparece depois do das divindades do céu; Oxalá estaria muito mais no seu lugar no sábado, para que a gradação fosse mais marcada. Das divindades sociológicas passar-se-ia para as das águas, que ainda tocam a sociedade na medida em que a Bahia é cidade de marinheiros e de pescadores, depois para as do céu, mais elevadas de todas e que, no domingo, presidiriam à reunião de todos os Orixá. Sente-se que a influência do catolicismo ambiente trouxe aqui um elemento de perturbação, pois, sem aquela única mudança, esta ordem seria uma ordem lógica. Na África, os quatro dias da semana, se ligam aos quatro pontos cardeais: o primeiro a leste, onde habita Exú. O segundo ao norte, onde habita Ogun. O terceiro a oeste, onde habita Xangô. O quarto ao sul, onde habita Oxalá. E a ordem de sua distribuição é a mesma das filhas de santo dançando em torno do poste sagrado. Ora, encontramos justamente na Bahia a ordem africana, com algumas complicações, como nos mostra o exemplo do candomblé de Opo Afonjá. A segunda-feira é o dia de Exú e de Omolú. A terça-feira é o dia de Ogun, de Nanan Buruku e de Oxunmarê. A quarta-feira é o dia de Xangô e de sua mulher Yansan, que também lhe é associada na região yoruba. A quinta-feira é o dia de Oxossi. A sexta-feira é o dia de Oxalá. O sábado é o dia de Yemanjá e de Oxun. A distribuição dos Orixá segundo os dias da semana, com exceção da quinta-feira e do sábado que constituem os dias suplementares da semana ocidental, segue exatamente a distribuição dos deuses africanos: Exú, Ogun, Xangô, Obatalá. Não seria, pois, o acaso dos acontecimentos, mas um plano teológico que teria inspirado os afro-brasileiros. Seja como for, o que para nós é importante é que cada dia tem sua coloração religiosa para definir o tempo sagrado, acarretando uma diversidade correspondente, a dos rituais privados. Os estudos antigos sobre os candomblés ficaram hipnotizados pelas grandes festas públicas; ora, estas deixam escapar o que me parece realmente essencial, a profundidade da influência que a religião africana exerce sobre seus membros. Que se diria de uma descrição do catolicismo que se contentasse em narrar todos os pormenores da missa, deixando na sombra os comportamentos cotidianos dos fiéis? O culto individual ou doméstico ocupa, entre os africanos da Bahia, lugar infinitamente maior do que o culto público. Começa-se agora a compreendê-lo, ao que parece, e os livros mais recentes trazem já certo número de dados sôbre o assunto, ainda muito incompletos e não muito aprofundados. Cada filha de santo tem o seu Orixá, o qual está ligado a um dia da semana; nesse dia, deve ela prestar-lhe culto articular. Além de se abster de qualquer relação sexual, renovará a água ou as oferendas de seu pegi doméstico. Pois toda filha de santo possui num canto de sua casa, o altar consagrado à divindade de sua cabeça. Assim, a sucessão dos dias está marcada por toda uma série de "obrigações", como se diz na Bahia, por tabus e gestos sacramentais. Mas que, em cada dia que se renova, estão a cargo de pessoas diferentes. Eis a cidade diante de nós, com suas vielas que se despenham morro abaixo, casas pintadas de vermelho sangue, amarelo dourado, azul rei, pátios barulhentos formigando de crianças seminuas. Pode-se assegurar que a qualquer momento numa dessas ruas, numa dessas casas, no fundo de um desses pátios, uma filha de santo está em vias de cumprir seus deveres religiosos. Cada dia é uma que o faz, de acordo com o Orixá que possui. Podem se conhecer umas às outras, podem se ignorar; podem habitar no mesmo bairro ou em bairros diferentes: seus gestos não deixam de ser complementares. Pois necessitamos que todas as divindades nos sejam favoráveis e, para tanto, é preciso que cada santo tenha seu rebanho diligente de filhos que, no dia consagrado e para o bem comum de todos os descendentes de africanos, desempenhe exatamente os deveres do culto privado. Talvez nossa tentativa de querer encontrar uma ordem de distribuição dos Orixá ao longo dos dias da semana seja um pouco ridícula. Pois o que conta é unicamente isto, esta complementaridade de gestos e de "obrigações" pessoais para o bem comum, a fim de que o conjunto de deuses fiquem satisfeito com os fiéis e lhes agradeça, enviando-lhes sua bênção. A ordem das adorações tem pequena importância; o que importa é que todos os deuses recebam, no fim de contas, o que lhes é devido. Eis porque cada dia certo número de yaos, de ogans e também de babalaos, etc., celebram seus Orixá.  O Orixá correspondente àquele dia, de tal modo que cada qual faça suas oferendas numa data fixa, constituindo a semana, toda ela, uma única e mesma adoração. Mas além dos pegi individuas há, no pegi do candomblé, pedras que durante o bori ou a iniciação foram postas em relação com os membros da seita ou foram "feitas" ao mesmo tempo que eles. Por sua vez estas pedras, a fim de não perderem seu poder de encarnação, devem receber alimentos determinados. Uma série de cerimônias privadas tem lugar também no interior do candomblé, que poderia se estender como as outras ao longo da semana, mas que tende a se concentrar num dia determinado, geralmente a sexta-feira, em que se renovam as oferendas do pegi. É a cerimônia de ossé quando se trata de oferendas para Oxalá, Ogun, etc. E de amalá quando se trata de oferecer a Xangô seu prato preferido de quiabos. Neste caso de concentração dos cultos privados num só dia, ou mais exatamente, num quarto de dia de dezoito às vinte e uma horas, têm lugar. 1) consulta aos búzios para saber qual a filha de santo – filha de Yemanjá, filha de Oxossi, etc – que deve ser encarregada de atirar fora as oferendas antigas, que os deuses já comeram; 2) segunda consulta para saber em que lugar devem ser jogadas: no mar, no meio de um caminho, no mato, etc. 3) preparação das novas oferendas. 4) deposição das novas oferendas diante das pedras divinas, onde ficarão uma semana, até o ossé ou amalá seguintes. Não é tudo; uma vez por ano, escolhendo-se, bem entendido, o dia do Orixá que é o "dono da cabeça", deve-se oferecer à divindade um sacrifício sangrento no interior do candomblé. Pois o sangue, muito mais do que o alimento, é o princípio da vida, e as divindades não podem passar sem ele. A importância das obrigações, assim como sua quantidade, varia, bem entendido, com o lugar que o fiel ocupa na seita. As filhas de santo têm mais deveres, por exemplo, do que os ogans. Uma filha de Xangô que conheço ia todas as terças-feiras ao santuário passar a noite e preparar, na quarta-feira de manhã, os alimentos de sua divindade. Na primeira quarta-feira de cada mês, se desincumbia de uma "obrigação" maior e, no dia 29 de junho, finalmente, oferecia um sacrifício. Os oba não vão ao santuário toda a semana, mas somente uma vez por mês, e além do mais, oferecem o sacrifício anual. Finalmente, os ogans não têm que oferecer senão o sacrifício anual; nos dias de seus santos, fazem as oferendas no interior das próprias casas onde, pode haver também, além destas cerimônias obrigatórias, "obrigações extraordinárias", por exemplo quando se faz promessa a uma divindade para obter uma graça ou quando se quer agradecer-lhe a graça concedida. Nos dois casos, a obrigação dura o dia inteiro, com sacrifício feito de manhãzinha e danças rituais à noite. Além disso, os amigos que acompanham a pessoa que oferece o sacrifício não podem se retirar, têm de ficar no candomblé até terminada a festa. Como se vê, a duração é uma continuidade temporal, na qual todos os momentos têm valor místico; mas sobre este fundo contínuo, embora heterogêneo, destacam-se momentos de maior consagração. A duração religiosa contínua é formada pela multiplicidade dos cultos individuais que se sucedem dia após dia. Os momentos de consagração mais pronunciada, que se destacam nesta continuidade, são os cultos privados das sextas-feiras, por exemplo, feitos no candomblé, no interior do pegi comum. Depois ainda as festas privadas dos aniversários dos membros das seitas, que oferecem sacrifícios sangrentos às suas pedras, festas que podem se suceder de mês em mês, e finalmente, em terceiro lugar, as grandes cerimônias anuais da seita, que são públicas e marcam o ponto mais alto deste continuum, com a representação dramática constituída pelas danças extáticas. Vem-nos a tentação de definir o candomblé como uma sociedade de auxílio mútuo. Cada filha de santo só tem obrigações para com o seu Orixá unicamente, mas não os desempenha somente para si mesma, e sim também para as filhas que pertencem a outras divindades, contando, naturalmente, com a reciprocidade do favor. Espera, com efeito, que também as outras se desempenhem de suas obrigações respectivas durante os outros dias da semana, para que o benefício destes gestos, nos quais não toma parte, se derrame sobre o santuário. A sociedade se organiza, pois, à imagem do tempo, do mesmo modo que o santuário, como vimos, é a imagem do cosmos. A continuidade religiosa é formada pela complementaridade dos ritos cotidianos e sucessivos, pela heterogeneidade destes momentos do tempo numa unidade superior que os une para formar um só todo. Do mesmo modo, a comunhão social repousa, em última análise, nesta diversidade das funções litúrgicas, cada filha de santo trabalhando para as outras, como as outras trabalham para ela. Resulta que nenhuma pode dispensar as companheiras. A solidariedade mística deriva da divisão do trabalho religioso. E é preciso acrescentar que a distinção célebre de Georges Gurvitch (1864-1965), entre comunidade e comunhão, esses dois graus de solidariedade, corresponde em nossa categoria do tempo sagrado. Os momentos de mais baixa ou de mais intensa consagração. A comunidade se realiza na complementaridade dos gestos individuais; acompanha a continuidade dos dias da semana e é um efeito desta continuidade. A comunhão tem lugar na unificação de todos os êxtases particulares, de todas as filhas possuídas por seus Orixá, no decorrer da cerimônia anual pública, isto é, no momento da mais alta consagração do tempo. Mas os conceitos sociológicos sempre se reduzem a conceitos religiosos. O social é fruto do místico ou, como indica Marcel Griaule (1898-1956), a organização material reflete a organização espiritual. Página nº 133. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Abraços. Davi.

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