Cristianismo. www.vatican.va. EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL. QUERIDA AMAZÔNIA. Do Santo Padre
Francisco (1936 - ). Ao povo de Deus e a todas as pessoas de boa vontade.
Capítulo IV. UM SONHO ECLESIAL. 61. A Igreja é chamada a caminhar com os
povos da Amazónia. Na América Latina, esta caminhada teve expressões
privilegiadas, como a Conferência dos Bispos em Medellín (1968) e a sua
aplicação à Amazónia em Santarém (1972)[79];
e, depois, em Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007). O caminho
continua e o trabalho missionário, se quiser desenvolver uma Igreja com rosto
amazónico, precisa de crescer numa cultura do encontro rumo a uma «harmonia
pluriforme»[80].
Mas, para tornar possível esta encarnação da Igreja e do Evangelho, deve
ressoar incessantemente o grande anúncio missionário. O anúncio indispensável na
Amazónia 62. Perante tantas necessidades e angústias que
clamam do coração da Amazónia, é possível responder a partir de organizações
sociais, recursos técnicos, espaços de debate, programas políticos… e tudo isso
pode fazer parte da solução. Mas, como cristãos, não renunciamos à proposta de
fé que recebemos do Evangelho. Embora queiramos empenhar-nos lado a lado com
todos, não nos envergonhamos de Jesus Cristo. Para quantos O encontraram, vivem
na sua amizade e se identificam com a sua mensagem, é inevitável falar d’Ele e
levar aos outros a sua proposta de vida nova: «Ai de mim, se eu não
evangelizar!» (1 Cor 9, 16). 63. A autêntica opção
pelos mais pobres e abandonados, ao mesmo tempo que nos impele a libertá-los da
miséria material e defender os seus direitos, implica propor-lhes a amizade com
o Senhor que os promove e dignifica. Seria triste se recebessem de nós um
código de doutrinas ou um imperativo moral, mas não o grande anúncio salvífico,
aquele grito missionário que visa o coração e dá sentido a todo o resto. Nem
podemos contentar-nos com uma mensagem social. Se dermos a vida por eles, pela
justiça e a dignidade que merecem, não podemos ocultar-lhes que o fazemos
porque reconhecemos Cristo neles e porque descobrimos a imensa dignidade a eles
concedida por Deus Pai que os ama infinitamente. 64. Eles
têm direito ao anúncio do Evangelho, sobretudo àquele primeiro anúncio que se
chama querigma e «é o anúncio principal, aquele que sempre se tem de voltar a
ouvir de diferentes maneiras e aquele que sempre se tem de voltar a anunciar
duma forma ou doutra»[81].
É o anúncio de um Deus que ama infinitamente cada ser humano, que manifestou
plenamente este amor em Cristo crucificado por nós e ressuscitado na nossa
vida. Proponho voltar a ler um breve resumo deste conteúdo no capítulo IV da Exortação Christus vivit.
Este anúncio deve ressoar constantemente na Amazónia, expresso em muitas
modalidades distintas. Sem este anúncio apaixonado, cada estrutura eclesial
transformar-se-á em mais uma ONG e, assim, não responderemos ao pedido de Jesus
Cristo: «Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda a criatura» (Mc 16,
15). 65. Qualquer proposta de amadurecimento na vida cristã
precisa de ter este anúncio como eixo permanente, porque «toda a formação
cristã é, primariamente, o aprofundamento do querigma que se vai, cada vez mais
e melhor, fazendo carne»[82].
A reação fundamental a este anúncio, quando o mesmo consegue provocar um
encontro pessoal com o Senhor, é a caridade fraterna, aquele «mandamento novo
que é o primeiro, o maior, o que melhor nos identifica como discípulos»[83].
Deste modo, o querigma e o amor fraterno constituem a grande síntese de todo o
conteúdo do Evangelho, que não se pode deixar de propor na Amazónia. É o que
viveram grandes evangelizadores da América Latina como São Toríbio de Mogrovejo
ou São José de Anchieta. A enculturação.
66. Ao mesmo tempo que anuncia sem cessar o querigma, a
Igreja deve crescer na Amazónia. Para isso, não para de moldar a sua própria
identidade na escuta e diálogo com as pessoas, realidades e histórias do
território. Desta forma, ir-se-á desenvolvendo cada vez mais um processo
necessário de inculturação, que nada despreza do bem que já existe nas culturas
amazónicas, mas recebe-o e leva-o à plenitude à luz do Evangelho[84].
E também não despreza a riqueza de sabedoria cristã transmitida ao longo dos
séculos, como se pretendesse ignorar a história na qual Deus operou de várias
maneiras, porque a Igreja possui um rosto pluriforme, vista «não só da
perspetiva espacial (…), mas também da sua realidade temporal»[85].
Trata-se da Tradição autêntica da Igreja, que não é um depósito estático nem
uma peça de museu, mas a raiz duma árvore que cresce[86].
É a Tradição milenar que testemunha a ação divina no seu povo e cuja «missão é
mais a de manter vivo o fogo, do que conservar as suas cinzas»[87]. 67. São João Paulo II ensinou que a Igreja, ao
apresentar a sua proposta evangélica, «não pretende negar a autonomia da
cultura. Antes pelo contrário, nutre por ela o maior respeito», porque a
cultura «não é só sujeito de redenção e de elevação; mas pode ter também um
papel de mediação e de colaboração»[88].
E, dirigindo-se aos indígenas do Continente Americano, lembrou que «uma fé que
não se torna cultura é uma fé não de modo pleno acolhida, não inteiramente
pensada, nem com fidelidade vivida»[89].
Os desafios das culturas convidam a Igreja a uma «atitude de prudente sentido
crítico, mas também de atenção e confiança»[90]. 68. Vale a pena lembrar aqui o que afirmei na Exortação Evangelii gaudium a propósito da
inculturação: esta baseia-se na convicção de que «a graça supõe a cultura, e o
dom de Deus encarna-se na cultura de quem o recebe»[91].
Notemos que isto implica um duplo movimento: por um lado, uma dinâmica de
fecundação que permite expressar o Evangelho num lugar concreto, pois «quando
uma comunidade acolhe o anúncio da salvação, o Espírito Santo fecunda a sua
cultura com a força transformadora do Evangelho»[92];
por outro, a própria Igreja vive um caminho de receção, que a enriquece com
aquilo que o Espírito já tinha misteriosamente semeado naquela cultura. Assim,
«o Espírito Santo embeleza a Igreja, mostrando-lhe novos aspetos da Revelação e
presenteando-a com um novo rosto»[93].
Trata-se, em última instância, de permitir e incentivar a que o anúncio do
Evangelho inexaurível, comunicado «com categorias próprias da cultura onde é
anunciado, provoque uma nova síntese com essa cultura»[94]. 69. Por isso, «como podemos ver na história da Igreja, o
cristianismo não dispõe de um único modelo cultural»[95] e
«não faria justiça à lógica da encarnação pensar num cristianismo mono cultural
e monocórdico»[96].
Entretanto, o risco dos evangelizadores que chegam a um lugar é julgar que
devem não só comunicar o Evangelho, mas também a cultura em que cresceram,
esquecendo que não se trata de «impor uma determinada forma cultural, por mais
bela e antiga que seja»[97].
É necessário aceitar corajosamente a novidade do Espírito capaz de criar sempre
algo de novo com o tesouro inesgotável de Jesus Cristo, porque «a inculturação
empenha a Igreja num caminho difícil mas necessário»[98].
É verdade que, «embora estes processos sejam sempre lentos, às vezes o medo
paralisa-nos demasiado» e acabamos como «espectadores duma estagnação estéril
da Igreja»[99].
Não tenhamos medo, não cortemos as asas ao Espírito Santo. Caminhos de inculturação na
Amazónia 70. Para conseguir uma renovada inculturação do
Evangelho na Amazónia, a Igreja precisa de escutar a sua sabedoria ancestral,
voltar a dar voz aos idosos, reconhecer os valores presentes no estilo de vida
das comunidades nativas, recuperar a tempo as preciosas narrações dos povos. Na
Amazónia, já recebemos riquezas que provêm das culturas pré-colombianas, tais
«como a abertura à ação de Deus, o sentido da gratidão pelos frutos da terra, o
caráter sagrado da vida humana e a valorização da família, o sentido de
solidariedade e a corresponsabilidade no trabalho comum, a importância do
cultual, a crença em uma vida para além da terrena e tantos outros valores»[100]. 71. Neste contexto, os povos indígenas da Amazónia expressam a
autêntica qualidade de vida como um «bem viver», que implica uma harmonia
pessoal, familiar, comunitária e cósmica e manifesta-se no seu modo comunitário
de conceber a existência, na capacidade de encontrar alegria e plenitude numa
vida austera e simples, bem como no cuidado responsável da natureza que
preserva os recursos para as gerações futuras. Os povos aborígenes podem
ajudar-nos a descobrir o que é uma sobriedade feliz e, nesta linha, «têm muito
para nos ensinar»[101].
Sabem ser felizes com pouco, gozam dos pequenos dons de Deus sem acumular
tantas coisas, não destroem sem necessidade, preservam os ecossistemas e
reconhecem que a terra, ao mesmo tempo que se oferece para sustentar a sua
vida, como uma fonte generosa, tem um sentido materno que suscita respeitosa
ternura. Tudo isto deve ser valorizado e recebido na evangelização[102]. 72. Enquanto lutamos por eles e com eles, somos chamados «a ser
seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a misteriosa sabedoria
que Deus nos quer comunicar através deles»[103].
Os habitantes das cidades precisam de apreciar esta sabedoria e deixar-se
«reeducar» quanto ao consumismo ansioso e ao isolamento urbano. A própria
Igreja pode ser um veículo capaz de ajudar esta recuperação cultural numa
válida síntese com o anúncio do Evangelho. Além disso, torna-se instrumento de
caridade, na medida em que as comunidades urbanas forem não apenas missionárias
no seu ambiente, mas também acolhedoras dos pobres que chegam do interior
acossados pela miséria. É-o, igualmente, na medida em que as comunidades
estiverem próximas dos jovens migrantes para os ajudarem a integrar-se na
cidade sem cair nas suas redes de degradação. Tais ações eclesiais, que brotam
do amor, são caminhos valiosos dentro dum processo de inculturação.
73. Mas, a inculturação eleva e dá plenitude. Sem dúvida, há que
apreciar esta espiritualidade indígena da interconexão e interdependência de
todo o criado, espiritualidade de gratuidade que ama a vida como dom,
espiritualidade de sacra admiração perante a natureza que nos cumula com tanta
vida. Apesar disso, trata-se também de conseguir que esta relação com Deus
presente no cosmos se torne cada vez mais uma relação pessoal com um «Tu», que
sustenta a própria realidade e lhe quer dar um sentido, um «Tu» que nos conhece
e ama:
«Flutuam sombras de mim, madeiras
mortas.
Mas a estrela nasce sem censura
sobre as mãos deste menino, especialistas
que conquistam as águas e a noite.
Bastar-me-á saber
que Tu me conheces
inteiramente, ainda antes dos meus dias»[104].
Mas a estrela nasce sem censura
sobre as mãos deste menino, especialistas
que conquistam as águas e a noite.
Bastar-me-á saber
que Tu me conheces
inteiramente, ainda antes dos meus dias»[104].
74. De igual modo, a relação com
Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, libertador e redentor, não é
inimiga desta visão do mundo marcadamente cósmica que carateriza estes povos,
porque Ele é também o Ressuscitado que penetra todas as coisas[105].
Segundo a experiência cristã, «todas as criaturas do universo material
encontram o seu verdadeiro sentido no Verbo encarnado, porque o Filho de Deus
incorporou na sua pessoa parte do universo material, onde introduziu um gérmen
de transformação definitiva»[106].
Ele está, gloriosa e misteriosamente, presente no rio, nas árvores, nos peixes,
no vento, enquanto é o Senhor que reina sobre a criação sem perder as suas
chagas transfiguradas e, na Eucaristia, assume os elementos do mundo dando a
cada um o sentido do dom pascal. Inculturação
social e espiritual. 75. Esta inculturação,
atendendo à situação de pobreza e abandono de tantos habitantes da Amazónia,
deverá necessariamente ter um timbre marcadamente social e caraterizar-se por
uma defesa firme dos direitos humanos, fazendo resplandecer o rosto de Cristo
que «quis, com ternura especial, identificar-Se com os mais frágeis e pobres»[107].
Pois, «a partir do coração do Evangelho, reconhecemos a conexão íntima que
existe entre evangelização e promoção humana»[108],
e isto exige das comunidades cristãs um claro empenho com o Reino de justiça na
promoção dos descartados. Para isso, é sumamente importante uma adequada
formação dos agentes pastorais na doutrina social da Igreja. 76.
Ao mesmo tempo, a inculturação do Evangelho na Amazónia deve integrar melhor a
dimensão social com a espiritual, para que os mais pobres não tenham
necessidade de ir buscar fora da Igreja uma espiritualidade que dê resposta aos
anseios da sua dimensão transcendente. Naturalmente, não se trata duma
religiosidade alienante ou individualista que faça calar as exigências sociais
duma vida mais digna, mas também não se trata de mutilar a dimensão
transcendente e espiritual como se bastasse ao ser humano o desenvolvimento
material. Isto convida-nos não só a combinar as duas coisas, mas também a
ligá-las intimamente. Deste modo resplandecerá a verdadeira beleza do
Evangelho, que é plenamente humanizadora, dá plena dignidade às pessoas e aos
povos, cumula o coração e a vida inteira. Pontos de partida para uma
santidade amazónica. 77. Assim poderão nascer
testemunhos de santidade com rosto amazónico, que não sejam cópias de modelos
doutros lugares, santidade feita de encontro e dedicação, de contemplação e
serviço, de solidão acolhedora e vida comum, de jubilosa sobriedade e luta pela
justiça. Chega-se a esta santidade «cada um por seu caminho»[109],
e isto aplica-se também aos povos, onde a graça se encarna e brilha com traços
distintivos. Imaginemos uma santidade com traços amazónicos, chamada a
interpelar a Igreja universal. 78. Um processo de
inculturação, que implica caminhos não só individuais, mas também comunitários,
exige um amor ao povo cheio de respeito e compreensão. Em boa parte da
Amazónia, este processo já começou. Há mais de quarenta anos, os bispos da
Amazónia do Perú assinalavam que, em muitos dos grupos presentes naquela
região, «o sujeito de evangelização, modelado por uma cultura própria,
multiforme e mutável, está inicialmente evangelizado», pois possui «certos
traços de catolicismo popular que, embora num primeiro tempo talvez tenham sido
promovidos por agentes pastorais, atualmente são uma realidade que o povo
assumiu e até mudou o seu significado transmitindo-os de geração em geração»[110].
Não nos apressemos a qualificar como superstição ou paganismo certas expressões
religiosas que nascem, espontaneamente, da vida do povo. Antes, é necessário
saber reconhecer o trigo que cresce no meio do joio, porque, «na piedade
popular, pode-se captar a modalidade em que a fé recebida se encarnou numa
cultura e continua a transmitir-se»[111]. 79. É possível receber, de alguma forma, um símbolo indígena sem o
qualificar necessariamente como idolátrico. Um mito denso de sentido espiritual
pode ser valorizado, sem continuar a considerá-lo um extravio pagão. Algumas
festas religiosas contêm um significado sagrado e são espaços de reunião e
fraternidade, embora se exija um lento processo de purificação e maturação. Um
verdadeiro missionário procura descobrir as aspirações legítimas que passam
através das manifestações religiosas, às vezes imperfeitas, parciais ou
equivocadas, e tenta dar-lhes resposta a partir duma espiritualidade
inculturada. 80. Será, sem dúvida, uma espiritualidade
centrada no único Deus e Senhor, mas ao mesmo tempo capaz de entrar em contato
com as necessidades diárias das pessoas que procuram uma vida digna, querem
gozar as coisas belas da existência, encontrar a paz e a harmonia, resolver as
crises familiares, curar as suas doenças, ver os seus filhos crescerem felizes.
O pior perigo seria afastá-los do encontro com Cristo, apresentando-O como um
inimigo da alegria ou como alguém que é indiferente às aspirações e angústias
humanas[112].
Hoje é indispensável mostrar que a santidade não priva as pessoas de «forças,
vida e alegria»[113]. A inculturação da liturgia 81. A inculturação da espiritualidade cristã nas culturas dos
povos nativos encontra, nos Sacramentos, um caminho particularmente valioso,
porque neles se unem o divino e o cósmico, a graça e a criação. Na Amazónia, os
Sacramentos não deveriam ser vistos como separação da criação, pois «constituem
um modo privilegiado em que a natureza é assumida por Deus e transformada em
mediação da vida sobrenatural»[114].
São uma plenificação da criação, na qual a natureza é elevada para ser lugar e
instrumento da graça, para «abraçar o mundo num plano diferente»[115]. 82. Na Eucaristia vemos que, «no apogeu do mistério da Encarnação,
o Senhor quer chegar ao nosso íntimo através dum pedaço de matéria. (…) [Ela]
une o céu e a terra, abraça e penetra toda a criação»[116].
Por isso, a Eucaristia pode ser «fonte de luz e motivação para as nossas
preocupações pelo meio ambiente, e leva-nos a ser guardiões da criação inteira»[117].
Assim, «não fugimos do mundo, nem negamos a natureza, quando queremos
encontrar-nos com Deus».[118] Isto
permite-nos receber na liturgia muitos elementos próprios da experiência dos
indígenas no seu contacto íntimo com a natureza e estimular expressões
autóctones em cantos, danças, ritos, gestos e símbolos. O Concílio Vaticano II
solicitara este esforço de inculturação da liturgia nos povos indígenas[119],
mas passaram-se já mais de cinquenta anos e pouco avançamos nesta linha[120]. 83. No domingo, «a espiritualidade cristã integra o valor do
repouso e da festa. O ser humano tende a reduzir o descanso contemplativo ao
âmbito do estéril ou do inútil, esquecendo que deste modo se tira à obra
realizada o mais importante: o seu significado. Na nossa atividade, somos
chamados a incluir uma dimensão recetiva e gratuita»[121].
Os povos nativos conhecem esta gratuidade e este sadio lazer contemplativo. As
nossas celebrações deveriam ajudá-los a viver esta experiência na liturgia
dominical e encontrar a luz da Palavra e da Eucaristia que ilumina as nossas
vidas concretas. 84. Os Sacramentos mostram e comunicam o
Deus próximo que vem, com misericórdia, curar e fortalecer os seus filhos. Por
isso, devem ser acessíveis, sobretudo aos pobres, e nunca devem ser negados por
razões de dinheiro. Nem é admissível, face aos pobres e abandonados da
Amazónia, uma disciplina que exclua e afaste, porque assim acabam descartados
por uma Igreja transformada numa alfândega. Pelo contrário, «nas situações
difíceis em que vivem as pessoas mais necessitadas, a Igreja deve pôr um
cuidado especial em compreender, consolar e integrar, evitando impor-lhes um
conjunto de normas como se fossem uma rocha, tendo como resultado fazê-las
sentir-se julgadas e abandonadas precisamente por aquela Mãe que é chamada a
levar-lhes a misericórdia de Deus»[122].
Segundo a Igreja, a misericórdia pode tornar-se uma mera expressão romântica,
se não se manifestar concretamente no serviço pastoral[123]. A inculturação do ministério. 85. A inculturação deve desenvolver-se e espelhar-se também numa
forma encarnada de realizar a organização eclesial e o ministério. Se se
incultura a espiritualidade, se se incultura a santidade, se se incultura o
próprio Evangelho, será possível evitar de pensar numa inculturação do modo
como se estruturam e vivem os ministérios eclesiais? A pastoral da Igreja tem
uma presença precária na Amazónia, devido em parte à imensa extensão
territorial, com muitos lugares de difícil acesso, grande diversidade cultural,
graves problemas sociais e a própria opção de alguns povos se isolarem. Isto
não pode deixar-nos indiferentes, exigindo uma resposta específica e corajosa
da Igreja. 86. É necessário conseguir que o ministério se
configure de tal maneira que esteja ao serviço duma maior frequência da
celebração da Eucaristia, mesmo nas comunidades mais remotas e escondidas. Em
Aparecida, convidou-se a ouvir o lamento de tantas comunidades na Amazónia
«privadas da Eucaristia dominical por longos períodos de tempo»[124.] Mas,
ao mesmo tempo, há necessidade de ministros que possam compreender a partir de
dentro a sensibilidade e as culturas amazónicas. 87. O modo
de configurar a vida e o exercício do ministério dos sacerdotes não é
monolítico, adquirindo matizes diferentes nos vários lugares da terra. Por
isso, é importante determinar o que é mais específico do sacerdote, aquilo que
não se pode delegar. A resposta está no sacramento da Ordem sacra, que o
configura a Cristo sacerdote. E a primeira conclusão é que este caráter
exclusivo recebido na Ordem deixa só ele habilitado para presidir à Eucaristia[125] .Esta
é a sua função específica, principal e não delegável. Alguns pensam que aquilo
que distingue o sacerdote seja o poder, o facto de ser a máxima autoridade da
comunidade; mas São João Paulo II explicou que, embora o sacerdócio seja
considerado «hierárquico», esta função não equivale a estar acima dos outros,
mas «ordena-se integralmente à santidade dos membros do corpo místico de
Cristo»[126].
Quando se afirma que o sacerdote é sinal de «Cristo cabeça», o significado
principal é que Cristo constitui a fonte da graça: Ele é cabeça da Igreja
«porque tem o poder de comunicar a graça a todos os membros da Igreja»[127]. 88. O sacerdote é sinal desta Cabeça que derrama a graça,
antes de tudo, quando celebra a Eucaristia, fonte e cume de toda a vida cristã[128].
Este é o seu grande poder, que só pode ser recebido no sacramento da Ordem. Por
isso, apenas ele pode dizer: «Isto é o meu corpo». Há outras
palavras que só ele pode pronunciar: «Eu te absolvo dos teus pecados»; pois o
perdão sacramental está ao serviço duma celebração eucarística digna. Nestes
dois sacramentos, está o coração da sua identidade exclusiva[129]. 89. Nas circunstâncias específicas da Amazónia, especialmente nas
suas florestas e lugares mais remotos, é preciso encontrar um modo para
assegurar este ministério sacerdotal. Os leigos poderão anunciar a Palavra,
ensinar, organizar as suas comunidades, celebrar alguns Sacramentos, buscar
várias expressões para a piedade popular e desenvolver os múltiplos dons que o
Espírito derrama neles. Mas precisam da celebração da Eucaristia, porque ela
«faz a Igreja»[130],
e chegamos a dizer que «nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz
e o seu centro na celebração da Santíssima Eucaristia»[131].
Se acreditamos verdadeiramente que as coisas estão assim, é urgente fazer com
que os povos amazónicos não estejam privados do Alimento de vida nova e do
sacramento do perdão. 90. Esta premente necessidade leva-me
a exortar todos os bispos, especialmente os da América Latina, a promover a
oração pelas vocações sacerdotais e também a ser mais generosos, levando
aqueles que demonstram vocação missionária a optarem pela Amazónia[132].
Ao mesmo tempo, é oportuno rever a fundo a estrutura e o conteúdo tanto da
formação inicial como da formação permanente dos presbíteros, de modo que
adquiram as atitudes e capacidades necessárias para dialogar com as culturas
amazónicas. Esta formação deve ser eminentemente pastoral e favorecer o
crescimento da misericórdia sacerdotal[133]. Comunidades cheias de vida. 91. A Eucaristia é também o grande sacramento que significa e
realiza a unidade da Igreja[134],
celebrando-se «para que, de estranhos, dispersos e indiferentes uns aos outros,
nos tornemos unidos, iguais e amigos»[135].
Quem preside à Eucaristia deve ter a peito a comunhão, que, longe de ser uma
unidade empobrecida, acolhe a múltipla riqueza de dons e carismas que o
Espírito derrama na comunidade. 92. Ora a Eucaristia, como
fonte e cume, exige que se desenvolva esta riqueza multiforme. São necessários
sacerdotes, mas isto não exclui que ordinariamente os diáconos permanentes –
deveriam ser muitos mais na Amazónia –, as religiosas e os próprios leigos
assumam responsabilidades importantes em ordem ao crescimento das comunidades e
maturem no exercício de tais funções, graças a um adequado acompanhamento. 93. Portanto não se trata apenas de facilitar uma presença maior
de ministros ordenados que possam celebrar a Eucaristia. Isto seria um objetivo
muito limitado, se não procurássemos também suscitar uma nova vida nas
comunidades. Precisamos de promover o encontro com a Palavra e o amadurecimento
na santidade por meio de vários serviços laicais, que supõem um processo de
maturação – bíblica, doutrinal, espiritual e prática – e distintos percursos de
formação permanente. 94. Uma Igreja de rostos amazónicos requer
a presença estável de responsáveis leigos, maduros e dotados de autoridade[136],
que conheçam as línguas, as culturas, a experiência espiritual e o modo de
viver em comunidade de cada lugar, ao mesmo tempo que deixem espaço à
multiplicidade dos dons que o Espírito Santo semeia em todos. Com efeito, onde
houver uma necessidade peculiar, Ele já infundiu carismas que permitam dar-lhe
resposta. Isto requer na Igreja capacidade para abrir estradas à audácia do
Espírito, confiar e concretamente permitir o desenvolvimento duma cultura
eclesial própria, marcadamente laical. Os desafios da Amazónia
exigem da Igreja um esforço especial para conseguir uma presença capilar que só
é possível com um incisivo protagonismo dos leigos. 95. Muitas
pessoas consagradas gastaram as suas energias e grande parte da sua vida pelo
Reino de Deus na Amazónia. A vida consagrada, capaz de diálogo, síntese,
encarnação e profecia, ocupa um lugar especial nesta configuração plural e
harmoniosa da Igreja amazónica. Mas faz-lhes falta um novo esforço de
inculturação, que ponha em jogo a criatividade, a audácia missionária, a
sensibilidade e a força peculiar da vida comunitária. 96. As
comunidades de base, sempre que souberam integrar a defesa dos direitos sociais
com o anúncio missionário e a espiritualidade, foram verdadeiras experiências
de sinodalidade no caminho evangelizador da Igreja na Amazónia. Muitas vezes
«têm ajudado a formar cristãos comprometidos com a sua fé, discípulos e
missionários do Senhor, como o testemunha a entrega generosa, até derramar o
sangue, de muitos dos seus membros»[137]. 97. Encorajo o aprofundamento do serviço conjunto que se
realiza através da REPAM e outras associações com o objetivo de consolidar
aquilo que solicitava Aparecida: «estabelecer, entre as Igrejas locais de
diversos países sul-americanos que estão na bacia amazónica, uma pastoral de
conjunto com prioridades diferenciadas»[138].
Isto vale especialmente para a relação entre as Igrejas confinantes.
98. Por fim, quero lembrar que nem sempre podemos pensar em projetos para
comunidades estáveis, porque na Amazónia há uma grande mobilidade interna, uma
migração constante, muitas vezes pendular, e «a região transformou-se
efetivamente num corredor migratório»[139].
A «transumância amazónica não foi bem compreendida nem suficientemente
elaborada do ponto de vista pastoral»[140].
Por isso devemos pensar em grupos missionários itinerantes e «apoiar a inserção
e a itinerância dos consagrados e consagradas ao lado dos mais desfavorecidos e
excluídos»[141].
Por outro lado, isto desafia as nossas comunidades urbanas, que deveriam
cultivar com inteligência e generosidade, especialmente nas periferias, várias
formas de proximidade e receção às famílias e jovens que chegam ao território. A força e o dom das mulheres. 99. Na Amazónia, há comunidades que se mantiveram e transmitiram
a fé durante longo tempo, mesmo decénios, sem que algum sacerdote passasse por
lá. Isto foi possível graças à presença de mulheres fortes e generosas, que
batizaram, catequizaram, ensinaram a rezar, foram missionárias, certamente
chamadas e impelidas pelo Espírito Santo. Durante séculos, as mulheres
mantiveram a Igreja de pé nesses lugares com admirável dedicação e fé ardente.
No Sínodo, elas mesmas nos comoveram a todos com o seu testemunho.
100. Isto convida-nos a alargar o horizonte para evitar reduzir a nossa
compreensão da Igreja a meras estruturas funcionais. Este reducionismo
levar-nos-ia a pensar que só se daria às mulheres um status e
uma participação maior na Igreja se lhes fosse concedido acesso à Ordem sacra.
Mas, na realidade, este horizonte limitaria as perspectivas, levar-nos-ia a
clericalizar as mulheres, diminuiria o grande valor do que elas já deram e
subtilmente causaria um empobrecimento da sua contribuição indispensável. 101. Jesus Cristo apresenta-Se como Esposo da comunidade que
celebra a Eucaristia, através da figura de um varão que a ela preside como
sinal do único Sacerdote. Este diálogo entre o Esposo e a esposa que se eleva
na adoração e santifica a comunidade não deveria fechar-nos em conceções
parciais sobre o poder na Igreja. Porque o Senhor quis manifestar o seu poder e
o seu amor através de dois rostos humanos: o de seu divino Filho feito homem e
o de uma criatura que é mulher, Maria. As mulheres prestam à Igreja a sua
contribuição segundo o modo que lhes é próprio e prolongando a força e a ternura
de Maria, a Mãe. Deste modo não nos limitamos a uma impostação funcional, mas
entramos na estrutura íntima da Igreja. Assim compreendemos radicalmente por
que, sem as mulheres, ela se desmorona, como teriam caído aos pedaços muitas
comunidades da Amazónia se não estivessem lá as mulheres, sustentando-as,
conservando-as e cuidando delas. Isto mostra qual é o seu poder caraterístico. 102. Não podemos deixar de incentivar os talentos populares que
deram às mulheres tanto protagonismo na Amazónia, embora hoje as comunidades
estejam sujeitas a novos riscos que outrora não existiam. A situação atual
exige que estimulemos o aparecimento doutros serviços e carismas femininos que
deem resposta às necessidades específicas dos povos amazónicos neste momento histórico. 103. Numa Igreja sinodal, as mulheres, que de facto realizam um
papel central nas comunidades amazónicas, deveriam poder ter acesso a funções e
inclusive serviços eclesiais que não requeiram a Ordem sacra e permitam
expressar melhor o seu lugar próprio. Convém recordar que tais serviços
implicam uma estabilidade, um reconhecimento público e um envio por parte do
bispo. Daqui resulta também que as mulheres tenham uma incidência real e
efetiva na organização, nas decisões mais importantes e na guia das
comunidades, mas sem deixar de o fazer no estilo próprio do seu perfil
feminino. Ampliar
horizontes para além dos conflitos. 104.
Frequentemente sucede que, num determinado lugar, os agentes pastorais
vislumbram soluções muito diferentes para os problemas que enfrentam e, por
isso, propõem formas aparentemente opostas de organização eclesial. Quando isto
acontece, é provável que a verdadeira resposta aos desafios da evangelização
esteja na superação de tais propostas, procurando outros caminhos melhores, talvez
ainda não imaginados. O conflito supera-se num nível superior, onde cada uma
das partes, sem deixar de ser fiel a si mesma, se integra com a outra numa nova
realidade. Tudo se resolve «num plano superior que conserva em si as preciosas
potencialidades das polaridades em contraste»[142].
Caso contrário, o conflito fecha-nos, «perdemos a perspectiva, os horizontes
reduzem-se e a própria realidade fica fragmentada»[143]. 105. Isto não significa de maneira alguma relativizar os
problemas, fugir deles ou deixar as coisas como estão. As verdadeiras soluções
nunca se alcançam amortecendo a audácia, subtraindo-se às exigências concretas
ou buscando culpas externas. Pelo contrário, a via de saída encontra-se por
«transbordamento», transcendendo a dialética que limita a visão para poder
assim reconhecer um dom maior que Deus está a oferecer. Deste novo dom recebido
com coragem e generosidade, deste dom inesperado que desperta uma nova e maior
criatividade, brotarão, como que duma fonte generosa, as respostas que a
dialética não nos deixava ver. Nos seus primórdios, a fé cristã difundiu-se
admiravelmente seguindo esta lógica que lhe permitiu, a partir duma matriz
judaica, encarnar-se nas culturas grega e romana e adquirir na sua passagem
fisionomias diferentes. De forma análoga, neste momento histórico, a Amazónia
desafia-nos a superar perspectivas limitadas, soluções pragmáticas que permanecem
enclausuradas em aspetos parciais das grandes questões, para buscar caminhos
mais amplos e ousados de inculturação. A convivência ecuménica e
inter-religiosa. 106. Numa Amazónia plurirreligiosa, os crentes precisam de
encontrar espaços para dialogar e atuar juntos pelo bem comum e a promoção dos
mais pobres. Não se trata de nos tornarmos todos mais volúveis nem de
escondermos as convicções próprias que nos apaixonam, para podermos
encontrar-nos com outros que pensam de maneira diferente. Se uma pessoa acredita
que o Espírito Santo pode agir no diverso, então procurará deixar-se enriquecer
com essa luz, mas acolhê-la-á a partir de dentro das suas próprias convicções e
da sua própria identidade. Com efeito, quanto mais profunda, sólida e rica for
uma identidade, mais enriquecerá os outros com a sua contribuição específica. 107. Nós, católicos, possuímos um tesouro nas Escrituras Sagradas
que outras religiões não aceitam, embora às vezes sejam capazes de as ler com
interesse e inclusive apreciar alguns dos seus conteúdos. Algo semelhante,
procuramos nós fazer face aos textos sagrados doutras religiões e comunidades
religiosas, onde se encontram «preceitos e doutrinas que (…) refletem não
raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens»[144].
Temos também uma grande riqueza nos sete Sacramentos, que algumas comunidades
cristãs não aceitam na sua totalidade ou com idêntico sentido. Ao mesmo tempo
que acreditamos firmemente em Jesus como único Redentor do mundo, cultivamos
uma profunda devoção à sua Mãe. Embora saibamos que isto não se verifica em
todas as confissões cristãs, sentimos o dever de comunicar à Amazónia a riqueza
deste ardente amor materno, do qual nos sentimos depositários. De facto,
terminarei esta Exortação com algumas palavras dirigidas a Maria.
108. Nada disto teria que nos tornar inimigos. Num verdadeiro espírito de
diálogo, nutre-se a capacidade de entender o sentido daquilo que o outro diz e
faz, embora não se possa assumi-lo como uma convicção própria. Deste modo
torna-se possível ser sincero, sem dissimular o que acreditamos, nem deixar de
dialogar, procurar pontos de contato e sobretudo trabalhar e lutar juntos pelo
bem da Amazónia. A força do que une a todos os cristãos tem um valor imenso.
Prestamos tanta atenção ao que nos divide que, às vezes, já não apreciamos nem
valorizamos o que nos une. E isto que nos une é o que nos permite estar no
mundo sem sermos devorados pela imanência terrena, o vazio espiritual, o cómodo
egocentrismo, o individualismo consumista e autodestrutivo. 109.
Como cristãos, a todos nos une a fé em Deus, o Pai que nos dá a vida e tanto
nos ama. Une-nos a fé em Jesus Cristo, o único Redentor, que nos libertou com o
seu bendito sangue e a sua ressurreição gloriosa. Une-nos o desejo da sua
Palavra, que guia os nossos passos. Une-nos o fogo do Espírito que nos impele
para a missão. Une-nos o mandamento novo que Jesus nos deixou, a busca duma
civilização do amor, a paixão pelo Reino que o Senhor nos chama a construir com
Ele. Une-nos a luta pela paz e a justiça. Une-nos a convicção de que nem tudo
acaba nesta vida, mas estamos chamados para a festa celeste, onde Deus enxugará
as nossas lágrimas e recolherá o que tivermos feito pelos que sofrem. 110. Tudo isto nos une. Como não lutar juntos? Como não rezar
juntos e trabalhar lado a lado para defender os pobres da Amazônia, mostrar o
rosto santo do Senhor e cuidar da sua obra criadora? www.vatican.va. Abraço. Davi
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