Budismo.
www.nossacasa.net/shunya. Texto
de Khetsun Sangpo Rinpoche (1920-2009). Do livro Tantric Practice in Nyingma. Como
a base da GRANDE PERFEIÇÃO (Dzogchen) é identificada? Não é suficiente
identificar a base meramente como a pureza essencial (tibetano kadag / ka dag) ou
apenas como a espontaneidade (tibetano hlündrub / lhun grub), mas como uma união de
ambas. A pureza essencial é apresentada do ponto de vista do modo-de-ser (tibetano nelug / gnas lugs), a vacuidade; porém, ao contrário da vacuidade de
aniquilação mantida pelos niilistas, todos os atributos auspiciosos estão
espontaneamente estabelecidos, e deste ponto de vista, a espontaneidade é
positiva. Todos os karmas virtuosos e não-virtuosos são plantados na
base-de-tudo (sânscrito alaya). Quando realizada, ela causa o atingimento do
estado búddhico; quando não, os seres sencientes vagam no samsara. Apesar de
ser a base do erro, é o erro que deve ser abandonado, não a base. Quando uma
batalha é travada, é o inimigo que deve ser derrotado, não a área da luta. Do
mesmo modo, não há como esta base possa ser destruída. Até que seja vívidamente
realizada, palavras são usadas como sinais que causam a realização, mas as
palavras não são a realização. No Nyingma, os dois aspectos da expansão vazia e
da sabedoria estão tão completamente unidos que eles não se dissolvem numa
união ou separação. Esta união não precisa ser novamente produzida, mas sempre
foi vista; é imutável como vajra, que é um símbolo para o que não pode ser
simbolizado – estável, duro, inobstrutível, imutável, indestrutível e
inquebrável. Há dois modos de prática: o súbito e o gradual. O modo súbito é
para alguém que, por muitas vidas, acumulou as necessárias ações e
predisposições e, então, quando recebe a iniciação e a identificação da
realidade pelo lama, atinge alta realização. O modo gradual, por outro lado,
não é aquele dos sistemas do sutra, nos quais se atinge a iluminação apenas
após incontáveis éons de prática, mas sim aquele para alguém no Vajrayana que
completa as qualidades auspiciosas, finalizando os estágios (sânscrito bhumi) e
caminhos (sânscrito. marga) gradualmente, até mesmo em uma única vida. Porém,
quando ele identifica a realidade, é capaz de progredir ao longo destes
caminhos simultaneamente, mas tem de prosseguir em etapas. Assim, mesmo o
caminho gradual não é necessariamente longo. Quando Milarepa (1052-1135)
recebeu pela primeira vez o ensinamento da Grande Perfeição, pensou que poderia
atingir o estado búddhico sem meditação. Ele permaneceu relaxado, sem meditar,
e assim não atingiu qualquer desenvolvimento mental. Então, quando seu lama
testou-o e descobriu que Milarepa não tinha feito qualquer progresso, ele disse,
“Cometi um erro. Apesar da Grande Perfeição ser inconcebível, você é muito
negligente e não está preparado para esta doutrina fácil. Você terá de proceder
com grande dificuldade sobre o caminho gradual. Portanto, você deve ir para o
sul, consultar o tradutor Marpa e tomar o difícil caminho gradualista. Você
falhou no caminho fácil para a iluminação”. Assim, o lama mandou-o embora e
Milarepa sofreu dificuldades incontáveis, mas através do poder de seu esforço
devotado, foi capaz de atingir o estado búddhico. Milarepa disse ao seu supremo
discípulo Gampopa, que recebeu todos os seus ensinamentos, que ao partir lhe
concederia sua instrução final e quintessencial. Gampopa sabia que Milarepa
tinha lhe transmitido tudo o que ensinava, como se tivesse despejado a água de
um pote para outro, e ficou surpreso sobre o que poderia ser esta doutrina mais
profunda. Depois, quando estava para partir, ele lembrou Milarepa sobre esta
instrução final. Milarepa disse, “Ó, sim, é isto”, e puxou seu manto, revelando
que suas nádegas estavam como as patas de um animal por ter ficado sentado
durante muito tempo em um chão de pedras, sem uma almofada. Ele disse, “Meu
atingimento da grande realização vem disto. Você precisa deste esforço, não de
qualquer outra doutrina. Esta é a essência do meu ensinamento. Se você vai se
tornar um buddha ou não, depende do esforço. Com ele, não há dúvidas quanto à
sua liberação. Como um filho, faça o que o seu pai lhe diz.” A atenção e a
introspecção, impelidas pelo poder do esforço, são a base do caminho. A atenção
nos impede de esquecer o que é adotado ou descartado, e a introspecção nos faz
reconhecer os desvios do caminho. Já que este é o caso, quer estejamos comendo,
deitados, trabalhando, passeando ou o que quer que seja, se a atenção e a introspecção
não permanecerem firmemente na mente, então não há como mostrar a diferença
entre uma pessoa comum e um praticante. A divisão não é feita pela roupa de
praticante, mas pela mente; não é a roupa que atinge o estado búddhico, é a
mente. A atenção e a introspecção devem ser mantidas firmes e continuamente; de
outro modo, não importa se estudamos ou praticamos, não estaremos no caminho. O
que é modo súbito da prática? Aqui, não é necessário completar a visualização
de si mesmo como uma divindade, com símbolos específicos e assim por diante;
também não há a necessidade de trazer à realização, através do estágio de
sabedora da realização, o conhecimento do modo-de-ser. Ao invés disso, as
predisposições das ações anteriores do estudante são ativadas pelas palavras do
lama, como essas: “Pela força do conhecimento e do não-conhecimento – se isto é
conhecido, temos um Buddha; se não é conhecido, um ser senciente vaga no
samsara”. Se, através destas instruções quintessenciais, formos capazes de
identificar a base da mente, então nesse instante nos tornaremos um Buddha sem
nos engajarmos nas dificuldades do caminho gradual. Entre cem mil praticantes,
há apenas uma ou duas pessoas assim, e apesar deles existirem, são muito raros.
O estudante deve ter acumulado ações e predisposições por muitas vidas, e o
lama deve ter grande realização e atingimento. Quando os dois se sentam para
identificar a Grande Perfeição, o estudante é um ser comum, mas ao identificar
sua própria mente, ele fica livre, e ao se levantar ele é um superior (sânsc.
arya). É assim porque a diferença entre um ser comum e um superior vem apenas
do conhecer ou não conhecer o modo-de-ser da própria mente. Um indivíduo que é
capaz de se libertar imediatamente ao receber a instrução quintessencial do
lama é chamado de pessoa simultânea. Se isto não acontecer, entramos no caminho
gradual, desenvolvendo a mente nas etapas durante muitos meses, procedendo
sobre vários estágios e caminhos, enquanto aqueles cujo modo de progresso é
súbito realizam desde o início que o modo-de-ser de suas mentes é livre. Então,
por que somos seres comuns? É devido à obstrução por máculas temporárias e
adventícias. Por que não nos liberamos imediatamente? Porque, além de uma
imagem geral, não podemos realizar este modo-de-ser diretamente. Por exemplo,
ao ouvirmos falar de uma cidade distante que não conhecemos, podemos
compreender algo sobre ela; mas como não podemos vê-la diretamente, é apenas
uma compreensão. Aqueles que são capazes de tomar o caminho súbito, por outro
lado, não apenas compreendem o modo-de-ser da mente; eles o percebem
diretamente através da identificação do lama, sentindo, “É patético, cometi um
erro tão pequeno mas tive de aguentar este erro gigantesco do samsara
ilimitado, com tanto sofrimento!” Há apenas uma pequena diferença entre o
conhecimento e o não-conhecimento, mas o erro resultante é gigantesco, já que o
nascimento no samsara não tem início. É dito na biografia de Atisha (980-1054)
que todo dia ele via uma mulher que estava às vezes chorando, às vezes rindo.
Finalmente Atisha perguntou a ela;
–
“Por que, sem qualquer razão aparente, você às vezes chora e às vezes ri? Você
está, de algum modo, com uma aflição mental?”
– “Não, não estou, mas vocês estão e por isso eu choro”.
– “Por quê?”
– “O Tathagatagarbha, a própria mente, tem sido um buddha deste
um tempo sem início. Não sabendo disso, grandes complicações se sucedem a
partir desta pequena base de erro para centenas de milhares de seres
sencientes. Apesar de suas próprias mentes serem buddhas, eles estão em grande confusão.
Não sendo capaz de suportar o sofrimento de tantos seres, eu choro. E então, eu
rio porque quando esta pequena base de erro é conhecida – quando conhecemos a
nossa própria mente – estamos livres. Deleitando-me no fato de que ao saber
isto eles estão prontos para serem liberados.” Ela estava identificando a base
para Atisha. Tendo realizado esta base penetrantemente, a pessoa sobre o
caminho súbito imediatamente se move para o estado búddhico sem precisar entrar
no caminho gradual para realizar suas potências. Porém, se não tivermos sucesso
no caminho súbito, é necessário mudar para o gradual. Aqui, treinamos
externamente no modo da aparência da expansão da vacuidade e aperfeiçoamos
internamente a consciência de sabedoria, aumentando os fatores necessários e
realizando suas potências. A expansão da vacuidade e da sabedoria é a base da
liberação. A expansão externa é a do céu; a interna é a esfera vazia da mente;
e a secreta é a mente de sabedoria, livre dos extremos quando tiver sido
purificada. No Madhyamika, isto é chamado de liberdade de todas as elaborações
conceituais, sem qualquer coisa a ser apontada e com a refutação dos oito
extremos – da produção do eu, do outro, de ambos, de nenhuma, do vir, do ir, da
igualdade e da diferença -, uma cessação completa de todas as elaborações. Esta
vacuidade inconcebível, tento passado além de toda conceitualidade, é a visão
Madhyamika, livre da elaboração, que no Vajrayana é identificada através de um
processo que começa quando o lama aponta a nossa própria mente e a
identificamos. Logo após completar as práticas preparatórias, examinamos de
onde a mente vem, então onde ela fica e finalmente em que ela cessa. Estes são
chamados de surgimento, permanência e ida da mente. Primeiro pensamos
unicamente sobre o que a mente é, de onde ela vem, sem qualquer outra instrução
procurando o lugar de seu surgimento. Então, uma vez compreendido que a mente é
algo que não pode se tornar inteiramente não-existente, pois ela fica feliz,
triste, desejosa, raivosa e assim por diante – uma vez compreendido que ela é
relativamente existente – examinamos as partes superior, média e inferior do
corpo para identificar o seu lar, já que não é apropriado que a mente fique nos
fenômenos externos. Após gastar um mês ou dois nesta busca com grande
intensidade em retiro solitário, compreendemos parecer que ela esteja aqui ou
lá. Então, como a mente do ano passado ou de ontem não existe hoje, examinamos
para onde ela foi e desapareceu. Qual é a entidade do lugar de cessação desta
mente, que cessa e é esquecida? Neste ponto, chegamos a algo que é vazio, e
quando isto for compreendido em um certo grau, o ensinamento da ruptura é
iniciado. Uma vez que os oito extremos tenham sido parados, esta expansão vazia
que é o modo-de-ser da mente é identificada não meramente como o espaço, mas
como uma entidade de sabedoria, com todos os atributos auspiciosos do
conhecimento, misericórdia e poder espontaneamente estabelecidos. Se tudo fosse
considerado como sendo conceitualmente elaborado e fosse negado, concluindo que
tudo é não-existente, então qual seria o objetivo da prática? A grande
sabedoria que tem espontaneamente as qualidades búddhicas do conhecimento, da
misericórdia e do poder é identificada pelo lama, após o qual devemos manter
este caminho através da atenção e introspecção e assim avançar ao estado
búddhico. A menos que procedamos deste modo, os re-arranjos externos – como
mudanças nas roupas e assim por diante – não podem trazer o estado búddhico.
Porém, isto não significa que as práticas artificiais não devam ser feitas. Até
que a doutrina que o lama revela seja realizada, o esforço e o empenho na
atenção e na introspecção são absolutamente essenciais. Sem eles, a essência
verdadeira é perdida. Confiando na atenção e na introspecção, as potências da
sabedoria são partir de dentro, não de fora; o conhecimento então alvorece sem
impedimento. Todos os fenômenos afirmados como convencionais ou últimos são
liberados simultaneamente e, então, a realização da grande auto liberação é
gerada. Nesse momento, sem esforço, atingimos o grande estado búddhico, a
expansão da vacuidade e a sabedoria da auto liberação. Não importa quantos ou que tipo de objetos externos surjam, pois como as
aparências internas foram levadas à realização, não há mais apego. O apego a fonte
do sentido de um sujeito (que apreende) e um objeto (que é apreendido) é
terminada. Como uma sabedoria sem fim e o atingimento apareceram do interior,
não há qualquer coisa a ser abandonada ou atingida; ficamos além dos sujeitos e
objetos externos da adoção e do abandono. Os atributos auspiciosos de um Buddha
estão espontaneamente estabilizados em união com a expansão da profunda
vacuidade e sabedoria. Assim como uma cobra que foi amarrada firmemente em
muitos nós pode libertar a si mesma, do mesmo modo a mente desfaz seus próprios
nós. Se os nós são enfeites em uma corda, é preciso que alguém os desembarace;
porém, os nós das ações contaminadas, aflições e predisposições que foram
amarradas por muitas vidas podem ser desfeitos como os nós de uma cobra. Quando
isto é conhecido, somos um buddha, e quando não é conhecido, vagamos no
samsara. Em si mesmo, está além do samsara e do nirvana. Chegamos ao alto lugar
onde as elaborações destes dois são eliminadas. Como os atributos auspiciosos
de um buddha foram aperfeiçoados a partir do interior, como alguém poderia
renascer no samsara? Já que as potências da sabedoria de um buddha foram
completadas, qual é a necessidade de seguir o caminho da liberação solitária?
Este caminho que toma incontáveis éons (tempos) no sistema do sutra pode ser
realizado pela mente ao desfazer os seus nós. É decidido a partir do interior. As
ondas do pensamento conceitual acalmam-se naturalmente. Desobstruído e vazio,
mas sem ser muito estendido, este estado de união é cheio de êxtase. A união é
inerente, não é algo novo juntado a algo velho. A natureza auto surgida dos
fenômenos é compreendida como sendo livre das visões. A expansão da vacuidade e
a da sabedoria não são muito vastas e, portanto não tem o estabelecimento
espontâneo das qualidades de um Buddha. Não são estendidas ao ponto em que
precisem ser juntadas e remendadas; nem são parciais, já que são a única esfera
penetrante da sabedoria de um Buddha, a única grande entidade espontânea e
penetrante. Esta união existiu desde o início, obscurecida pelas ações e
pré-disposições que, quando descascadas, deixam apenas a visão imutável. Apesar
do modo-de-ser poder ser apontado com palavras, a realização dele não é um caso
de pensar sobre o mecanismo das palavras. Ainda assim, em dependência destes
símbolos verbais, o modo de ser da própria mente pode tornar-se manifesto. Quando
ganhamos a iniciação e a transmissão da instrução quintessencial, e então retiramo-nos
para um lugar solitário, podemos ter estas experiências. Os preceitos não
entendidos quando lidos nos livros são compreendidos imediatamente para alguém
que então esteja procedendo na base do conhecimento interno. Então, quando
morrermos, será como um retorno à nossa mãe, sem a menor preocupação. www.nossacasa.net/shunya. Abraço.
Davi
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