segunda-feira, 27 de abril de 2020

O ESPAÇO E O TEMPLO SAGRADO IV


Religião Afro-brasileira. O Candomblé da Bahia – Rito Nago. Tradução de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018). Capítulo II. O ESPAÇO E O TEMPLO SAGRADO IV.  A terceira função da “água de Oxalá” é a purificação dos membros da seita. Purificação que talvez ao mesmo tempo seja um rito de fecundação: açoitar os vegetais. Munida de pequeno ramo ou de um pedaço de cipó, a ialorixá bate nas costas dos membros da seita. Esta disciplina tem por efeito trazer o perdão das ações más praticadas no decorrer do ano. Frazer insistiu pertinazmente sobre o caráter de fecundação de ritos análogos; e devemos notar, a favor de sua teoria, que está flagelação simbólica tem lugar no momento da festa dos inhames novos, no momento em que a natureza oferece todos os seus frutos. Pensamos, todavia, que a cerimônia tem antes como fim prolongar a purificação dos homens. Manuel Raimundo (1851-1923) Querino não incorre em erro quando a interpreta como uma espécie de "resgate" ou de "perdão dos pecados", realizada no momento em que se abre o ano novo africano. A "água de Oxalá” nos aparece, pois, com seu tríplice caráter de festa agrária, de abertura do tempo sagrado, e finalmente de purificação da comunidade; com efeito, o tempo sagrado é igualmente o ritmo da vegetação e o ritmo social. Natureza, sobrenatural e social formam uma única e idêntica realidade. Depois desta purificação anual, o ritmo das grandes festas pode começar, as iniciações podem se desenrolar, os filhos de santo podem desempenhar suas obrigações para com o "dono da cabeça". Todavia, esta continuidade mística que une a água de Oxalá do ano anterior à água de Oxalá do ano seguinte, é rompida em certo momento por um período profano. Um período de expulsão dos Orixá, que se acredita terem voltado para a África, e que se estende do Carnaval ao fim da Semana Santa. É evidente que este período de "desconsagração" do candomblé, ou de sua "desafricanização", tem origem nos constrangimentos da escravidão. Os senhores não permitiam aos negros dançar no decorrer da Semana Santa; todo o mundo devia então ostentar tristeza e os escravos, bem contra a vontade, foram obrigados a obedecer às ordens recebidas. Os candomblés fecham, pois, as portas durante a Semana Santa; mas o fechamento é precedido por uma cerimônia especial, o Iorogun, - expulsão provisória dos Orixá. O catolicismo, todavia, não faz mais do que fornece a data do lorogun, e não sua função. Efetivamente, o tempo sagrado se compõe sempre de períodos de caos e de recriação do mundo, de destruição da ordem normal e de restabelecimento da harmonia perdida. Há momentos de confusão; e justamente Carnaval e Semana Santa oferecem esta imagem da confusão que irrompe no mundo. Durante o Carnaval, os homens se vestem de mulher e as mulheres de homem, as classes sociais se misturam no frenesi dos três dias e três noites de dança ininterrupta, todos os tabus de contato e de mistura que asseguram a perpetuação do cosmos são violados. Normalmente, está a natureza dividida em certo número de compartimentos estanques, de domínios separados que devem permanecer separados, sem comunicar entre si, para que as coisas não recaiam na desordem primitiva; o Carnaval destrói esta compartimentação do real, fazendo tudo participar de tudo. A Semana Santa, por seu turno, destrói aos olhos do cristão os próprios fundamentos da hierarquia cósmica; esta hierarquia supõe que as coisas subsistem pela irradiação das forças divinas; ora, justamente matando o Cristo, o homem revolta-se contra tal estratificação e, destruindo o logos que assegurava a racionalidade do real, corre assim o risco de tornar a atirar a terra na noite do caos primitivo. O africano da Bahia pode muito bem aceitar estas datas do calendário ocidental, pois também tem necessidade, todos os anos, de fazer o mundo passar pela noite do caos antes de restabelecer ritualmente a ordem e a harmonia. O Iorogun é considerado como a partida dos Orixá para a guerra; as rivalidades latentes entre as divindades, mas até então contidas, vão daí por diante rebentar livremente, desencadeando lutas violentas, Xangô contra Ogun, Xangô contra Ossain, Ogun contra Odé, Oxun e Yansan contra seu marido comum (...). Para compreender bem o significado desta cerimônia, é preciso, pois, confrontá-la com a da água de Oxalá. Os diversos compartimentos do real, que se prendem cada qual a uma divindade distinta, se destroem na luta dos deuses que não é senão outra imagem do caos, em lugar de formarem agrupamentos complementares e ordenados. Por sua vez a água de Oxalá, isto é, do maior de todos os Orixá, daquele que reina no céu e que, em suma, substituiu Olorun quando este último se aposentou - a água de Oxalá, pois, lavando indistintamente todos os fetiches do candomblé, penetrando-os por conseguinte com a mesma força unificadora e purificante, restabelece a ordem desaparecida entre os diversos domínios do real que recobram sua complementaridade e, também, seu funcionamento harmonioso, em benefício de todos os mortais. Quer isso dizer que o candomblé não aparece no Carnaval? Longe disso; mas não aparece então como instituição religiosa. Existe na Bahia uma expressão, que se ouve de vez em quando, e que chamou minha atenção a de "candomblé de brincadeira". O termo é equívoco, parece designar uma caricatura da festa religiosa, uma comédia irreverente representada com as coisas sagradas. Não é nada disso. Os "candomblés de brincadeira" não são simples divertimentos, podem ter uma função séria. Vejamos, com efeito, onde os encontrei. Em primeiro lugar, entre os pescadores de Itapoan (praia). Antes de começar a estação da pesca, pedem a Yemanjá, senhora do Oceano, que lhes seja favorável, que lhes encha as redes de xaréu, oferecendo-lhes presentes e celebrando então "candomblés de brincadeira": Dê-me licença, aí dê-me licença, ai âlo de Yemanjá âlo de Yemanjá. Como se vê, o que se realiza não deixa de ser algo de sério, uma vez que se trata de pedir à senhora do Oceano permissão para entrar no seu domínio. Encontra-se ainda a expressão "candomblé de brincadeira" no afoché. A maior parte dos afochés são de nação banto, mas conheço pelo menos um que é nagô. Consiste, em resumo, na chegada da confraria até as ruas barulhentas da cidade, agora não mais sob a forma de um conjunto de sacerdotes e de fiéis, mas antes sob o aspecto de uma corte real, com o rei, a rainha, os príncipes, os guardas, as damas de honra. Ora, este desfile da corte no meio da alegria exuberante do Carnaval, é precedido por um padê de Exú e por uma série de cânticos em honra de todos os Orixá ao pantéon africano, cada qual por sua vez. Ainda aqui, trata-se de um "candomblé de brincadeira". Todavia, também aqui a função primeira era séria. Com efeito, o mais célebre destes afochés era o de Otum, Oba da África, no Cantais. Os dois termos de Oba, rei, e de Otum, chefe da direita, indicam muito bem que primitivamente tal procissão era a visita que o soberano fazia a seu povo no momento em que este se divertia, e então o candomblé que o precedia não era senão o símbolo da festa religiosa realizada antes da festa profana. Para reminiscência africana. Mas que significa a expressão candomblé de brincadeira? Simplesmente que se trata de um candomblé sem transe e sem possessão das filhas de santo pelos respectivos orixás. Como me dizia eu rainha de maracatu (o maracatu é o paralelo pernambucano do afoché da Bahia). Os santos não podem descer, pois os tambores que empregamos não "comeram". Trata-se dos ilus, e não dos três tambores "batizados" das cerimônias religiosas. O lorogun afugentou os Orixá; porém, se daí por diante não é possível mais nenhuma possessão, pode-se ainda assim celebrar um candomblé inteiramente idêntico ao verdadeiro, salvo esta ausência absoluta de transe, - candomblé assinalado pelo emprego de instrumentos de música profanos. Os pescadores de que falei atrás não possuem tambores que beberam o sangue dos animais sacrificados; suas danças não podem também ser acompanhadas de transes. O termo de "candomblé de brincadeira" não tem outro significado. Não se trata de uma brincadeira, nem de uma falta de respeito, nem de um sinal de ceticismo religioso; trata-se, ao contrário, de uma homenagem, mas de uma homenagem na qual os homens permanecem s6s, sem receber a visita divina. O candomblé pode, pois, continuar a funcionar mesmo "fechado", mas então tem a forma de reminiscência das antigas cortes reais, e não de uma instituição religiosa. Todavia, ainda assim o afoché não é admitido pelas seitas mais tradicionais, pelos terreiros mais antigos, que lhe atribuem como que um odor de sacrilégio. Assim, o ano nos aparece menos como uma sucessão de meses do que como uma duração formada por momentos heterogêneos, cortados por um período de caos, e começando por uma recriação do mundo. O que acabamos de afirmar para o ano, vale também para a semana. Os dias de que se compõe não são apenas uma sequência de horas marcadas pelos relógios de parede ou pelos relógios-pulseira (tão ao gosto de nossos afro-brasileiros); cada um dos dias está em correspondência com uma ou várias divindades da mesma natureza, o que lhe dá coloração religiosa especial, diferenciando-o misticamente daquele que o precede e daquele que o segue. As correspondências podem variar de uma cidade para outra; as relações entre esta e aquela divindade, entre este e aquele dia não são exatamente as mesmas na Bahia, no Recife – PE e em Porto Alegre – RS, sem falar do Rio de Janeiro, Mas as variações não são de surpreender, pois também as encontramos na África. A distribuição dos Aroun Osé não é igual em Ibadan e em Ifé. A ordem que vamos dar a seguir corresponde, em geral, nos candomblés da Bahia, ao xiré, isto é, à ordem em que são cantados os cânticos e executadas as danças no decorrer das festas públicas, e também algumas vezes, como no caso do Gantois, à ordem dos rituais de celebração das divindades durante as grandes festas anuais: A segunda-feira é consagrada a Exú e a Omolú. A terça-feira é consagrada a Anamburucú e Oxunmarê. A quarta-feira, a Xangô e Yansan. A quinta-feira, a Oxossi e a Ogun. A sexta-feira, a Oxalá (Obatalá). Ao sábado a Yemanjá e a Oxum. Ao domingo, finalmente, é o dia de "todos os Orixá". É compreensível que Exú inicie a semana, pois é o deus das "aberturas": assim como está à porta do candomblé para vigiar a entrada, guarda também a entrada do tempo. Como dissemos, Exú, como intermediário entre as divindades e os humanos, reclama o primeiro sacrifício; deve forçosamente também se encontrar aqui em primeiro lugar. Mas por que lhe ajuntaram Omolú? São possíveis duas interpretações, que aliás não se contradizem uma à outra. Exú é o rapaz que não presta, que gosta de pregar peças, de vagabundear o dia inteiro; tornou-se um dos auxiliares dos feiticeiros, dos mágicos e, por isso, é temido. Omolú é o deus da varíola, das doenças da pele, das epidemias que com tanta frequência dizimaram escravos no Brasil, e por isso é igualmente uma divindade perigosa que é preciso amansar logo no início da semana. Pois estes dois deuses, na verdade, só são cruéis para aqueles que não lhes rendem a homenagem devida. São ambos, ao contrário, favoráveis se lhes forem ofertados os alimentos ou os sacrifícios que reclamam de seus fiéis. Não é sem razão que E. Carneiro chama Omolú de "médico dos pobres", de protetor dos negros humildes da Bahia. Mas a esta primeira razão pode juntar-se ainda outra. Exú e Omolu são duas divindades da terra; Frobenius insistiu muito na ligação entre Exú-Legba e o espaço, e é desnecessário voltar a ela aqui. Por seu lado, Le Hérissé descobriu que Sakpata-Omolú é, mais ainda do que apenas a divindade da varíola, o "fetiche do solo", para empregar sua própria expressão, ou, para empregar a dos africanos, o "rei da terra". A varíola não é senão o castigo enviado por Omolú a todos que o desdenham ou deixam de adorá-lo, não constituindo sua característica fundamental. Em resumo a segunda-feira, portanto, é consagrada ao culto dos deuses da Terra. Depois de ter captado a boa vontade de Exú e Omolú, ordena o respeito que se comece pelas divindades mais antigas. Reconhecemos aqui um traço africano, ligado às classes de idade e à diferença dos sexos. A terça-feira é o dia de Ananburucú, ou Nananburucú, ou mais simplesmente e mais afetuosamente ainda Nanan, que é considerada na Bahia "a mais velha das divindades das águas", a "vovó" ao mesmo tempo querida e venerada. Oxunmarê ou Oxumarê é também uma divindade das águas, pois representa o arco-íris, e a função do arco-íris é levar até o céu a água dos lagos ou do mar e com ela alimentar as nuvens. Não diremos, porém, que a terça-feira é o dia das águas como a segunda-feira é o dia da terra. Reservaremos tal designação para o sábado. Qual é, pois, a verdadeira ligação entre Nanan e Oxunmarê? Ainda aqui há duas interpretações possíveis. As vovós-velhas são sempre boas para os netinhos; estes podem pedir o que quiserem, na certeza de serem atendidos. Por outro lado, Oxunmarê é um intermediário entre o céu e a terra, que une por meio de seu longo véu multicor; portanto, sendo favorável, pode muito mais depressa levar as orações dos fiéis aos deuses lá de cima. O segundo dia, se esta interpretação for fundada, seria, pois, o dia dos intercessores. Mas existe ainda outra causa de ligação entre aquelas duas divindades, que é talvez a mais importante (os negros atuais da Bahia desconhecem as razões em· que seus pais fundamentaram as correspondências, o que nos obrigou também a interpretá-las, em lugar de unicamente recolhermos as informações). Nanan e Oxunmarê são originários da região que a gente da Bahia designa sob o nome de Gêge Mahi, são divindades dahomeanas incorporadas ao pantéon yoruba (mas já incorporadas na África). A terça-feira, portanto, seria o dia da homenagem nagô ao país de gegê. A terça-feira ao contrário, não oferece nenhuma dificuldade. É consagrada ao deus do raio, Xangô, e à sua mulher principal, Yansan, que preside à tempestade, à chuva torrencial, aos vendavais. Embora Xangõ possua duas outras esposas, Oba e Oxum, é natural vê-lo figurar aqui com aquela de suas mulheres que o auxilia no trabalho de "lançador de raios". Um mito conta-nos que Xangô possuía certa "magia", lançava fogo pela boca; mas Yansan roubou-a e, daí por diante, também se tomou capaz de fazê-lo; e se não lança fogo pela boca, pelo menos "traça no ar círculos cintilantes" com sua espada, imitando o raio. Shango e Yansan "saíram juntos para a terra dos malês. Ali chegados, acharam tudo no mesmo. Eles continuam rezando seus rosários e nem ligaram a Shango. Ele então mandou que Yansan lhe guardasse as costas e interpelou os malês. Eles ficaram assim, sem se explicar direito. Shango então descarregou o corisco (...) enquanto Yansan arrastava a sua espada e raspando o ar com ela fazia o relâmpago. Os malês, que não conheciam o relâmpago, ficaram com medo e caíram no chão fazendo reverência a Shango. Aí o chefe dos malês cantou: "E oba emode emole loce" -  reconhecendo a chefia de Shango e é com esse canto que se abre o, culto dos malês. A quarta-feira é, pois, o dia consagrado à adoração do fogo. A quinta-feira também não oferece maiores dificuldades. As duas divindades que lhe correspondem são, com efeito, Oxossi, que é o patrono dos caçadores, e Ogun, que é o dos ferreiros. Por outro lado, estão duplamente ligados um ao outro, em primeiro lugar porque são irmãos, e em segundo lugar porque são o que chamamos de "divindades do ar livre". A quinta-feira é, pois, ao mesmo tempo o dia dos deuses cujas pedras se encontram fora do pegi da casa, e o dia da homenagem dos grupos de artesãos ou de castas àqueles que presidem às suas atividades sociais. Página 123. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nago. Abraço. Davi


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