terça-feira, 4 de junho de 2019

V. OS PRINCÍPIOS CONFUCIONISTAS DA IDEOLOGIA CHINESA ATUAL


Confucionismo. Texto de Jacque Gernet (1921-2018). V. OS PRINCÍPIOS CONFUCIONISTAS DA IDEOLOGIA CHINESA ATUAL. A IDEOLOGIA NA PRÁTICA E AS SUAS RAÍZES CONFUCIONISTAS. Num território tão vasto e tão diversificado como é o território chinês, o governo adaptado por Mao Zedong, para que exercesse um controlo efectivo, era um governo pela ideologia, o mesmo será dizer, "governo pelos ritos" tão querido a Confúcio. Tal como Confúcio preconizava, só o governo de um imperador benevolente e justo suscitaria, pelo seu exemplo, o apoio dos seus súbditos. Como tal, o Imperador, tal como o junzi, devia prestar atenção a virtudes, tais como a benevolência (), a justiça (), não descorando os ritos (), tratando os seus súbditos como os pais tratam os seus filhos. No caso de Mao Zedong (1893-1976), também o povo obedecia ao governo pela ideologia e não por um condicionamento puramente exterior ou formal. Aliás, de acordo com os textos incluídos na coletânea “Citações Escolhidas de Mao Zedong”, nota-se que o Grande Timoneiro privilegiava o governo pela virtude (仁政). Mao Zedong foi influenciado pelos ideais confucionistas ao ler os Clássicos, que lhe haviam sido ensinados na escola e em casa. E o considerável número de referências aos escritos confucionistas ou neo confucionistas nas obras de Mao Zedong testemunha essa mesma influência. De acordo com um estudo efetuado por V. Holubnychy às principais obras de Mao Zedong, 30 cerca de 22% das citações eram a escritos confucionistas ou neo confucionistas. Algumas das ideias básicas do comunismo chinês haviam já sido defendidas pelos pensadores confucionistas. Assim, começamos pela ideia básica do comunismo que apela para uma igualdade entre as pessoas de todas as condições e de todos os níveis ou classes. Ora, estes ideais igualitários eram uma ideia básica defendida por Confúcio (551 AC 479). A igualdade entre todas as pessoas é sublinhada por Confúcio, especialmente no que diz respeito ao acesso à educação. Dizia ele que todas as pessoas deviam ter iguais oportunidades de acesso ao ensino (Analectos XV:39), qualquer que fosse a sua origem social, pois só assim se poderiam tornar homens dignos e honrosos. Ora esta formação, contribuindo para o aperfeiçoamento do homem, poderia promover a ascensão em sociedade. A educação é também uma área que será bastante privilegiada pela ideologia comunista chinesa. Uma vez no poder, Mao Zedong nunca desvaneceu o seu ânimo em relação à educação, promovendo a abertura de escolas dos diversos níveis em todas as províncias da China. Desta forma, procurava abrir as portas a todos os que desejassem enveredar por esta via, não deixando de sublinhar a importância do conhecimento prático, decorrente da experiência concreta, tal como defendia também Confúcio. Por este motivo, Mao Zedong chegou a incentivar a deslocação dos estudantes para o campo, para que pudessem aprender com a prática. Apesar desta medida ter outros motivos ideológicos relacionados com a explosão de críticas ao Partido e ter ocasionado resultados perversos, a verdade é que o princípio do conhecimento prático permanece o mesmo em Mao e em Confúcio. Tal como Confúcio, Mao também utilizou os princípios do conhecimento prático para alterar a ideologia originária soviética. Ao preconizar a revolta pelos camponeses (31) em vez da ditadura do proletariado, o comunismo chinês passou a diferenciar-se do comunismo soviético. Através, dessa educação prática, Mao pretendia concretizar a mudança de cada indivíduo em relação à ideologia e ao estado de espírito. Posteriormente, esta diferença haveria de trazer alguns dissabores na relação sino-soviética. Mao Zedong defendia que a política devia vir originalmente das massas, sendo que só os interesses e desejos do povo deviam ser tidos em conta para elaborar a política, trata-se do governo "das massas e para as massas". A POLÍTICA ECONÔMICA COM 25 SÉCULOS DE DIFERENÇA Logo que chegou ao poder, Mao Zedong promoveu um programa de desenvolvimento econômico e uma reforma agrária sem precedentes. Já desde jovem que Mao se preocupava com as necessidades e as condições dos camponeses. Por isso, preconizava a redistribuição equitativa das terras e o apressamento dos impostos. Ora, essas teses são retomadas pelo Comité Central do Partido Comunista Chinês e postas em prática. Desde 1950, é levada a cabo uma reforma agrária em grande escala, em que os grandes latifundiários são expropriados das suas terras e se faz a redistribuição das propriedades. 32 Por outro lado, em 1953 teve início o primeiro plano quinquenal, com o objetivo de estimular a indústria pesada. Em 1955, dá-se uma aceleração da coletivização agrícola com a extinção da propriedade privada dos meios de produção e a instituição de cooperativas de produtos agrícolas. Desta forma se expandiu a produção alimentar e se deu uma melhoria na dieta dos camponeses. Posteriormente, em 1958, aquando do segundo plano quinquenal, Mao Zedong fixou objectivos muito mais ambiciosos do que no anterior. O objetivo do que ficou conhecido como o "Grande Salto em Frente" (跃进) era alcançar em 15 anos o nível de industrialização que a Europa tinha conseguido em 150 anos. Esta rápida industrialização seria conseguida através do aumento da produção de aço, o que se afastava do modelo soviético. As cooperativas agrícolas foram também substituídas pelas comunas populares. "As comunas populares respondiam a um triplo objetivo administrativo (descentralização e democratização), econômico (aumento da produção, planificação mais flexível e mais precisa) e político (abolição a termo da separação cidade/campo)."33 Se bem que esta medida não tivesse promovido a real industrialização da China porque o aço recolhido era de reduzida qualidade, a verdade é que as comunas permitiram libertar alguma mão-de-obra dos afazeres domésticos para se dedicarem completamente ao trabalho agrícola ou industrial. O que é interessante verificar é que, com cerca de vinte e quatro séculos de diferença e num contexto diferente, Mêncio (372 AC 289) também preconizou uma redistribuição das terras entre quem as pudesse cultivar, a chamada teoria do "campo comum”. Segundo essa teoria, cada campo deveria ser dividido em nove partes, com fronteiras perfeitamente definidas. Cada família deveria ocupar um quadrado, sendo que o quadrado do centro seria usado coletivamente, cultivado em conjunto por todas as famílias. Somente quando se concluísse o trabalho público, poderia cada um dedicar-se aos seus assuntos privados. Desta forma o povo viveria em harmonia e colaboração mútua. Ora, este aspecto assemelha-se bastante aos ideais coletivos comunistas. Para além disso, Mêncio preconizava também uma redução dos impostos, para não sobrecarregar uma classe em geral desfavorecida que são os camponeses. Porque ambas as filosofias estavam atentas às preocupações do povo, com especial relevância para os camponeses, estas foram muito bem acolhidas pela população. Contudo, devido ao fracasso da política preconizada por Mao Zedong e aos problemas econômicas decorrentes, assim como devido às crescentes críticas de que começava a ser alvo, Mao Zedong lança uma série de medidas destinadas a melhorar as condições económicas. São os "Sessenta artigos" que prevêem a restrição das prerrogativas das comunas populares, e também as "Três liberdades e uma garantia" (三自一包) relativas às produções individuais e à sua comercialização. Estas medidas aparecem numa altura em que Mao havia lançado uma "Campanha de Educação Socialista", em que os membros do Partido Comunista eram exortados a fazer algum trabalho manual. É, então, que Lin Biao, que havia substituído Peng Dehuai (1898-1974) (彭德怀) no cargo de Ministro da Defesa, organiza as citações de Mao Zedong no que ficou conhecido como o Livrinho Vermelho. É interessante fazer a comparação entre este e o livro dos "Analectos" de Confúcio: - são livros básicos do pensamento dos seus mestres; - nenhum dos livros foi escrito pelos autores da ideologia respectiva; têm um formato bastante prático e uma linguagem simples que permite a rápida assimilação da ideologia proposta; - os ensinamentos apresentam-se sob a forma de mandamentos; - contêm considerações sobre elementos chave para a época em que surgiram. Ora, o Livrinho Vermelho teve a sua maior divulgação durante o período da chamada "Grande Revolução Cultural". Esta iniciou-se com um incidente menor relacionado com uma peça escrita por Wu Han (1909-1969), vice-presidente do município de Pequim, e que parecia criticar a opção do Partido por este ter afastado Peng Dehuai (1898-1974) devido às suas críticas à forma de atuação de Mao Zedong. A crítica a esta peça foi publicada em Shanghai, o que levantou uma onda de contestação que, em Pequim, se iniciou com os famosos jornais de parede de grandes caracteres (da zi bao, 大字) elaborados pelos estudantes da Universidade de Pequim. Tentou-se, então, direcionar a crítica para os membros do Partido que fossem opositores de Mao, todos aqueles que tentassem travar as suas reformas. O Livrinho Vermelho veio sublinhar ainda mais a fé em Mao, o que atingiu dimensões impensáveis com a criação dos Guardas Vermelhos. Pode-se dizer que Mao ascendeu, então, para muitos milhares de jovens, à categoria de ídolo e mesmo de deus. Ora, a atenção dos jovens começou também a direcionar-se contra tudo o que tivesse alguma ligação com o antigo regime imperial, o que inclui os princípios confucionistas. Para além dos jovens, também os operários, inicialmente em Shanghai, se começam a manifestar, surgindo aqui os primeiros conflitos sociais, com vista a aumentar os seus salários e a melhorar as suas condições de vida. É, então, necessária a intervenção do exército para normalizar a situação em que se encontrava o país. É neste contexto que surge, em 1974, a crítica de Confúcio e de Lin Biao (1907-1971) (pi lin pi kong, 批林批孔), que havia morrido três anos antes. "Entre as críticas às atitudes de Confúcio, as mais frequentes são as seguintes: - ele era um defensor do sistema escravagista; - ele preconizava o desprezo pelos trabalhadores, «homens vulgares», dedicados aos trabalhos agrícolas; - ele considerava as mulheres como escravas; - a sua filosofia humanista desenvolvia, através das noções de vontade do céu, de benevolência, de piedade filial, a justificação da opressão do povo. Todo o seu pensamento era uma incitação à docilidade e à obediência." Contudo, segundo Almerido Lessa, "apesar da intensidade da ação política desenvolvida, o confucionismo continuou a resistir por força do seu enraizamento cívico, nomeadamente no agregado familiar. Perdido o controlo durante os dez anos caóticos da Revolução Cultural em que os ultra esquerdistas tentaram até em Qufu delapidar as suas relíquias, um sentido novo se estabeleceu." Um outro aspecto interessante comum a Confúcio e a Mao Zedong é que, durante as suas vidas pelos seus seguidores, mas especialmente após as suas mortes, assistiu-se ao culto da personalidade, tornando-se em quase deuses. Na realidade, Confúcio tem na China já diversos templos onde pode ser adorado, como mestre ou sábio, mas nunca como um deus. Será que é necessário que mais algumas décadas passem para que possamos ver erigido um templo a Mao Zedong? Ou será que já poderemos considerar como templo o seu Mausoléu estrategicamente colocado na principal praça de Pequim, a Praça Tiananmen e onde tantos chineses vindos de todos os pontos do território afluem? A verdade é que se assiste atualmente na China a um estranho fenômeno de saudosismo em relação ao maoísmo, com a venda de todo o tipo de amuletos, quadros, pins, etc, com a figura de Mao Zedong. Será que se trata do regresso ao culto da personalidade de Mao Zedong ou de uma crítica velada à liderança atual, mostrando nostalgia por tempos considerados melhores? Não será esta uma manifestação semelhante aos desejos de Confúcio de reavivar os Reis Sábios da Antiguidade que os comunistas em tempos tanto criticaram? A ERA DENG XIAOPING (1904-1997) E DEPOIS. O CONFUCIONISMO E AS GRANDES MUDANÇAS DA ECONOMIA CHINESA Com a morte de Mao Zedong e a condenação do Bando dos Quatro, 38 responsabilizado pelas consequências negativas que as duras políticas implementadas durante uma década (1966-1976) tiveram sobre o povo chinês, a China sofreu uma viragem considerável. A ascensão de novos líderes foi acompanhada por uma série de transformações, especialmente a nível económico, como seja a célebre política de reformas e abertura (gaige kaifang,改革开放政策) preconizada por Deng Xiaoping (邓小平). No Quinto Congresso Nacional do Povo chinês de fevereiro de 1978, sob inspiração de Deng, é proposto um novo rumo para a economia no sentido da modernização da agricultura, da indústria, da defesa nacional, da ciência e técnica, são as chamadas “Quatro modernizações” (四个现代化:工农,科技,国防). No terceiro plenário do XI Comité Central, Deng Xiaoping (1904-1997) propôs uma série de reformas com o objetivo de implementar a economia de mercado em algumas zonas e a abertura aos investimentos estrangeiros. E este novo caminho parece ter saído reforçado com o relatório do primeiro-ministro Zhao Ziyang (1919-2005) 赵紫阳), no XIII Congresso do PCC de outubro de 1982, intitulado "Avanço no Caminho para o Socialismo de Características Chinesas", onde se estabelece a necessidade de distinção entre a acção do governo e a do partido. Trata-se do que Deng Xiaoping mais tarde chamaria uma economia socialista de mercado (社会主义市场 经济). Esta mudança de que é alvo a economia chinesa passa também pela integração na economia mundial, como é o caso da adesão da China ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e ao Banco Mundial (BM), em 1980, e à Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001. Contudo, estas grandes mudanças provocaram alguma instabilidade económica e, consequentemente social, o que esteve na base de algumas demonstrações estudantis durante o primeiro semestre de 1989, após a morte de Hu Yaobang (1915-1989) (胡耀邦). Os slogans pugnavam pela reforma do sistema político, o que é de certa forma corroborado por Zhao Ziyang (1919-2005) como a única forma de fazer face às dificuldades encontradas na reforma do sistema económico. Tornando-se estas movimentações incontroláveis, o que atinge o auge a 4 de junho, os líderes não encontraram outra solução senão a repressão, o que foi altamente criticado por toda a comunidade internacional. Nessa altura, de acordo com James Wang,39 os líderes chineses deparavam-se com três ordens de problemas ideológicos: a adaptação do marxismo à nova realidade chinesa, pelo que as reformas económicas não se deviam desviar do socialismo, seguindo os princípios da propriedade pública dos meios de produção, «a cada um de acordo com o seu trabalho» e a economia socialista planeada para as maiores produções; a redefinição do socialismo, cujo princípio nunca devia ser violado, mesmo em face das experiências de economia de mercado, pois se bem que Deng Xiaoping tenha afirmado que «Enriquecer é glorioso», isso devia significar prosperidade para toda a população (é o socialismo com características chinesas); evitar a corrosiva influência da burguesia, tal como preconizado na resolução do PCC de 1986 sobre a cultura e a ideologia, assegurando o cumprimento dos "Quatro princípios básicos" ( 项基本原则) - a estrada socialista, a ditadura popular, a liderança do partido e o pensamento marxista-leninista. Em consequência das reformas preconizadas por Deng, a economia chinesa atingiu um verdadeiro boom em 1992/93, considerando-a, o FMI, em 1993, como a terceira maior economia do mundo. O sucesso foi de tal ordem que na última alteração de 1999 da Constituição de 1982, se consagrou a teoria de Deng Xiaoping como um dos elementos da ideologia chinesa, ao lado do marxismo-leninismo e do pensamento de Mao Zedong. Diz o sexto parágrafo do Preâmbulo: "Sob a liderança do Partido Comunista da China e a orientação do marxismo-leninismo, o Pensamento de Mao Zedong e a Teoria de Deng Xiaoping, o povo chinês de todos os grupos étnicos continuarão a aderir à ditadura popular democrática e à via socialista, e a defender a reforma e a abertura ao mundo exterior, a melhorar substancialmente as instituições socialistas, a desenvolver uma economia de mercado, a promover uma democracia socialista, a melhorar o sistema legal socialista e a trabalhar arduamente e com autoconfiança para modernizar a indústria, a agricultura, a defesa nacional e a ciência e tecnologia do país, passo a passo para fazer da China uma nação socialista próspera, culturalmente avançada e democrática."40 No entanto, tal como dizia Deng Xiaoping, quando se abrem as janelas, tudo entra, inclusivamente moscas. A abertura da China ao exterior impulsionou o seu desenvolvimento económico mas acelerou também a entrada de ideias e valores ocidentais. Se estas ideias não forem foram completamente absorvidas pela sociedade chinesa, poderá dar origem ao aparecimento de fricções entre os valores chineses tradicionais e os modernos valores ocidentais. Numa era de globalização 41 em que nos encontramos, principalmente no plano econômico, o que se passa numa região do globo não pode deixar de influenciar todo o mundo, estimulando-se assim os fluxos de diferente natureza e provocando uma inter-penetração de valores e princípios. Se por um lado, os modos de vida e formas de pensar tendem a estandardizar-se segundo o modelo ocidental, por outro lado, verifica-se um regresso às origens, às tradições que tende em afirmar-se. Segundo Victor Olea (1950-  ) e Abelardo Flores, “Em presença da globalidade e da imposição de valores e modelos culturais exógenos (ocidentais), às vezes como resposta e outras como auto conservação e princípio de vida, multiplicam-se as expressões locais, regionais e nacionais, e perante a homogeneidade que comporta a globalidade e o capitalismo exacerbam-se as diferenças e o carácter heterogéneo da sociedade e do mundo dos nossos dias.” Contrapondo-se a um sistema decadente dominado pelas potências ocidentais, a sociedade chinesa tem manifestado um desejo de afirmação dos valores tradicionais. Existe ainda questão da relação existente entre o confucionismo e a modernização. Alguns autores defendem que o confucionismo é anti-modernização, o que é desmentido mais flagrantemente pelos casos de sucesso econômico do Japão e dos Quatro tigres asiáticos - a Coreia do Sul, Hong Kong, Taiwan e Singapura - sociedades de tradição confucionista que apresentaram na década de 60 e 70 respectivamente elevados graus de desenvolvimento econômico. E Zhang Wei-Bin justifica esse sucesso econômico: “A bem sucedida industrialização das regiões confucionistas é caracterizada por uma forte liderança governamental, estrita competição na educação, força de trabalho disciplinada, e princípios de igualdade (no sentido confucionista) medidas em termos de mérito e frugalidade.”  Na realidade, características como a liberdade económica com intervenção estatal, a ênfase na acumulação de capital humano através da educação prática e a estrutura social hierárquica baseada no talento e mérito, que se verificam na atualidade em regiões como Japão, Coreia, Singapura , Taiwan, Hong Kong e mesmo China continental, atribuem-se à filosofia confucionista. Na realidade, algumas das características confucionistas existentes nestas sociedades têm sido o núcleo do tão falado conceito de “valores asiáticos” (亚洲价值观), a chamada “Asian Way”. No caso da China, desde as reformas de Deng Xiaoping, a economia chinesa tem vindo a crescer rapidamente. Por isso, aparentemente os valores confucionistas que caracterizam a sociedade chinesa não têm sido entrave à modernização económica, antes pelo contrário. No entanto, tal como sublinha o vice-presidente da Associação Confucionista Chinesa, Tang Yijie ( 汤一介 ), há que analisar a contribuição do confucionismo para a modernização pois “há alguns aspectos do pensamento confucionista que ajudam na modernização e outros que não a favorecem. Por exemplo, o facto do confucionismo enfatizar a harmonia entre as pessoas favorece a modernização, pois uma empresa deve favorecer a harmonia interna, enquanto externamente pode haver competição. Desta forma se pode fortalecer. (…) O confucionismo também tem um ponto fraco que é a ênfase na hierarquia. As classes inferiores devem uma obediência às classes superiores, não podendo levantar uma opinião diferente, tenha ou não razão. Mas isto não é assim”. Tu Wei-ming (1940 - ) também fez uma sistematização dos pontos do confucionismo favoráveis e desfavoráveis à modernização. Segundo ele, existem dois tipos de confucionismo: o confucionismo politizado e o confucionismo tradicional. “A ideologia confucionista muito politizada desempenhou tradicionalmente um papel muito negativo, desencorajando o espírito empresário, as iniciativas individuais, e mesmo as maiores inovações. É esta parte da razão pela qual a China falhou em modernizar em face do desafio do Ocidente. (…) Além desta forma fortemente politizada de Confucionismo, temos a tradição confucionista como forma de auto compreensão humana, uma forma de vida, com especial ênfase no «globo» multidimensional da pessoa, não somente em casa, mas também no Estado, a pessoa como centro das relações, mas também como alguém que, através do processo de autodesenvolvimento, abre-se a si mesma a outras dimensões da inter-relação humana”.  É este último tipo de confucionismo que promove o desenvolvimento econômico e também o desenvolvimento intelectual pessoal. Finalmente, não nos esqueçamos também que Confúcio chegou a ser apelidado do “Grande Reformador”, e ainda que Kang Youwei (1858-1927), o precursor das Grandes Reformas de finais do séc. XIX, também adotou o confucionismo como modelo. Confúcio dizia: “O Bom Mestre é aquele que ao recuperar o antigo, é capaz de encontrar modernidade” (Analectos II:11) Para além de impulsionar a modernização e o progresso, os valores confucionistas têm também desempenhado um papel de estabilizador da sociedade, devido a alguns efeitos negativos provocados pela implementação das reformas econômicas. Ao longo dos tempos, o confucionismo sempre serviu como cimento, permitindo à China modernizar-se economicamente e atingir níveis de crescimento elevados, mas ao mesmo tempo mantendo a estabilidade social e a legitimidade política. Mesmo apesar de todas as críticas de que foi alvo, especialmente aquando da Revolução Cultural, os valores confucionistas não foram abandonados pela sociedade chinesa, porque já faz parte da sua génese, faz parte da vivência do povo, forjado nas alterações de que foi alvo o seu meio. A ética confucionista serve como verdadeira fonte de toda a estabilidade chinesa, o princípio de todas as normas que regulam a sociedade chinesa, o seu Princípio Supremo, segundo a terminologia de Zhou Dunyi (1017-1073). Segundo Tu Wei-Ming a ética confucionista inclui “a ideia do eu como centro das relações, um sentido de comunidade da confiança moldado na família, a importância de um ritual estabelecido regulando o comportamento diário normal, a primazia da educação como construtiva da personalidade, a importância da liderança exemplar na política, a aversão por litígio civil, a crença na formação de consensos e a prática da auto-cultivação”. E estes aspectos continuam a caracterizar a sociedade chinesa na atualidade. Especialmente desde o Grande Salto em Frente, as relações de poder na China têm sido marcadas por uma grande personalização, em que as relações pessoais são valorizadas, tal como defendia Confúcio. Estabeleceram-se redes complexas entre os indivíduos e o poder, as chamadas guanxi(关系), pelo que é a posição do indivíduo em relação ao poder que determina o seu nível de vida. Todos fazem parte da mesma família, embora uns com mais influência do que outros. Por isso na China, o controlo burocrático é muito ténue, nomeadamente devido à extensão territorial e à variedade da população. Deve haver, então, por parte de cada um o desejo de obedecer a uma mesma cabeça, no caso à ideologia do Estado. Para que isso se faça de uma forma espontânea, o Estado deve zelar pelo bem-estar do povo, qual governo benevolente pregado pelos confucionistas.50 Foi exatamente com o fim de promover uma China rica e próspera, que Deng Xiaoping lançou as reformas económicas de 1978. Mais uma vez aqui os valores confucionistas aparecem como estabilizador da sociedade chinesa, pelo que entramos num ciclo vicioso em que o confucionismo foi uma das raízes da ideologia comunista chinesa e é agora um dos principais garantes da sua estabilidade. Tal como sistematizou Geng Yun Zhi, a herança confucionista chinesa baseia-se em "quatro ensinamentos fundamentais: 1 - um ensino político, segundo o qual o príncipe sábio deve governar em função de princípios morais; 2 - um ensino ético privilegiando as relações familiares; 3 - um ensino relativo à "cultivação de si" com vista à formação de um espírito sólido; 4 - um ensino intelectual destinado a promover o exercício do conhecimento e uma pedagogia”. Livro Os Princípios Confucionistas da Ideologia Chinesa Atual. Abraço. Davi


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