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Texto de Alan Kardec. Livro O Céu e o Inferno. Capítulo 4. O
INFERNO. Intuição das penas futuras • O inferno cristão imitado do inferno
pagão • Os limbos • Quadro do inferno pagão • Esboço do inferno cristão.
INTUIÇÃO DAS PENAS FUTURAS. Desde todas as épocas o homem acreditou, por
intuição, que a vida futura seria feliz ou infeliz, conforme o bem ou o mal
praticado neste mundo. A ideia que ele faz, porém, dessa vida, está em relação
com o seu desenvolvimento, senso moral e noções mais ou menos justas do bem e
do mal. As penas e recompensas são o reflexo dos instintos predominantes. Os
povos guerreiros fazem consistir a suprema felicidade nas honras conferidas à
bravura; os caçadores, na abundância da caça; os sensuais, nas delícias da
voluptuosidade. Dominado pela matéria, o homem não pode compreender senão
imperfeitamente a espiritualidade, imaginando para as penas e gozos futuros um
quadro mais material que espiritual; afigura-se que deve comer e beber no outro
mundo, porém, melhor que na Terra. Mais tarde já se encontra nas crenças sobre
a vida futura um misto de espiritualismo e materialismo: a beatitude
contemplativa concorrendo com o inferno das torturas físicas. Não podendo compreender
senão o que vê, o homem primitivo naturalmente moldou o seu futuro pelo
presente; para compreender outros tipos, além dos que tinha à vista, ser-lhe-ia
preciso um desenvolvimento intelectual que só o tempo deveria completar. Também
o quadro por ele ideado sobre as penas futuras não é senão o reflexo dos males
da humanidade, em mais vasta proporção, reunindo-lhe todas as torturas,
suplícios e aflições que achou na Terra. Nos climas abrasadores imaginou um
inferno de fogo, e nas regiões boreais um inferno de gelo. Não estando ainda
desenvolvido o sentido que mais tarde o levaria a compreender o mundo
espiritual, não podia conceber senão penas materiais; e assim, com pequenas
diferenças de forma, os infernos de todas as religiões se assemelham. O inferno
cristão imitado do inferno pagão. O inferno pagão, descrito e dramatizado pelos
poetas, foi o modelo mais grandioso do gênero, e perpetuou-se no seio dos
cristãos, onde, por sua vez, houve poetas e cantores. Comparando-os,
encontram-se neles — salvo os nomes e variantes de detalhe — numerosas
analogias; ambos têm o fogo material por base de tormentos, como símbolo dos
sofrimentos mais atrozes. Mas coisa singular! Os cristãos exageraram em muitos
pontos o inferno dos pagãos. Se estes tinham o tonel das Danaides, a roda de
Íxion, o rochedo de Sísifo, eram estes suplícios individuais; os cristãos, ao
contrário, têm para todos, sem distinção, as caldeiras ferventes cujos tampos
os anjos levantam para ver as contorções dos supliciados; e Deus, sem piedade,
ouve-lhes os gemidos por toda a eternidade. Jamais os pagãos descreveram os
habitantes dos Campos Elíseos deleitando a vista nos suplícios do Tártaro. Os
cristãos têm, como os pagãos, o seu rei dos infernos — Satã — com a diferença,
porém, de que Plutão se limitava a governar o sombrio império, que lhe coubera
em partilha, sem ser mau; retinha em seus domínios os que haviam praticado o
mal, porque essa era a sua missão, mas não induzia os homens ao pecado para
desfrutar, tripudiar dos seus sofrimentos. Satã, no entanto, recruta vítimas
por toda parte e regozija-se ao atormentá-las com uma legião de demônios
armados de forcado a revolvê-las no fogo. Já se tem discutido seriamente sobre
a natureza desse fogo que queima, mas não consome as vítimas. Tem-se mesmo perguntado
se seria um fogo de betume. O inferno cristão nada cede, pois, ao inferno
pagão. As mesmas considerações que, entre os antigos, tinham feito localizar o
reino da felicidade, fizeram circunscrever igualmente o lugar dos suplícios.
Tendo-se colocado o primeiro nas regiões superiores, era natural reservar ao
segundo os lugares inferiores, isto é, o centro da Terra, para onde se
acreditava servirem de entradas certas cavidades sombrias, de aspecto terrível.
Os cristãos também colocaram aí, por muito tempo, a habitação dos condenados. A
este respeito, frisemos ainda outra analogia: O inferno dos pagãos continha de
um lado os Campos Elíseos e do outro o Tártaro; o Olimpo, morada dos deuses e
dos homens divinizados, ficava nas regiões superiores. Segundo a letra do
Evangelho, Jesus desceu aos infernos, isto é, aos lugares baixos para deles
tirar as almas dos justos que lhe aguardavam a vinda. Os infernos não eram,
portanto, um lugar unicamente de suplício: estavam, tal como para os pagãos,
nos lugares baixos. A morada dos anjos, assim como o Olimpo, era nos lugares
elevados. Colocaram-na para além do céu estelar, que se reputava limitado. Esta
mistura de ideias cristãs e pagãs nada tem de surpreendente. Jesus não podia de
um só golpe destruir inveteradas crenças, faltando aos homens conhecimentos
necessários para conceber a infinidade do Espaço e o número infinito dos
mundos; a Terra para eles era o centro do universo; não lhe conheciam a forma
nem a estrutura interna; tudo se limitava ao seu ponto de vista: as noções do
futuro não podiam ir além dos seus conhecimentos. Jesus encontrava-se, pois, na
impossibilidade de os iniciar no verdadeiro estado das coisas, mas não
querendo, por outro lado, com sua autoridade, sancionar preconceitos,
absteve-se de os retificar, deixando ao tempo essa missão. Ele limitou-se a
falar vagamente da vida bem-aventurada, dos castigos reservados aos culpados,
sem referir-se jamais nos seus ensinos a castigos e suplícios corporais, que
constituíram para os cristãos um artigo de fé. Eis aí como as ideias do inferno
pagão se perpetuaram até os nossos dias. E foi preciso a difusão das modernas
luzes, o desenvolvimento geral da inteligência humana para se lhe fazer
justiça. Como, porém, nada de positivo houvesse substituído as ideias recebidas,
ao longo período de uma crença cega sucedeu, transitoriamente, o período de
incredulidade a que vem pôr termo a Nova Revelação. Era preciso demolir para
reconstruir, visto como é mais fácil insinuar ideias justas aos que em nada
creem, sentindo que algo lhes falta, do que fazê-lo aos que possuem uma ideia
robusta, ainda que absurda. Localizados o Céu e o inferno, as seitas cristãs
foram levadas a não admitir para as almas senão duas situações extremas: a
felicidade perfeita e o sofrimento absoluto. O purgatório é apenas uma posição
intermediária e passageira, ao sair da qual as almas passam, sem transição, à
mansão dos justos. Outra não pode ser a hipótese, dada a crença na sorte
definitiva da alma após a morte. Se não há mais de duas habitações, a dos eleitos
e a dos condenados, não se podem admitir muitos graus em cada uma sem admitir a
possibilidade de os franquear e, conseguintemente, o progresso. Ora, se há
progresso, não há sorte definitiva, e se há sorte definitiva, não há progresso.
Jesus resolveu a questão quando disse: “Há muitas moradas na casa de meu Pai”.
(João, 14:2). Os limbos. É verdade que a Igreja admite uma posição especial em
casos particulares. As crianças falecidas em tenra idade, sem fazer mal algum,
não podem ser condenadas ao fogo eterno, mas também, não tendo feito bem, não
lhes assiste direito à felicidade suprema. Ficam nos limbos, diz-nos a Igreja,
nessa situação jamais definida, na qual, se não sofrem, também não gozam da
bem-aventurança. Esta, sendo tal sorte irrevogavelmente fixada, fica-lhes
defesa para sempre. Tal privação importa, assim, um suplício eterno e tanto
mais imerecido, quanto é certo não ter dependido dessas almas que as coisas
assim sucedessem. O mesmo se dá quanto ao selvagem que, não tendo recebido a
graça do batismo e as luzes da Religião, peca por ignorância, entregue aos
instintos naturais. Certo, este não tem a responsabilidade e o mérito cabíveis
ao que procede com conhecimento de causa. A simples lógica repele uma tal
doutrina em nome da Justiça de Deus, que se contém integralmente nestas
palavras do Cristo: “A cada um, segundo as suas obras.” Obras, sim, boas ou
más, porém praticadas voluntária e livremente, únicas que comportam
responsabilidade. Neste caso não podem estar a criança, o selvagem e tampouco
aquele que não foi esclarecido. Quadro do inferno pagão. O conhecimento do
inferno pagão nos é fornecido quase exclusivamente pela narrativa dos poetas.
Homero e Virgílio dele deram a mais completa descrição, devendo, contudo,
levar-se em conta as necessidades poéticas impostas à forma. A descrição de
Fénelon, no Aventuras de Telêmaco, posto que haurida na mesma fonte quanto às
crenças fundamentais, tem a simplicidade mais concisa da prosa. Descrevendo o
aspecto lúgubre dos lugares, preocupa-se, principalmente, em realçar o gênero
de sofrimento dos culpados, estendendo-se sobre a sorte dos maus reis com vista
à instrução do seu régio discípulo. Por muito popular que seja esta obra, nem
todos têm presente à memória a sua descrição, ou não meditaram sobre ela de
modo a estabelecer comparação, e assim acreditamos de utilidade reproduzir os
tópicos que mais diretamente interessam ao nosso assunto, isto é, os que se
referem especialmente às penas individuais. “Ao entrar, Telêmaco14 ouve gemidos
de uma sombra inconsolável: — Qual é — pergunta-lhe — a vossa desgraça? Quem
fostes na Terra? — Nabofarzan — responde a sombra —rei da soberba Babilônia. Ao
ouvir meu nome tremiam todos os povos do Oriente; fazia-me adorar pelos
babilônios num templo todo de mármore, representado por uma estátua de ouro, a
cujos pés se queimavam noite e dia os preciosos perfumes da Etiópia; jamais
alguém ousou contradizer-me sem de pronto ser punido; inventavam-se dia a dia
prazeres novos para tornar-me a vida mais e mais deliciosa. “Moço e robusto,
quantos, infelizmente! quantos prazeres me restavam ainda por usufruir no
trono! Mas certa mulher, que eu amava e que me não correspondia, fez-me sentir
claramente que eu não era um deus: envenenou-me, e... nada mais sou. As minhas
cinzas foram ontem encerradas com pompa em urna de ouro: choraram, arrancaram
cabelos, pretenderam fingidamente atirar-se às chamas da minha fogueira, a fim
de morrerem comigo, vão ainda gemer junto do túmulo das minhas cinzas, mas
ninguém me deplora; a minha memória horroriza a própria família, enquanto aqui
embaixo sofro já horríveis suplícios.” Telêmaco, compungido ante esse
espetáculo, diz-lhe: — Éreis vós verdadeiramente feliz durante o vosso reinado?
Sentíeis porventura essa paz suave sem a qual o coração se conserva opresso e
abatido em meio das delícias? — Não — respondeu o babilônio —, não sei mesmo o
que quereis dizer. Os sábios exaltam essa paz como bem único; quanto à raiva,
nunca a senti, meu coração agitava-se continuamente por novos desejos de temor
e de esperança. Procurava aturdir-me com o abalo das próprias paixões, tendo o
cuidado de entreter essa embriaguez para torná-la permanente, contínua; o menor
intervalo de razão, de calma, ser-me-ia muito amargo. Eis a paz que fruí;
qualquer outra parece-me antes uma fábula, um sonho. São esses os bens que
choro. Assim falando, o babilônio chorava qual homem pusilânime, enervado pelas
prosperidades, desabituado de suportar resignadamente uma desgraça. Havia junto
dele alguns escravos mortos em homenagem honrosa aos seus funerais. Mercúrio os
entregara a Caronte com o seu rei, outorgando-lhes poder absoluto sobre esse
rei, a quem tinham servido na Terra. Essas sombras de escravos não temiam a
sombra de Nabofarzan, que retinham encadeada, infligindo as mais cruéis afrontas.
Dizia-lhe uma: — Não éramos nós homens iguais a ti? Insensato que eras,
julgavas-te um deus, a ponto de esqueceres a tua origem comum a todos os
homens. Outra, para insultá-lo, dizia: — Tinhas razão em não querer que por
homem te houvessem, porque na verdade eras um monstro desumano. Ainda outra: —
Então? Onde estão agora os teus aduladores? Nada mais tens a dar, desgraçado!
Nem mesmo o mal podes fazer mais; eis-te reduzido a escravo dos teus escravos.
A justiça dos deuses tarda, mas não falha. A estas frases duras Nabofarzan se
rojava por terra, arrancando os cabelos em acesso de raiva e desespero, mas
Caronte instigava os escravos: — Arrastem-no pela corrente, levantem-no contra
a vontade. Não possa ele consolar-se escondendo a sua vergonha: preciso é que
todas as sombras do Estige a testemunhem como justificativa aos deuses, que por
tanto tempo toleraram o reinado terreno deste ímpio. E ele avista logo, bem
perto de si, o negro Tártaro evolando escuro e espesso fumo, cujo cheiro
mefítico daria a morte se se espalhasse pela morada dos vivos. Esse fumo
envolvia um rio de fogo, um turbilhão de chamas, cujo ruído, semelhante às
torrentes mais caudalosas quando se despenham de altos rochedos em profundos
abismos, concorria para que nada se ouvisse nesses lugares tenebrosos.
Telêmaco, secretamente animado por Minerva, entra sem medo nesse báratro. Viu
primeiramente um grande número de homens que tinham vivido nas mais humildes
condições, punidos por haverem procurado riquezas por meio de fraudes, traições
e crueldade. Aí notou muitos ímpios hipócritas que, simulando amar a Religião,
dela se tinham servido como de um belo pretexto para satisfazerem ambições e
zombarem dos crédulos: os que haviam abusado até da própria Virtude, o maior
dom dos deuses, eram punidos como os mais celerados de todos os homens. Os
filhos que haviam degolado seus pais; as esposas que mancharam as mãos no
sangue dos maridos; os traidores que venderam a pátria, violando todos os
juramentos, sofriam, apesar de tudo, penas menores que aqueles hipócritas. Os
três juízes infernais assim o queriam, por esta razão: os hipócritas não se
contentam com ser maus como os demais ímpios, porém, querem passar por bons e
concorrem por sua falsa virtude para a descrença e corrupção da verdade. Os deuses,
por eles zombados e desprezados perante os homens, empregam com prazer todo o
seu poderio para se vingarem de tais insultos. Perto destes, outros homens
aparecem, que vulgarmente se julgam isentos de culpa, mas que os deuses
perseguem desapiedadamente: são os ingratos, os mentirosos, os aduladores que
louvaram o vício, os críticos perversos que procuraram enodoar a mais pura
virtude; enfim aqueles que, julgando temerariamente das coisas, sem as conhecer
a fundo, prejudicaram por isso a reputação dos inocentes. Telêmaco, vendo os
três juízes sentados a condenarem um homem, ousou perguntar-lhes quais os seus
crimes. O condenado, tomando a palavra, de pronto exclamava: — Nunca fiz mal
algum; todo o meu prazer era praticar o bem: fui sempre generoso, justo, liberal
e compassivo; que se pode, pois, exprobrar-me? Minos então lhe disse: — Nenhuma
acusação se te faz quanto aos homens, porém a estes menos não devias que aos
deuses? Que justiça, pois, é essa de que te vanglorias? Para com os homens, que
nada são, não faltaste jamais a qualquer dever; foste virtuoso, é certo, mas só
atribuíste essa virtude a ti próprio, esquecendo os deuses que ti deram, tudo
porque querias gozar do fruto da tua virtude encerrado em ti mesmo: foste a tua
divindade. Mas os deuses, que tudo fizeram, e o fizeram para si, não podem
renunciar aos seus direitos; e, pois que quiseste pertencer-te e não a eles,
entregar-te-ão a ti mesmo, esquecidos de ti como deles te esqueceste. Procura
agora, se podes, o consolo em teu próprio coração. Eis-te agora para sempre
separado dos homens, aos quais querias agradar; eis-te só contigo, tu que eras
o teu ídolo: fica sabendo que não há verdadeira virtude sem respeito e amor aos
deuses, a quem tudo é devido. A tua falsa virtude, que por muitos anos deslumbrou
os ingênuos, vai ser confundida. Não julgando os homens o vício e a virtude
senão pelo que lhes agrada ou os incomoda, são cegos quanto ao bem e quanto ao
mal. Aqui, uma luz divina derroga seus julgamentos artificiais, condenando
muita vez o que eles admiram, e outras vezes justificando o que condenam. A
estas palavras, o filósofo, como que ferido por um raio, mal podia suster-se. O
deleite que tivera outrora em rever a sua moderação, a coragem, as inclinações
generosas, transformavam-se em desespero. A visão do próprio coração inimigo
dos deuses, promove-lhe suplícios; vê, e não pode deixar de se ver; vê a
vaidade dos preconceitos humanos, aos quais buscava lisonjear em todas as suas
ações. Opera-se uma revolução radical em todo o seu íntimo, como se lhe
revolvessem todas as entranhas; reconhece-se não encontrar apoio no coração; a
consciência, cujo testemunho tão agradável lhe fora, revolta-se contra ele,
incriminando-lhe amargamente o desvario, a ilusão de todas as suas virtudes,
que não tiveram por princípio e por fim o culto da divindade, e ei-lo
perturbado, consternado, preso da vergonha, do remorso, do desespero. As Fúrias
não o atormentam, bastando-lhes o terem-na entregado a si próprio, para que
expie pelo coração a vingança dos deuses desprezados. Procurando a treva não
pode encontrá-la, porquanto inoportuna luz o segue por toda parte; de todos os
lados os raios penetrantes da verdade vingam a verdade que ele desdenhou
seguir. Tudo que amava se lhe torna odioso como fonte dos seus males infindáveis.
Murmura consigo: Ó insensato! não conheci, pois, nem os deuses, nem os homens,
nem a mim mesmo, porque jamais amei o verdadeiro e único bem; todos os meus
passos foram tresloucados; a minha sabedoria não passava de loucura; a minha
virtude mais não era que o orgulho impiedoso e cego: eu era enfim o meu ídolo!
Finalmente reconheceu Telêmaco os reis condenados por abuso de poder. De um
lado, vingadora Fúria apresentava-lhes um espelho a refletir a monstruosidade
dos seus vícios: aí viam, sem poder desviar os olhos, a vaidade grosseira e
ávida de ridículos louvores; a crueldade para com aqueles a quem deveriam ter
feito felizes; o temor da verdade, a insensibilidade para com as virtudes, a
predileção pelos cobardes e aduladores, a falta de aplicação, a inércia, a
indolência; a desconfiança ilimitada; o fausto e a magnificência excessivos
calcados sobre a ruína dos povos; a ambição de glórias vãs à custa do sangue
dos concidadãos; a fereza, enfim, que procura a cada dia novas delícias nas
lágrimas e no desespero de tantos infelizes. Esses reis reviam-se
constantemente nesse espelho, achando-se mais monstruosos e horrendos que a
própria Quimera vencida por Belerofonte, que a Hidra de Lerna abatida por
Hércules e que Cérbero vomitando por suas três goelas um sangue negro e
venenoso, capaz de empestar toda a raça de mortais que vivem sobre a Terra. De
outro lado, outra Fúria lhes repetia injuriosamente todos os louvores que os
lisonjeiros lhes dispensavam em vida e mostrava-lhes ainda outro espelho em que
se viam tais como a lisonja os pintara. Da antítese dos dois quadros brotava o
suplício do amor-próprio. Era para notar que os piores dentre esses reis, foram
os que tiveram maiores e mais fulgentes louvores durante a vida, por isso que
os maus são mais temidos que os bons e exigem impudicamente as vis adulações
dos poetas e oradores do seu tempo. Na profundeza dessas trevas, onde só
insultos e escárnios padecem, ouvem-se os gemidos agoniados. Nada os cerca que
os não repila, contradiga e confunda em contraste ao que supunham na vida,
zombando dos homens, convictos de que tudo era feito para servi-los. No
Tártaro, entregues a todos os caprichos de certos escravos, estes lhes fazem
provar por sua vez a mais cruel servidão; humilhados dolorosamente, não lhes
resta esperança alguma de modificar ou abrandar o cativeiro. Qual bigorna sob
as marteladas dos Ciclopes, quando Vulcano os acoroçoa nas fornalhas
incandescentes do Monte Etna, assim permanecem, mercê das pancadas desses
escravos transformados em verdugos. Aí viu Telêmaco pálidos semblantes,
hediondos e consternados. Negra tristeza essa que consome estes criminosos,
horrorizados de si próprios, sem poderem dela despojar-se como da própria
natureza; não têm outro castigo às suas faltas que não as mesmas faltas; veem-nas
incessantemente na plenitude da sua enormidade, apresentando-se sob a forma de
espectros horríveis que os perseguem. Procurando eximir-se a essa perseguição,
buscam morte mais potente do que a que os separou do corpo. Desesperados,
invocam uma morte capaz de extinguir a consciência: pedem aos abismos que os
absorvam, a fim de se furtarem aos raios vingadores da verdade que os
atormenta, mas continuam votados à vingança que sobre eles destila gota a gota
e que jamais estancará. A verdade que temem ver constitui-se em suplício;
veem-na, contudo, e só têm olhos para vê-la erguer-se contra eles, ferindo-os,
despedaçando-os, arrancando-os de si mesmos, como o raio, sem nada destruir
exteriormente, a penetrar-lhes o âmago das entranhas. Entre os seres que lhe
eriçavam os cabelos, viu Telêmaco vários e antigos Reis da Lídia punidos por
haverem preferido ao trabalho as delícias de uma vida inativa, quando aquele
deve ser o consolo dos povos e, como tal, inseparável da realeza. Estes reis
lastimavam-se reciprocamente a cegueira. Dizia um a outro, que fora seu filho:
— Não vos tinha eu recomendado tantas vezes durante a vida e ainda antes da
morte que reparásseis os males ocorridos por negligência minha? — Ah!
desgraçado pai! — dizia o filho — fostes vós que me perdestes! foi o vosso
exemplo que me inspirou o fausto, o orgulho, a voluptuosidade e a crueldade
para com os homens! Vendo-vos governar com tanta incúria, cercado de aduladores
infames, habituei-me a prezar a lisonja e os prazeres. Acreditei que os homens
eram para os reis o que os cavalos e outros animais de carga são para aqueles,
isto é, animais que só se consideram enquanto proporcionam serviços e
comodidades. “Acreditei-o, e fostes vós que fizestes crer... sofrendo agora
tantos males por vos haver imitado.” A estas recriminações aliavam as mais
acerbas blasfêmias, como que possuídos de raiva bastante para se despedaçarem
mutuamente. Quais notívagos mochos, em torno desses reis corvejavam as
suspeitas cruéis, os vãos receios e desconfianças que vingam os povos da dureza
de seus reis, a ganância insaciável das riquezas, a falsa glória sempre
tirânica e a moleza displicente que duplica os sofrimentos sem a compensação de
sólidos prazeres. Viam-se muitos desses reis severamente punidos, não por males
que tivessem feito, mas por terem negligenciado o bem que poderiam e deveriam
fazer. Todos os crimes dos povos, provenientes da desídia na observância das
leis eram imputados aos reis, que não devem reinar senão para que as leis
exerçam seu ministério. Imputavam-se também todas as desordens decorrentes do
fausto, do luxo e dos demais excessos que impelem os homens à violência,
instigando-os à aquisição de bens com o desprezo das leis. Sobretudo recaía o
rigor sobre os reis que, em vez de serem bons e vigilantes pastores dos povos,
só cuidavam de devastar o rebanho, quais lobos devoradores. O que mais
consternou Telêmaco, porém, foi ver nesse abismo de trevas e males um grande
número de reis que, tendo passado na Terra pelos melhores, condenaram-se às
penas do Tártaro por se terem deixado guiar por homens ardilosos e maus. Tal
punição correspondia aos males que O inferno tinham deixado praticar em nome da
sua autoridade. Ademais, a maior parte desses reis não foram nem bons nem maus,
tal a sua fraqueza; não os atemorizava a ignorância da verdade, e assim como
nunca experimentaram o prazer da virtude, jamais poderiam fazê-lo consistir na
prática do bem. Esboço do inferno cristão. A opinião dos teólogos sobre o
inferno resume-se nas seguintes citações.26 Esta descrição, sendo tomada dos
autores sagrados e da vida dos santos, pode tanto melhor ser considerada como
expressão da fé ortodoxa na matéria, quanto é ela reproduzida a cada instante,
com pequenas variantes, nos sermões do púlpito evangélico e nas instruções
pastorais. “Os demônios são puros Espíritos, e os condenados, presentemente no
inferno, podem ser considerados puros Espíritos, uma vez que só a alma aí
desce, e os restos entregues à terra se transformam em ervas, em plantas, em
minerais e líquidos, sofrendo inconscientemente as metamorfoses constantes da
matéria. Os condenados, porém, como os santos, devem ressuscitar no dia do
juízo final, retomando, para não mais deixá-los, os mesmos corpos carnais que
os revestiam na vida. Os eleitos ressuscitarão, contudo, em corpos purificados
e resplendentes, e os condenados em corpos maculados e desfigurados pelo
pecado. Isso os distinguirá, não havendo mais no inferno puros Espíritos, porém
homens como nós. Conseguintemente, o inferno é um lugar físico, geográfico,
material, uma vez que tem de ser povoado por criaturas terrestres, dotadas de
pés, mãos, boca, língua, dentes, ouvidos, olhos semelhantes aos nossos, sangue
nas veias e nervos sensíveis. Onde estará esse inferno? Alguns doutores o têm
colocado nas entranhas mesmas do nosso globo; outros não sabemos em que
planeta, sem que o problema se haja resolvido por qualquer concílio. Estamos,
pois, quanto a este ponto, reduzidos a conjecturas; a única coisa afirmada é
que esse inferno, onde quer que exista, é um mundo composto de elementos
materiais, conquanto sem Sol, sem estrelas, sem Lua, mais triste e inóspito,
mais desprovido de todo gérmen e das aparências benéficas que porventura se
encontram ainda nas regiões mais áridas deste mundo em que pecamos. Os teólogos
mais circunspectos não se atrevem, à semelhança dos egípcios, dos hindus e dos
gregos, a descrever os horrores dessa morada, limitando-se a mostrar como
premissas no pouco que dela fala a escritura, o lago de fogo e enxofre do
Apocalipse e os vermes de Isaías, esses vermes que formigam eternamente sobre
os cadáveres do Tofel, e os demônios atormentando os homens que eles levaram à
perdição, e os homens a chorarem, rangendo os dentes, segundo a expressão dos
evangelistas. Santo Agostinho não concorda que esses sofrimentos físicos sejam
apenas reflexos de sofrimentos morais e vê, num verdadeiro lago de enxofre,
vermes e verdadeiras serpentes saciando-se nos corpos, casando suas picadas às
do fogo. Ele pretende mais, segundo um versículo de Marcos, que esse fogo estranho,
posto que material como o nosso e atuando sobre corpos materiais, os conservará
como o sal conserva o corpo das vítimas. Os condenados, vítimas sempre
sacrificadas e sempre vivas, sentirão a tortura desse fogo que queima sem
destruir, penetrando- -lhes a pele; serão dele embebidos e saturados em todos
os seus membros, na medula dos ossos, na pupila dos olhos, nas mais recônditas
e sensíveis fibras do seu ser. A cratera de um vulcão, se aí pudessem
submergir, ser-lhes-ia lugar de refrigério e repouso. Assim falam com toda a
segurança os teólogos mais tímidos, discretos e comedidos; não negam que haja
no inferno outros suplícios corporais, mas dizem que para afirmá-lo lhes falta
suficiente conhecimento, pelo menos tão positivo como o que lhes foi dado sobre
o suplício horrível do fogo e dos vermes. Há, contudo, teólogos mais ousados ou
mais esclarecidos que dão do inferno descrições mais minuciosas, variadas e
completas. E conquanto se não saiba em que lugar do Espaço está situado esse
inferno, há santos que o viram. Eles não foram lá ter com a lira na mão, como
Orfeu; de espada em punho, como Ulisses, mas transportados em espírito. Desse
número é Santa Teresa. Dir-se-ia, pela narrativa da santa, que há uma cidade no
inferno: ‘Ela aí viu, pelo menos, uma espécie de viela comprida e estreita como
essas que abundam em velhas cidades, e percorreu-a horrorizada, caminhando
sobre lodoso e fétido terreno, no qual pululavam monstruosos repteis. Foi,
porém, detida em sua marcha por uma muralha que interceptava a viela, em cuja
muralha havia um nicho onde se abrigou, aliás sem poder explicar a ocorrência.
Era’, diz ela, ‘o lugar que lhe destinavam se abusasse, em vida, das graças
concedidas por Deus em sua cela de Ávila. Apesar da facilidade maravilhosa que
tivera em penetrar esse nicho, não podia sentar-se, ou deitar-se, nem manter-se
de pé. Tampouco podia sair. Essas paredes horríveis, abaixando-se sobre ela,
envolviam-na, apertavam-na como se fossem animadas de movimento próprio.
Parecia-lhe que a afogavam, estrangulando-a, ao mesmo tempo que a esfolavam e
retalhavam em pedaços. Ao sentir queimar-se, experimentou, igualmente, toda a
sorte de angústias. Sem esperança de socorro, tudo era trevas em torno de si,
posto que através dessas trevas percebesse, não sem pavor, a hedionda viela em
que se achava, com a sua imunda vizinhança. Este espetáculo era-lhe tão
intolerável quanto os apertos mesmos da prisão. Esse não era, sem dúvida, mais
que um pequeno recanto do inferno. Outros viajantes espirituais foram mais
favorecidos, pois viram grandes cidades no inferno, quais enormes braseiros:
Babilônia e Nínive, a própria Roma, com seus palácios e templos abrasados,
acorrentados todos os habitantes. Traficantes em seus balcões, sacerdotes
reunidos a cortesãos em salas de festim, chumbados às cadeiras ululantes,
levando aos lábios rubras taças chamejantes. Criados genuflexos em ferventes
cloacas, braços distendidos, e príncipes de cujas mãos escorria em lava
devoradora o ouro derretido. Outros viram no inferno planícies sem-fim,
cultivadas por camponeses famintos, que, nada colhendo desses campos
fumegantes, dessas sementes estéreis, se entredevoravam, dispersando-se em
seguida, tão numerosos como dantes, magros, vorazes e em bando, indo procurar
ao longe, em vão, terras mais felizes. Outras colônias errantes de condenados
os substituíam imediatamente. Ainda outros relatam que viram no inferno
montanhas inçadas de precipícios, florestas gemebundas, poços secos, fontes
alimentadas de lágrimas, ribeiros de sangue, turbilhões de neve em desertos de
gelo, barcas tripuladas por desesperados, singrando mares sem praia. Viram, em,
tudo o que viam os pagãos: um lúgubre revérbero da Terra com os respectivos
sofrimentos naturais eternizados, e até calabouços, patíbulos e instrumentos de
tortura forjados por nossas próprias mãos. Há, com efeito, demônios que, para
melhor atormentarem os homens em seus corpos, tomam corpos. Uns têm asas de
morcegos, cornos, couraças de escama, patas armadas de garras, dentes agudos,
apresentando- -se armados de espadas, tenazes, pinças, serras, grelhas, foles,
tudo ardente, não exercendo outro ofício por toda a eternidade, em relação à
carne humana, que não o de carniceiros e cozinheiros; outros, transformados em
leões ou víboras enormes, arrastam suas presas para cavernas solitárias; estes
se transformam em corvos para arrancar os olhos a certos culpados, e aqueles em
dragões volantes, prontos a se lançarem sobre o dorso das vítimas,
arrebatando-as assustadiças, ensanguentadas, aos gritos, através de espaços tenebrosos,
para arremessá-las em fim em tanques de enxofre. Aqui, nuvens de gafanhotos, de
escorpiões gigantescos, cuja vista produz náuseas e calafrios, e o contato,
convulsões; além, monstros policéfalos, escancarando goelas vorazes, a
sacudirem sobre as disformes cabeças as suas crinas de áspides, a triturarem
condenados com sangrentas mandíbulas para vomitá-los mastigados, porém vivos,
porque são imortais. Estes demônios de formas sensíveis, que lembram tão
visivelmente os deuses do Amenti e do Tártaro, bem como os ídolos adorados
pelos fenícios, moabitas e outros gentios vizinhos da Judeia, esses demônios
não obram ao acaso, tendo cada um a sua função. O mal que praticam no inferno
está em relação ao mal que inspiraram e fizeram cometer na Terra.32 Os condenados
são punidos em todos os seus órgãos e sentidos, porque também a Deus ofenderam
por todos os órgãos e sentidos. Os delinquentes de gula são castigados pelos
demônios da glutonaria, os preguiçosos pelos da preguiça, os luxuriosos pelos
da devassidão, e assim por diante, numa variedade tão grande como a dos
pecados. Terão frio, queimando- -se, e calor, enregelados, ávidos igualmente de
movimento e de repouso; sedentos e famintos; mil vezes mais fatigados que
escravo ao fim do dia, mais doentes que os moribundos, mais alquebrados e
chaguentos que os mártires, e isso para sempre. Demônio algum se furta, nem se
furtará jamais ao desempenho sinistro da sua tarefa, perfeitamente
disciplinados e fiéis, quanto à execução das vingativas ordens que receberam. Aliás,
sem isso que seria o inferno? Repousariam os pacientes se os algozes
altercassem ou se enfadassem. Mas nada de repouso nem disputas para quaisquer
deles, pois apesar de maus e inumeráveis que são, estendendo-se de um a outro
extremo do abismo, nunca se viu sobre a Terra súditos mais dóceis a seus
príncipes, exércitos mais obedientes aos chefes ou comunidades monásticas mais
humildes e submissas aos seus superiores. Quase nada se conhece da ralé
demoníaca, desses vis Espíritos que compõem as legiões de vampiros, sapos,
escorpiões, corvos, hidras, salamandras e outros animais sem-nome; conhecem-se,
porém, os nomes de muitos dos príncipes que comandam tais legiões, entre os
quais Belfegor, o demônio da luxúria; Abadon ou Apolion, do homicídio; Belzebu,
dos desejos impuros, ou senhor das moscas que engendram a corrupção; Mamon, da
avareza; Moloc, Belial, Baalgad, Astarot e muitos outros, sem falar do seu
chefe supremo, o sombrio arcanjo que no Céu se chamava Lúcifer e no inferno se
chama Satanás.” Eis aí resumida a ideia que nos dão do inferno, sob o ponto de
vista da sua natureza física e também das penas físicas que aí sofrem.
Compulsai os escritos dos padres e dos antigos doutores; interrogai as pias
legendas; observai as esculturas e painéis das nossas igrejas; atentai no que
dizem dos púlpitos e sabereis ainda mais. O autor acompanha esse quadro das
seguintes reflexões, cujo alcance procuraremos cada qual compreender: “A
ressurreição dos corpos é um milagre, mas Deus faz ainda um segundo milagre,
dando a esses corpos mortais — já uma vez usados pelas passageiras provas da
vida, já uma vez aniquilados — a virtude de subsistirem sem se dissolverem numa
fornalha, onde se volatilizariam os próprios metais. Que se diga que a alma é o
seu próprio algoz, que Deus não a persegue e apenas a abandona no estado
infeliz por ela escolhido (conquanto esse abandono eterno de um ser desgraçado
e sofredor pareça incompatível com a Bondade divina), vá; mas o que se diz da
alma e das penas espirituais, não se pode de modo algum dizer dos corpos e das
respectivas penas, para perpetuação das quais já não basta que Deus se conserve
impassível, mas, ao contrário, que intervenha e atue, sem o que sucumbiriam os
corpos. Os teólogos supõem, portanto, que Deus opera, efetivamente, após a
ressurreição dos corpos, esse segundo milagre de que falamos. Que em primeiro
lugar tira dos sepulcros que os devoravam os nossos corpos de barro; retira-os
tais como aí baixaram com suas enfermidades originais e degradações sucessivas
da idade; restitui-nos a esse estado, decrépitos, friorentos, gotosos, cheios
de necessidades, sensíveis a uma picada de abelha, assinalados dos estragos da
vida e da morte, e está feito o primeiro milagre; depois, a esses corpos
raquíticos, prontos a voltarem ao pó donde saíram, outorga propriedades que
nunca tiveram — a imortalidade, esse dom que, em sua cólera (dizei antes em sua
misericórdia), retirara a Adão ao sair do Éden — e eis completo o segundo
milagre. Adão, quando imortal, era invulnerável, e deixando de ser invulnerável
tornou-se mortal; a morte seguia de perto a dor. A ressurreição não nos
restabelece, pois, nem nas condições físicas do homem inocente, nem nas do
culpado, sendo antes uma ressurreição das nossas misérias somente, mas com um
acréscimo de misérias novas, infinitamente mais horríveis. É, de alguma sorte,
uma verdadeira criação, e a mais maliciosa que a imaginação tenha, porventura,
ousado conceber. Deus muda de parecer, e, para ajuntar aos tormentos
espirituais dos pecadores tormentos carnais que possam durar eternamente,
transforma de súbito, por efeito do seu poder, as leis e propriedades por Ele
mesmo estabelecidas de princípio aos compostos materiais, ressuscita carnes
enfermas e corrompidas e, reunindo por um nó indestrutível esses elementos que
tendem por si mesmos a separar-se, mantém e perpetua, contra a ordem natural,
essa podridão viva, lançando-a ao fogo, não para purificá-la, mas para
conservá-la tal qual é, sensível, sofredora, ardente, horrível e como a quer —
imortal. Por este milagre se arvora Deus num dos algozes infernais, pois se os
condenados só a si podem atribuir seus males espirituais, em compensação só a
Deus poderão imputar os outros. Era pouco aparentemente o abandono, depois da
morte, à tristeza, ao arrependimento, às angústias de uma alma que sente
perdido o bem supremo. Segundo os teólogos, Deus irá buscá-las nessa noite, ao
fundo desse abismo, chamando-as momentaneamente à vida, não para as consolar,
mas para as revestir de um corpo horrendo, chamejante, imperecível, mais
empestado que a túnica de Dejanira, abandonando-as então para sempre. Ainda
assim Ele não as abandonará para sempre, em absoluto, visto como Céu e Terra
não subsistem senão por ato permanente da sua vontade sempre ativa. Deus terá,
portanto, sem cessar, esses condenados à mão, para impedir que o fogo se
extinga em seus corpos, consumindo-os, e querendo que contribuam perpetuamente
por seus perenes suplícios para edificação dos escolhidos”. Dissemos, e com
razão, que o inferno dos cristãos excedera o dos pagãos. Efetivamente, no
Tártaro veem-se culpados torturados pelo remorso, ante suas vítimas e seus
crimes, acabrunhados por aqueles que espezinharam na vida terrestre; vemo-los
fugirem à luz que os penetra, procurando em vão esconderem-se aos olhares que os
perseguem; aí o orgulho é abatido e humilhado, trazendo todos o estigma do seu
passado, punidos pelas próprias faltas, a ponto tal que, para alguns, basta
entregá-los a si mesmos sem ser preciso aumentar-lhes os castigos. Contudo, são
sombras, isto é, almas com corpos fluídicos, imagens da sua vida terrestre; lá
não se vê os homens retomarem o corpo carnal para sofrer materialmente, com
fogo a penetrar-lhes a pele, saturando-os até a medula dos ossos. Tampouco se
vê o requinte das torturas que constituem o fundo do inferno cristão. Juízes
inflexíveis, porém justos, proferem a sentença proporcional ao delito, ao passo
que no império de Satã são todos confundidos nas mesmas torturas, com a
materialidade por base, e banida toda e qualquer equidade. Incontestavelmente,
há hoje, no seio da Igreja mesma, muitos homens sensatos que não admitem essas
coisas à risca, vendo nelas antes simples alegorias cujo sentido convém
interpretar. Estas opiniões, no entanto, são individuais e não fazem lei,
continuando a crença no inferno material, com suas consequências, a constituir
um artigo de fé. Poderíamos perguntar como há homens que têm conseguido ver
essas coisas em êxtase, se elas de fato não existem. Não cabe aqui explicar a
origem das imagens fantásticas, tantas vezes reproduzidas com visos de
realidade. Diremos apenas ser preciso considerar, em princípio, que o êxtase é
a mais incerta de todas as revelações, porquanto o estado de sobre-excitação
nem sempre importa um desprendimento de alma tão completo que se imponha à
crença absoluta, denotando muitas vezes o reflexo de preocupações da véspera.
As ideias com que o Espírito se nutre e das quais o cérebro, ou antes o
invólucro perispiritual correspondente a este, conserva a forma ou a estampa,
se reproduzem amplificadas como em uma miragem, sob formas vaporosas que se
cruzam, se confundem e compõem um todo extravagante. Os extáticos de todos os
cultos sempre viram coisas em relação com a fé de que se presumem penetrados,
não sendo, pois, extraordinário que Santa Teresa e outros, tal qual ela
saturados de ideias infernais pelas descrições, verbais ou escritas, hajam tido
visões, que não são, propriamente falando, mais que reproduções por efeito de
um pesadelo. Um pagão fanático teria antes visto o Tártaro e as Fúrias, ou Júpiter,
no Olimpo, empunhando o raio. www.febnet.org.br. Livro O Céu e o Inferno. Abraço. Davi
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