Confucionismo. www.rl.art.br.
CONFÚCIO – OS ANALECTOS. II. INTRODUÇÃO. Mas dizer que ter palavra é algo
próximo de ser uma pessoa moral é dizer que os dois não são idênticos.
Inevitavelmente, há casos em que a aderência ao princípio de ser coerente à
própria palavra levará a uma ação que não é moral. Confúcio descreve “Um homem
que insiste em manter sua palavra e em levar suas ações até o fim” como alguém
que demonstra “uma teimosa estreiteza da mente” (XIII.20). Em segundo lugar, há
ching (reverência). Trata-se de um conceito bem antigo. Na antiga literatura
Chou, ching descreve o estado de espírito de um homem que toma parte em um
sacrifício. É diferente daquele demonstrado em outras religiões. Em outras
religiões, há medo e abjeta submissão em face ao poder da deidade. Ching,
diferentemente, é oriundo da consciência da imensidão da responsabilidade de
alguém em promover o bem-estar do povo. É uma combinação de medo de fracassar
na responsabilidade de que alguém é imbuído com a solene e única concentração
voltada para o cumprimento satisfatório dessa responsabilidade. Em Os
analectos, ching ainda mostra alguns traços dessa conexão com religião. Há uma
passagem na qual é mencionado em relação com os sacrifícios. Confúcio disse:
“manter-se à distância dos deuses e dos espíritos enquanto lhes mostra
reverência pode ser chamado de sabedoria” (VI.22). Sob sua outra acepção, ching
sempre é mencionado de forma ligada a questões de governo e a como servir um
superior. O termo ching (reverência) deve ser distinguido do kung (respeito). O
último é uma questão de atitude aparente e modos. Kung é normalmente mencionado
de forma relativa à observância dos ritos. Por exemplo, o cavalheiro é
“respeitoso para com os outros e observa os ritos” (XII.5), e dirige sua
atenção a “ter um comportamento respeitoso” (XVI.10). Um homem deve ser
respeitável nas suas relações com os outros porque, desse modo, ele pode evitar
insultos e humilhações. “Se um homem é respeitoso, ele não será tratado com
insolência” (XVII.6). “Ser respeitoso significa ser observador dos ritos, no
sentido de que isso possibilita que se fique longe da desgraça e do insulto”
(I.13). Isso mais ou menos completa o resumo das maiores virtudes morais que
fazem parte da formação de um cavalheiro. Entretanto, deixei, deliberadamente,
yi para o fim. Yi é uma palavra que pode ser usada em relação a uma ação,
quando ela pode ser considerada “correta”, ou pode ser usada para designar um
ato que uma pessoa deveria fazer, quando então significa “dever”, ou pode se
referir a uma pessoa, quando então significa “correto” ou “cumpridor do dever”.
Quando usado no sentido amplo, às vezes a única tradução possível é “moral”, ou
“moralidade”. De certa forma, a maior parte das palavras que denotam virtudes
morais pode ser aplicada tanto a pessoas quanto a ações. Entretanto, no que diz
respeito a isso, yi é diferente das outras palavras morais. Coloquemos, por
exemplo, em contraste com a benevolência. Claro que tanto uma ação quanto uma
pessoa podem ser descritas como benevolentes, mas benevolência é basicamente
uma característica de pessoas, e sua aplicação a atos é apenas derivativa. Um
ato benevolente é o ato de um homem benevolente. Como característica de pessoas
morais, benevolência tem mais a ver com disposição e intenção do que com
circunstâncias objetivas. O contrário é verdade sobre a retidão. Retidão é
basicamente uma característica de atos, e sua aplicação a pessoas é derivativa.
Um homem é correto apenas na medida em que faz o que é certo. A retidão dos
atos depende da sua conveniência moral nas dadas circunstâncias e tem pouco a
ver com a disposição ou a intenção da pessoa que age. É aqui que a distinção
entre agente-ético e ação-ética se torna relevante. Antes dissemos que Confúcio
estava mais interessado nas virtudes morais do homem do que na qualidade moral
dos seus atos. Mas nenhum sistema moral pode ser baseado apenas em virtudes
morais, e o sistema de Confúcio não é exceção. Vimos que, no que diz respeito
aos próprios interesses de uma pessoa, a oposição é entre vantagem a ser obtida
e retidão. Novamente, no teste para saber se coragem é uma virtude, é o yi que
é o critério. Embora Confúcio não o declare explicitamente, não se pode deixar
de ficar com a impressão de que ele percebeu que, em última instância, yi é o
critério pelo qual todos os atos devem ser julgados enquanto não há outro
critério pelo qual yi pode ser julgado. Afinal de contas, mesmo a benevolência
não carrega sua própria garantia moral. “Amar a benevolência sem amar o
aprendizado pode levar à tolice” (XVII.8). Como veremos, o objetivo a ser
perseguido por meio do estudo, nesse contexto, provavelmente deve ter sido os
ritos, e os ritos, como regras de conduta, só podem, em última análise, ser
baseados no yi. Podemos então dizer que no sistema moral de Confúcio, embora a
benevolência ocupe uma posição mais central, yi é, ainda assim, mais
fundamental. Nenhuma referência ao cavalheiro estará completa a menos que algo
seja dito sobre sua atitude em relação a t’ien (Céu) e t’ien ming (Decreto do
Céu), mas essa tarefa acaba por revelar alguma dificuldade. Em primeiro lugar,
à parte t’ien ming – literalmente, o comando do Céu –, ming também é usado por
si só, e parece haver uma diferença básica entre as duas expressões. Em segundo
lugar, o termo t’ien ming é encontrado apenas duas vezes em Os analectos, e é
difícil fixar uma interpretação para o termo partindo de uma base tão pequena.
Entretanto, a tentativa tem que ser feita, já que a distinção entre t’ien ming
e ming parece ser vital para o entendimento da opinião de Confúcio. Embora
t’ien ming ocorra apenas duas vezes em todos Os analectos, para nossa sorte
trata-se de um termo considerado antigo. A crença no decreto divino muito
provavelmente remonta a uma época bem anterior à fundação da dinastia Chou, por
volta do final do segundo milênio AC. A teoria sobre o decreto do céu foi, mais
provavelmente, uma inovação da parte do duque de Chou. De acordo com essa
teoria, o Céu se importa profundamente com o bem-estar do povo, e o imperador é
enviado expressamente para promover esse bem-estar. Ele governa em função do
Decreto do Céu e permanece imperador apenas na medida em que exerce essa
função. Assim que ele esquece sua função e começa a governar visando seus
próprios interesses, o Céu retirará o Decreto e elegerá alguém mais merecedor
para a tarefa. Assim o Decreto do Céu é um imperativo moral e, como tal, nada
tem a ver com o comando do Céu em relação às coisas que acontecem no mundo. O
único desenvolvimento da época de Confúcio foi que o Decreto do Céu não era
mais restrito ao imperador. Todo e qualquer homem estava sujeito ao Decreto do
Céu, que o obrigava a ser moral e transformava em dever estar à altura das
demandas desse Decreto. Confúcio disse: “Aos cinquenta anos, entendi (chih)
t’ien ming” (II.4). Isso implica que t’ien ming é algo difícil de ser
compreendido, mas também mostra, inconfundivelmente, que é algo passível de ser
entendido. A única outra menção a t’ien ming em Os analectos é quando Confúcio
disse que era uma das coisas que o cavalheiro temia (XVI.8). Quanto à possibilidade
de ming ser simplesmente usado como abreviação para t’ien ming nos textos mais
antigos, não há dúvida de que na época de Confúcio ming já havia se tornado um
termo com um significado diferente e independente. Esse significado é melhor
ilustrado pelo dizer citado por Tzu-hsia em uma conversa com Ssu-ma Niu: “vida
e morte são uma questão de ming; riqueza e honra dependem do Céu” (XII.5). O
contexto mostra que ming é usado no sentido de Destino e que Céu é apenas um
sinônimo para ming. Há uma observação de Mêncio na qual Céu e Destino também
são justapostos como sinônimos e que pode servir como uma glosa sobre esses
termos. Mêncio disse: “Quando uma coisa não é feita por ninguém específico,
então é um trabalho do Céu; quando uma coisa acontece sem que ninguém a
provoque, então é o Decreto” (V.A.6). Dessa forma, há certas coisas que são
provocadas, não por ação humana, mas pelo Destino. Essas são as coisas sobre as
quais a vontade humana não tem influência. Se um homem vai ser rico, ter honra
e uma longa vida, é algo da alçada do Destino. Nenhum esforço da parte dele vai
fazer qualquer diferença no resultado. Assim, no contexto das fortunas de um
indivíduo, ming é o seu quinhão. Por exemplo, duas vezes Confúcio disse sobre
Yen Yüan, que morreu jovem, que “infelizmente, o tempo de vida que lhe coube
(ming) era curto, e ele morreu” (VI.3, XI.7). Novamente, ele corrigiu Tzu-kung
por recusar-se a aceitar seu quinhão (ming) e por ganhar dinheiro (XI.19). A
razão pela qual tanta importância é dada do ming é a seguinte: se um homem está
convencido de que todas as coisas desejáveis da vida devem-se ao Destino, ele
perceberá mais facilmente a futilidade de persegui-las e, em vez disso,
conduzirá seus esforços na busca da moralidade. Moralidade é o único objeto que
um homem deveria perseguir porque ser moral reside apenas em fazer tal esforço,
e não no resultado bem-sucedido da ação de um homem. Esse é o significado da
frase “Um homem não pode se tornar um cavalheiro a menos que entenda o Destino
(chih ming)” (XX.3). A frase chih ming (entender o Destino) parece-se muito com
a frase chich t’ien ming (entender o Decreto do Céu), que, conforme vimos,
Confúcio usou referindo-se a si na idade de cinquenta anos; mas o significado,
na verdade, é muito diferente nos dois casos. Entender o Decreto do Céu é
entender por que o Céu assim deveria decretar, mas entender Destino é saber que
algumas coisas na vida acontecem sob a influência do Destino e que é fútil
tentar persegui-las. A diferença entre t’ien ming e ming pode ser resumida do
seguinte modo: t’ien ming, como imperativo moral, diz respeito ao que o homem
deveria fazer; ming, no sentido de Destino, tem a ver com como acontecem as
coisas que acontecem. T’ien ming, necessariamente difícil de ser compreendido,
é, ainda assim, compreensível; já ming é um total mistério. O que t’ien ming
ordena nós devemos obedecer; o que reside no domínio de ming devemos deixar em
paz. Se ming e t’ien ming são termos de sentido diferente, igualmente há dois
sentidos de t’ien (Céu), cada um correlato a um dos dois termos. Já vimos que
Céu foi usado como sinônimo de Destino na observação de Tzu-hsia. Esse também é
o caso em lamentações ou exclamações de fé. Tome estes dois casos, por exemplo.
Quando Yen Yüan morreu, Confúcio disse: “Ai! O Céu está me destruindo! O Céu
está me destruindo!” (XI.9). Entretanto, quando Jan Po-niu foi atingido por uma
terrível doença, Confúcio disse: “Deve ser o Destino!” (VI.10). Nessas duas
observações, Céu e Destino parecem ser termos intercambiáveis. Por outro lado,
há casos em que o termo Céu parece trazer um significado muito diferente de
Destino. Por exemplo, quando sua vida esteve em perigo em Sung, Confúcio disse:
“O Céu é o autor da virtude que há em mim. O que pode Huan T’ui fazer comigo?”
(VII.23). Na ocasião em que Tzu-lu foi caluniado, ele, entretanto, disse: “Como
pode Kung-po Liao desafiar o Destino?” (XIV.36). Os dois comentários me parecem
ter significados muito diferentes. No último caso, Confúcio estava, com efeito,
dizendo “Que será, será”. No primeiro caso, entretanto, ele estava dizendo que
o Céu o dotara com uma virtude especial para que ele pudesse suportar t’ien
ming de acordar o império para seus objetivos morais e que, se fosse permitido
que Huan T’hui o matasse, o Céu estaria frustrando os próprios propósitos. Céu,
como sinônimo de ming, é o agente que provoca o que acontece, mas, quando se
trata de proposta moral e imperativo moral, o Céu é a fonte do Decreto. Quanto
a se, em última análise, é o mesmo Céu que é responsável tanto por acontecimentos
que estão predestinados quanto pelo decreto de imperativos morais, e ainda
quanto a saber se ming, como Destino que provoca os acontecimentos também tem
um aspecto imperativo, não temos meios de decidir, mas o importante é que, para
fins práticos, ming e t’ien ming limitam e definem para nós a esfera legítima
da influência humana. Antes vimos a importância da distinção entre li (lucro,
ganho ou vantagem) e yi (retidão). A distinção entre ming e t’ien ming é, com
efeito, a mesma distinção, vista de um ângulo diferente. Li pertence a ming e,
portanto, não é um objeto para ser perseguido apenas por si. Yi pertence ao
t’ien ming e é, consequentemente, algo que devemos seguir. Até agora lidamos
apenas com as qualidades morais do cavalheiro. Para dar a essas qualidades sua
máxima expressão, o cavalheiro deve tomar parte no governo. Isso, entretanto,
não significa que o árduo processo de auto cultivo e aprendizado seja meramente
um meio para se chegar ao objetivo da promoção pessoal. Confúcio disse: “Não é fácil
achar um homem capaz de estudar durante três anos sem pensar em receber um
salário” (VIII.12), e ele aprovou quando Min Tzu-ch’ien não se considerou
pronto quando lhe foi oferecido um cargo (VI.9). Mas como um homem pode se
preparar para o trabalho apenas por meio do estudo, enquanto estuda ele está,
na verdade, preparando-se para uma carreira oficial, ao mesmo tempo (XV.32).
Estudar e ocupar um cargo são as atividades gêmeas inseparáveis do conceito do
cavalheiro. “Quando um homem com um cargo oficial descobre que pode fazer mais
do que dar conta dos seus deveres, então ele estuda; quando um estudante
descobre que ele pode mais do que dar conta dos seus estudos, então ele aceita
um cargo oficial” (XIX.13). Mas que um homem deve se preparar adequadamente
para o trabalho não é a única precondição para ele ocupar, de fato, um cargo. A
época deve ser a correta, também. Que um homem seja tão ambicioso a ponto de
estar pronto para ocupar um cargo oficial independentemente de a ordem reinar
no reino ou não é algo condenado por Confúcio. “É vergonhoso”, ele disse,
“fazer do salário seu único objetivo, indiferente quanto a se o Caminho
prevalece no reino ou não” (XIV.1). A razão disso é que quando o Caminho não
prevalece em um reino, um homem só pode permanecer no cargo quebrando seus
princípios. Se um homem não faz isso, pode colocar a si mesmo em perigo. Em uma
situação como essa, a única escolha de alguém é ficar longe de problemas,
devotando a si mesmo à busca do mais elevado padrão moral na sua vida como um cidadão.
Shih Yü era certeiro como uma flecha quanto a se o Caminho prevalecia no reino
ou não. Tudo o que Confúcio admitia quanto a ele era que ele era correto. Por
outro lado, Ch’ü Poy ü, que foi empossado quando o Caminho prevalecia no reino
mas que se deixou ser enrolado e guardado em algum lugar seguro quando o
Caminho caiu em desgraça, foi descrito por Confúcio como um cavalheiro (XV.7).
Essa é uma atitude que Confúcio manifesta várias vezes. “O Mestre disse de
Nan-jung que, quando o Caminho prevaleceu no reino, ele não foi posto de lado
e, quando o Caminho caiu em desgraça, ele ficou longe da humilhação e da
punição” (V.2). Ning Wu Tzu era inteligente quando o Caminho prevaleceu no
reino, mas pareceu estúpido quando o Caminho caiu em desgraça. O comentário de
Confúcio foi: “Outros podem igualar sua inteligência, mas não podem igualar sua
estupidez” (V.21). Amaneira para ficar longe de problemas ao mesmo tempo em que
se mantém a própria integridade moral, de acordo com Confúcio, é a seguinte:
“Quando o Caminho prevalece no reino, fale e aja destemidamente e com altivez;
quando o Caminho não prevalece, aja destemidamente e com altivez mas fale com
reserva e de modo suave” (XIV.3). Isso é condizente com sua ideia de que um
homem não deveria se preocupar com questões do governo a menos que sejam da sua
alçada e com a opinião de Tseng Tzu de que o cavalheiro não permite a seus
pensamentos irem além do seu cargo (XIV.26). Que ele não considerava isso algo
fácil de ser seguido é mostrado em seu comentário para Yen Yüan: “Apenas você e
eu temos a habilidade de aparecer quando requisitados e de desaparecer quando
deixados de lado” (VII.11). Entretanto, quando o caminho prevalece no reino,
não apenas é o dever de um homem ocupar um cargo oficial como ocupar um cargo
oficial é a culminação dos anos de preparação para tal acontecimento. Assim, de
acordo com Confúcio, não apenas é “vergonhoso ser rico e nobre quando o Caminho
cai em desgraça no reino”, mas igualmente “é vergonhoso ser pobre e humilde
quando o Caminho prevalece no reino” (VIII.13). A proposta última do governo é
o bem-estar do povo (min). Esse é o mais básico princípio do confucionismo e
permaneceu imutável ao longo do tempo. Promover o bem-estar do povo começa com
satisfazer suas necessidades materiais. Tzu-kung perguntou sobre governo. O
Mestre disse: “Dê-lhes comida suficiente” (XII.7). Para atingir esse objetivo,
o trabalho do povo deve ser empregado nas épocas certas (I.5), isto é, ele não
deve ser tirado de sua terra durante as épocas de mais trabalho. Em termos mais
amplos, Tzu-ch’an era considerado generoso no trato com o povo e justo ao
empregar o seu trabalho (V.16). Mas além das necessidades básicas, o povo
também deve ser provido com armas em quantidade suficiente. Entretanto, antes
que possa ser mandado para a guerra, também lhe deve ser dada educação
adequada. Confúcio disse: “Mandar o povo para a guerra sem que ele tenha
educação é jogá-lo fora” (XIII.30). Em que consiste essa educação, não ficamos
sabendo. Apesar de a educação que o governante dá ao povo provavelmente ser
diferente dos ensinamentos que Confúcio dá aos seus discípulos, é inconcebível
que tal educação seja exclusivamente de natureza militar. Deve incluir
elementos morais importantes. De outro modo, é difícil entender por que demoraria
tanto tempo, já que, de acordo com Confúcio, “Depois que um homem bom educou o
povo por sete anos, aí então o povo estará pronto para pegar em armas”
(XIII.29). Entretanto, alimento e armas não são as coisas mais importantes que
o povo deve ter. Sobretudo, é preciso que eles tenham confiança no governante e
é preciso que vejam nele um exemplo. Em resposta à pergunta de Tzu-kung sobre o
governo, Confúcio disse: “Dê-lhes comida suficiente, dê-lhes armas suficientes,
e as pessoas comuns confiarão em você”. Quando ele perguntou de qual dos três
se deveria abrir mão antes, sua resposta foi: “Abra mão das armas”. Isso não
causa surpresa se considerarmos a atitude de Confúcio em relação ao uso da
força na guerra, mas sua próxima resposta, sim, é surpreendente. Quando
pressionado a dizer de qual dos dois restantes se deveria abrir mão primeiro,
sua resposta foi: “Abra mão da comida. A morte sempre esteve conosco, desde o
começo dos tempos, mas quando não há confiança, as pessoas comuns não terão
nada a que se agarrar” (XII.7). Essa ênfase quanto à base moral do governo é
fundamental para os ensinamentos de Confúcio. Ele disse: Guie-o por meio de
editos, mantenha-o na linha com punições, e o povo se manterá longe de
problemas, mas não terá noção de vergonha. Obrigações e punição podem, na
melhor das hipóteses, garantir um aparente conformismo. O povo vai ficar longe
de problemas não porque tenha vergonha de fazer algo errado, mas porque tem
medo da punição. Em contraste a isso: Guie-o pela virtude, mantenha-o na linha
com os ritos, e o povo, além de ser capaz de sentir vergonha, reformará a si
mesmo. (II.3). Quando o povo reforma a si próprio e tem noção de vergonha, a lei
e, por conseguinte, a ameaça de punição nunca precisam ser evocadas. A
orientação pela virtude, entretanto, não pode ser efetiva a menos que o
governante dê um exemplo moral para o seu povo. Aqui, talvez, deveríamos
observar o fato de que a palavra chinesa cheng (governar) e cheng (corrigir)
são homófonas. Chi K’ang Tzu perguntou a Confúcio sobre governo. Confúcio
respondeu: “Governar (cheng) é corrigir (cheng). Se você der exemplo ao ser
correto, quem ousaria continuar sendo incorreto?”. (XII.17) Há um ponto
positivo e um negativo quanto a isso. O ponto negativo é que se o próprio
governante falha em ser correto mas insiste em punir seus súditos por serem
incorretos, ele estará se colocando acima da lei, e o povo terá consciência da
injustiça. O ponto positivo é que o povo sempre olha para os seus melhores
homens, e se aqueles em posição de autoridade dão um exemplo, isso será imitado
mesmo se o povo não receber ordens para assim fazer. Esse ponto fica bem claro
na seguinte passagem: O Mestre disse: “Se um homem é correto, então haverá
obediência sem que ordens sejam dadas; mas se ele não é correto, não haverá
obediência, mesmo que ordens sejam dadas”. (XIII.6). Um bom exemplo é muito
mais efetivo do que editos, e onde editos contradizem o exemplo, é o exemplo de
que o povo vai levar em consideração, e não os editos. Esse ponto é colocado de
modo mais persuasivo por Confúcio em outra ocasião. Chi K’ang Tzu perguntou a
Confúcio sobre o governo, dizendo: “O que o Mestre pensaria se, para chegar
mais próximo àqueles que seguem o Caminho, eu matasse aqueles que não o
seguem?”. Confúcio respondeu: “Qual a necessidade de matar para administrar um
governo? Apenas deseje o bem e o povo será bom. A virtude do cavalheiro é como
o vento; a virtude do homem comum é como grama. Que o vento sopre sobre a
grama, e ela com certeza se dobrará”. (XII.19) Aqui, Confúcio estava falando
sobre os “homens vulgares” – aqueles que presumivelmente gozavam de poder
político embora pertencessem à classe dos governados – e não sobre o povo, mas
o que é verdade sobre o homem vulgar forçosamente é verdade também quanto ao
povo. O bom exemplo tem uma influência que, embora imperceptível, é, de fato,
irresistível. É, portanto, da maior importância colocar os homens corretos em
posição de autoridade. Em resposta à pergunta a ele colocada pelo duque Ai, “O
que devo fazer para que o povo veja em mim um exemplo?”, Confúcio disse:
“Promova os homens corretos e coloque-os acima dos desonestos, e o povo o
admirará. Promova os homens desonestos e coloque-os acima dos homens corretos,
e o povo não o admirará” (II.19). Em outra ocasião, falando com Fan Ch’ih,
Confúcio aprofundou a questão. Promover os justos e colocá-los acima dos
corrompidos pode “endireitar os corrompidos” (XII.22). Tzu-hsia, a quem Fan
Ch’ih relatou o comentário, ilustrou-o com um episódio histórico. Ao promover
os justos a posições de autoridade, Shun e T’ang afastaram aqueles que não eram
benevolentes. Já que a influência por meio de um bom exemplo funciona de um
modo imperceptível, o governante ideal é frequentemente caracterizado não
apenas como alguém que não faz nada, mas também como alguém que, aos olhos do
povo, nada fez que pudesse ser valorizado. “O governo pela virtude pode ser
comparado à estrela Polar, que comanda a homenagem da multidão de estrelas sem
sair do lugar” (II.1). T’ai Po abdicou do seu direito de governar, “sem dar ao
povo oportunidade de louvá-lo” (VIII.1). Yao foi o rei que se espelhou no Céu,
o único que é grande, mas “ele era tão grandioso que o povo não tinha palavras
para louvar as virtudes” (VIII.19). Essa descrição do governante ideal é
aparentemente muito semelhante à oferecida pelos taoístas, mas na verdade as
duas são bem diferentes. O governante taoísta genuinamente não faz nada porque
o Império funciona melhor quando deixado em paz. O governante confucianista
apenas aparenta nada fazer porque a influência moral que ele exerce funciona de
modo imperceptível. Não podemos encerrar o assunto do governo sem discutir a
atitude de Confúcio para com o povo (min) ou as pessoas. Ele não tentou
disfarçar o fato de que, no seu ponto de vista, o povo era muito limitado
intelectualmente. Ele disse: “O povo pode ser obrigado a seguir um caminho, mas
não pode ser forçado a entendê-lo”. (VIII.9). O povo não consegue entender por
que razão é conduzido ao longo de um caminho em específico, pois nunca se dá o
trabalho de estudar. Ele disse: “Aqueles que nascem com conhecimento são os
mais elevados. A seguir vêm aqueles que atingem o conhecimento por meio do
estudo. A seguir vêm aqueles que voltam-se para o estudo depois de terem
passado por dificuldades. No nível mais baixo estão as pessoas comuns, por não
fazerem esforço algum para estudar mesmo depois de terem passado por
dificuldades” (XVI. 9). Não é de surpreender que Confúcio tivesse tal opinião.
O estudo, tal qual por ele concebido, é um árduo processo que nunca se
completa. As pessoas comuns são imensamente prejudicadas. Raramente têm a
capacidade de estudar e praticamente nunca têm a oportunidade. Nas raras
ocasiões em que têm tanto a capacidade e a oportunidade, é pouco provável que
consigam aguentar o rigor da tarefa. Confúcio descreveu como o seu discípulo
favorito, Yen Hui, conseguiu seguir os estudos obstinadamente nas seguintes
palavras. “Como Hui é admirável! Morar em um pequeno casebre com uma tigela de
arroz e um concha de água por dia é uma provação que a maioria dos homens
acharia intolerável, mas Hui não permite que isso atrapalhe sua alegria. Como
Hui é admirável!” (VI.11). Confúcio podia não ter uma opinião muito boa quanto
às capacidades intelectuais e morais das pessoas comuns, mas absolutamente não
é verdade que ele tenha diminuído a importância delas no esquema geral das
coisas. Talvez seja precisamente porque o povo é incapaz de garantir seu
próprio bem-estar sem receber auxílio que o dever supremo do governante é
trabalhar em benefício do povo, proporcionando a ele o que lhe é benéfico. As
pessoas comuns deveriam ser tratadas com o mesmo amor e carinho dispensados a
nenês, que são indefesos. Isso é anunciado em um comentário memorável do Livro
da História citado por Mêncio: os governantes antigos agiam “como se estivessem
cuidando de um recém-nascido”. Mêncio descreve tais governantes como mãe e pai
do povo. É, portanto, inegável que Confúcio advogava um forte paternalismo no
governo, e isso permaneceu imutável como princípio básico ao longo de toda a
história do confucionismo. A importância das pessoas comuns e seu bem-estar é
enfatizada repetidas vezes em Os analectos. Por exemplo, Tzu-kung disse: “Se
houvesse um homem que desse generosamente ao povo e trouxesse auxílio às
multidões, o que você pensaria dele? Ele poderia ser considerado benevolente?”.
O Mestre disse: “Nesse caso não se trata mais de benevolência. Se precisa
descrever tal homem, sábio é, talvez, a palavra adequada. Mesmo Yao e Shun
achariam difícil realizar tanto.” (VI.30) Se lembrarmos que Yao e Shun eram
tidos em alta conta por Confúcio e o quão pouco inclinado ele era a dar o
título de “sábio” para qualquer pessoa, podemos ver o imenso significado do
comentário. Finalmente, Confúcio disse que se ele elogiava alguém, podia-se ter
certeza de que esse alguém havia sido testado. O teste se revelou ser o governo
das pessoas comuns, pois ele continuou ao dizer: “Essas pessoas comuns são a
pedra de toque por meio da qual as Três Dinastias foram mantidas no caminho
certo” (XV. 25). O único teste ao qual é submetido um bom governante é quanto a
se ele tem êxito em promover o bem-estar das pessoas comuns. Até agora
examinamos apenas as qualidades morais indispensáveis ao cavalheiro, mas o
ideal do cavalheiro é mais amplo do que o do homem moral. É necessário mais
atributos para se ter o perfeito cavalheiro. Para entender isso, é preciso
primeiro darmos uma olhada em dois termos, wen e chih. Chih, dos dois, é o mais
fácil de ser compreendido. É a matéria-prima ou a substância nativa da qual um
homem ou uma coisa é feita. Wen é mais difícil de compreender por causa da sua
ampla aplicação. Em primeiro lugar, wen significa um belo padrão. Por exemplo,
o padrão das estrelas é o wen do céu, e o padrão da pele de um tigre é o seu
wen. Aplicado ao homem, refere-se às belas qualidades que ele adquiriu por meio
da educação. Daí o contraste com chih. Aquilo que um homem adquire por meio da
educação cobre uma ampla gama de realizações. Inclui talentos como arqueiro ou
na condução de carruagens, de escrita e matemática, mas os campos mais
importantes são a literatura e a música, uma conduta condizente à de um
cavalheiro. Literatura, na época de Confúcio, significava, basicamente, as
Odes, enquanto que música para Confúcio era a música tocada em cerimônias da
corte e em cerimônias sacrificiais. Um comportamento condizente a um cavalheiro
significava observância dos ritos, que incluía entre outras coisas o código da
conduta correta. Além de denotar as realizações de um indivíduo, wen também
pode ser usado para designar a cultura de uma sociedade como um todo. Assim,
wen é uma palavra com uma ampla gama de significados, que em inglês (e
português) são cobertos por uma variedade de palavras, como ornamento, adorno,
refinamento, realização, boa educação e cultura. Não é suficiente para um homem
nascer com uma boa substância nativa. Um longo processo de amadurecimento é
necessário para dar a ele a educação indispensável a um cavalheiro. Quando Chi
Tzu-ch’eng disse “O mais importante a respeito de um cavalheiro é o material do
qual ele é feito. Para que ele precisa de refinamento?”, a opinião de Tzu-kung
foi a de que não se podia separar refinamento da matéria, pois “a pele de um
tigre ou de um leopardo, desprovida de pelos, não é diferente da de um cachorro
ou de uma ovelha” (XII.8). O que Tzu-kung está dizendo é que são as qualidades
totais de um cavalheiro – matéria prima assim como refinamento – que o
distinguem dos “homens vulgares”, e é fútil separar a matéria-prima do
refinamento, na equivocada tentativa de aponta-la como o fator básico. Em toda
parte encontramos Confúcio enfatizando a importância do equilíbrio entre os
dois elementos. Ele disse: “Quando a natureza de alguém prevalece sobre a
educação recebida, o resultado será uma pessoa intratável. Quando a educação
prevalece sobre a natureza, o resultado será uma pessoa pedante. Apenas uma
mistura bem equilibrada das duas resultará em cavalheirismo” (VI.18). Há um
comentário de Confúcio que joga alguma luz sobre o que seria essa substância
nativa ou natureza. Ele disse: “O cavalheiro tem a moralidade como
matéria-prima e, ao observar os ritos, coloca-a em prática, ao ser modesto
dá-lhe expressão e, ao ser fiel às próprias palavras, a completa. Assim é um
cavalheiro, de fato!” (XV.18). Aqui vemos que a relação entre chih e wen
corresponde à relação entre moralidade (yi) e os ritos (li). Não basta um homem
ter a inclinação natural de fazer o que é certo; é essencial que ele seja
versado de modo que possa dar uma expressão refinada a essa inclinação. Um
homem pode ter uma forte necessidade de mostrar respeito por outro homem em uma
dada sociedade, mas, a menos que ele saiba o código de comportamento pelo qual
esse respeito é expresso, ele ou falhará completamente em expressá-lo ou, no
máximo, conseguirá expressá-lo de modo não totalmente aceito naquela sociedade.
Isso traz à tona uma questão importante quanto aos ritos. Moralidade não
consiste apenas na ação que afeta o bem-estar de outras pessoas. Às vezes
também requer comportamentos que expressem uma atitude em relação às outras
pessoas. Isso explica o fato de que a palavra li, embora tenha também uma
conotação moral, é mais apropriadamente traduzida como “ritos” ou “ritual”.
Como vimos, além da observância dos ritos, a parte mais importante de wen é a
poesia e a música. É por isso que, quando um equivalente teve que ser
encontrado para o termo ocidental “literatura”, a expressão usada foi
naturalmente “wen hsüeh”. Esse parece ser um ponto conveniente a partir do qual
avaliar a atitude de Confúcio para com a poesia e a música, já que a influência
que o pensador exerceu nas gerações subsequentes foi imensa. O primeiro ponto a
salientar é que na época de Confúcio a conexão entre a poesia e a música era
muito próxima. Embora houvesse música que não envolvesse palavras, toda poesia
podia, provavelmente, ser cantada. Por essa razão, Confúcio provavelmente tinha
a mesma atitude para com ambas. Comecemos com a seguinte passagem: www.rl.art.br. Abraço. Davi
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