Confucionismo.
www.rl.art.br. CONFÚCIO – OS ANALECTOS. III. INTRODUÇÃO. O Mestre disse, sobre shao, que era perfeitamente linda e
perfeitamente boa e, sobre wu, que era perfeitamente linda, mas não
perfeitamente boa. (III.25) Podemos ver com essa passagem que Confúcio exigia
da música e, consequentemente, da literatura, não apenas perfeição estética,
mas também que fosse perfeitamente boa. Shao era a música de Shun, que,
escolhido por sua virtude, subiu ao trono por meio da abdicação de Yao,
enquanto wu era a música do rei Wu, que, apesar da própria virtude, conquistou
o Império apenas depois de recorrer à força – daí o nome wu, “força militar”.
Por esta razão, o primeiro era não apenas perfeitamente belo, mas também
perfeitamente bom, enquanto o último, embora perfeitamente belo, deixou a
desejar quanto à sua bondade. Que Confúcio considerasse o wu inferior ao shao
não é surpreendente se lembrarmos sua ojeriza em relação ao uso da força ou à
violência, que se dizia estarem entre as coisas sobre as quais ele nunca falava
(VII.21). Para Confúcio, algo ser perfeitamente bom era mais importante do que
a perfeição estética. Se uma peça de música é ou não aceitável depende de sua
qualidade moral. A perfeição estética é importante porque é o único veículo
apropriado para conduzir a perfeita bondade. Amúsica esteticamente perfeita
pode-se ouvir com alegria, mas apenas quando a perfeição moral é fundida com a
perfeição estética é que pode ser experimentada a alegria que vai além de
qualquer expectativa. O Mestre ouviu o shao em Ch’i e por três meses não sentiu
o gosto das refeições que comia. Ele disse: “Jamais sonhei que as alegrias da música
pudessem chegar a tais alturas”. (VII.14) Não é por acaso que a música que
encantava Confúcio fosse precisamente shao, que ele elogiava por ser
perfeitamente bom “melodias de Chang” são capazes de conquistar nossa
preferência caso estejamos desatentos. Não são, portanto, pouco atraentes como
música. No final das contas, não é a falta de beleza, mas a falta de correção
ou moralidade que marca a música chamada de “melodias de Cheng”. As “melodias
de Cheng” certamente não diziam respeito somente à música. O que é dito sobre
as melodias aplica-se também às palavras, já que a falsidade existe tanto no
significado das palavras quanto no charme da música. Em oposição às melodias de
Cheng, encontramos Confúcio aclamando o Kuan chü, com os quais as Odes abrem:
No kuan chü há alegria sem futilidade, e tristeza sem amargura. (III.20) Isso
mostra que não era pela expressão de prazer em si, mas pela expressão de
imoderado prazer que Confúcio condenava as melodias de Cheng. Em contraposição,
o Kuan chü é um exemplo da expressão de prazer e de tristeza exatamente na
mesma medida. Confúcio resumiu suas opiniões sobre poesia nas seguintes
palavras: As Odes são trezentas, em número. Podem ser resumidas a uma frase:
Não se desvie do caminho. (II.2). Edificação, entretanto, não é o único
propósito da poesia. Entre outras coisas, as Odes podem “estimular a
imaginação” (XVII.9). Quando se lê poesia, uma pessoa acorda para as
similaridades subjacentes entre fenômenos que, para os de pouca imaginação,
parecem não ter nenhuma relação. Tzu-hsia perguntou: “Seu encantador sorriso
com covinhas, Seus belos olhos esgazeando, Padrões de cores em seda lisa.” Qual
o significado de tais linhas? O Mestre disse: “As cores são acrescentadas após
o branco”. “E a prática dos ritos, também vem depois?” O Mestre disse: “É você,
Shang, quem iluminou o texto para mim. Apenas com um homem como você é possível
discutir as Odes”. (III.8) O Mestre elogiou Tzu-hsia pela sua compreensão das
Odes porque ele viu que, assim como na pintura as cores são acrescentadas
depois que as linhas gerais são dadas em branco, também o refinamento de
observar os ritos é inculcado em um homem que já nasceu com a substância certa.
As Odes têm um outro uso, que é possibilitar que um homem fale bem. O filho de
Confúcio relatou uma conversa que certa vez teve com seu pai. “Você estudou as
Odes?” “Não.” “Amenos que estude as Odes, não será capaz de sustentar uma
conversa” (XVI.13). As Odes eram uma antologia que todo homem educado conhecia
plenamente, de modo que uma citação correta delas extraída podia ser usada para
comunicar a opinião de alguém em situações delicadas ou que requeressem extrema
polidez. Habilidade de falar por meio do disfarce de uma citação era
particularmente útil em conversas diplomáticas. É por essa razão que Confúcio
disse: “Se um homem que conhece as trezentas Odes de cor (...) se mostra
incapaz de ter iniciativa própria quando enviado para reinos estrangeiros,
então qual a utilidade das Odes para ele, independentemente de quantas ele
tenha aprendido?” (XIII.5). Esse jeito de usar as Odes não se limita a
situações diplomáticas. Ao criticar o governante e seu governo, um homem também
deveria recorrer a citações das Odes. Como colocou o autor anônimo do prefácio
de Kuan chü, “Aquele que fala não ofende, ao passo que aquele que ouve pode
entender o aviso”. Isso é importante em sistemas políticos nos quais ofensas
feitas àqueles no poder podem facilmente causar sérios problemas a alguém. E há
outra vantagem. Quando a verdadeira opinião de alguém é amortecida por uma
citação, é sempre possível que esse alguém negue, posteriormente, que tal
significado, seja qual for, tenha sido intencional. Por essa razão, tais
práticas persistiram até os dias de hoje. Em Os analectos há um bom exemplo
desse costume de falar veladamente. O príncipe K’uai K’ui, o filho do duque
Ling, de Wei, fugiu para Chin depois de uma fracassada tentativa de assassinar
Nan Tzu, a famosa mulher do seu pai. Quando da morte do duque de Ling, o filho
de K’uai K’ui, Che, sucedeu ao seu avô. Com o apoio do Exército Chin, o
príncipe K’uai K’ui se instalou em uma cidade fronteiriça de Wei, esperando por
uma oportunidade de destronar seu filho. Jan Yu queria saber se Confúcio estava
do lado de Che, mas já que tanto ele quanto Confúcio eram visitantes naquele
reino não lhes cabia serem vistos discutindo abertamente as políticas de Wei; e
se uma pergunta direta lhe tivesse sido colocada, Confúcio muito provavelmente
teria se recusado a respondê-la. Tzu-kung, que tinha a reputação de ser um
orador talentoso (XI.3), ofereceu-se para tentar descobrir. Assim foi como
correu a conversa. Ele entrou e disse: “Que tipo de homens eram Po Yi e Shu
Ch’i?”. “Eram excelentes anciãos.” “Tinham alguma queixa?” “Procuravam a
benevolência e a encontraram. Então, por que teriam qualquer queixa?” Sequer
uma palavra foi dita sobre Wei, mas Tzu-kung ficou satisfeito por ter obtido a
resposta. Ele saiu e disse: “O Mestre não está do lado dele” (VII.15). Po Yi e
Shu Ch’i eram os filhos do senhor de Ku Chu. O pai queria que Shu Ch’i, o filho
mais novo, o sucedesse, mas, quando ele morreu, nenhum dos filhos estava
disposto a tirar do outro a sucessão, e ambos foram às montanhas e passaram a
viver como eremitas. Ao aprovar Po Yi e Shu Ch’i em sua tentativa de entregar a
sucessão um ao outro, Confúcio estava implicitamente reprovando Che, que estava
envolvido em uma vergonhosa briga com o próprio pai pelo trono. Até agora
olhamos apenas para os ensinamentos morais de Confúcio relacionados ao seu
ideal de cavalheiro. Há, entretanto, outro lado de seus ensinamentos que foi
amplamente negligenciado pelos intelectuais e estudiosos. É a sua preocupação
com o que pode ser descrito como questões de método. No âmago desse aspecto dos
seus ensinamentos está a oposição entre hsüeh (aprendizado) e ssu (pensamento).
Para compreender o significado desta oposição, precisamos, antes de tudo,
descobrir o que constituía aprendizado. Um rápido exame das dificuldades que se
encontram em traduzir a palavra hsüeh se mostrará esclarecedor. A escolha
natural em inglês por um equivalente é o verbo “to learn” [aprender], mas muito
frequentemente somos forçados, pelas exigências da língua inglesa, a usar “to
study ” [estudar]. A razão é a seguinte: o verbo “aprender” requer um objeto
explícito. Por exemplo, não dizemos “ele aprende”. Podemos, é claro, dizer “Ele
aprende rápido”, ou “Ele está disposto a aprender”, mas esses são casos
especiais em que o ponto principal da frase não está na palavra “aprender”. Por
outro lado, dizemos “ele estuda”. Há, entretanto, outras diferenças entre
“aprender” e “estudar”. Tendemos a “aprender” algumas coisas mas “estudar”
outras. Por exemplo, uma criança aprende a andar, mas um entomólogo estuda o
comportamento das formigas. Aprendemos algo prático; estudamos algo teórico.
Quando se trata de aprender, o foco está naquele que aprende; ao estudar, o
foco está no objeto de estudo. Ao aprender algo novo, um homem se aprimora. Ou
ele adquire uma nova técnica ou se torna mais proficiente em uma técnica
antiga. Ao estudar, um homem adquire novos conhecimentos, mas esses novos
conhecimentos não necessariamente fazem alguma diferença para ele do ponto de
vista prático. Essa diferença de uso entre “aprender” e “estudar” é importante
para o entendimento de hsüeh. Hsüeh está muito mais perto de “aprender” do que
de “estudar”. Do mesmo modo que “aprender”, hsüeh faz diferença para o homem
enquanto pessoa. É uma atividade que capacita o homem a adquirir uma habilidade
nova ou se tornar mais proficiente em uma habilidade já adquirida. Mas, no
contexto confucionista, o ponto mais importante é lembrar que é hsüeh que
capacita o homem a se tornar um homem melhor do ponto de vista moral. Assim, a
moralidade, na visão de Confúcio, é algo muito próximo à ideia de habilidade.
Pode ser transmitida de mestre a discípulo. É por causa dessa possibilidade que
Confúcio dava tanta ênfase a hsüeh. Embora “aprender” seja um equivalente muito
mais satisfatório para hsüeh do que “estudar”, uma tentativa de se ater
rigidamente ao uso de “aprender” pode, por si só, dar margem ao surgimento de
dificuldades. Quando, por exemplo, Confúcio fala sobre hsüeh shih, é natural
traduzir isso por “estudar as Odes”, mas isso, conforme vimos, transforma uma
atividade prática em uma teórica. Porém, traduzir a frase por “aprender as Odes”
sugere aprender as Odes de cor. Embora isso sem dúvida seja parte do
significado, definitivamente não é todo o significado nem mesmo a parte mais
importante dele. Como vimos, a principal proposta de hsüeh shih é tanto
aprimorar a sensibilidade de uma pessoa quanto capacitá-la a usar linhas das
Odes para disfarçar o que quer dizer. Assim, às vezes o tradutor se vê em
dificuldade para encontrar um equivalente satisfatório para hsüeh. “Aprender” é
algo que diz respeito a toda a sabedoria acumulada do passado. Embora não
exclua necessariamente conhecimento teórico, a ênfase, conforme é previsível, é
no aprendizado moral. E essas verdades morais são, na maior parte das vezes,
epitomizadas na forma de preceitos. Os ritos eram, claro, um código para tais
preceitos, embora provavelmente também devem ter existido preceitos que não
eram contemplados por esses códigos. Que os ritos formavam uma grande parte
daquilo que um homem precisava aprender é confirmado por duas passagens de Os
analectos. Na primeira, Confúcio disse: “A menos que um homem tenha o espírito
dos ritos (...) ao ter coragem ele vai se tornar indisciplinado e, ao ser
íntegro, ele vai se tornar intolerante” (VIII.2). Entretanto, em outra passagem
ele disse: “Amar a determinação sem amar o aprendizado pode levar à
intolerância” (XVII.8). As duas declarações são praticamente idênticas, exceto
pelo fato de que em uma temos “os ritos”, enquanto na outra temos “aprender”.
Se “aprender” tem um papel tão importante nos ensinamentos de Confúcio, por que
não aparece mais frequentemente em Os analectos? Porque “aprender” não é o
único termo que é usado para a atividade. Muito frequentemente Confúcio usa, no
lugar de “aprender”, wen (ouvir) e, mais raramente, chien (ver). Em especial,
“ouvir” é usado quando há alguma referência ao aprendizado de preceitos
específicos ou quando “aprender” é colocado em contraste com a ação de colocar
em prática aquilo que é aprendido. Aqui estão exemplos do ensinamento de um
preceito específico. O Mestre disse: (...) “Sempre ouvi dizer que um cavalheiro
dá para ajudar os necessitados, e não para manter os ricos em uma vida farta”.
(VI.4). Ch’en Ssu-pai disse: “Ouvi dizer que um cavalheiro não demonstra
parcialidade. E mesmo assim o seu Mestre é parcial?”. (VII.31) Tzu-hsia disse:
“Já ouvi dizer: vida e morte são uma questão de Destino; riqueza e honra
dependem do Céu”. (XII.5) Confúcio disse: “Sempre ouvi dizer que o chefe de um
reino ou de uma família nobre preocupa-se não com subpopulação, mas com a
distribuição desigual; não com a pobreza, mas com a instabilidade”. (XVI.1)
Tzu-yu respondeu: “Há algum tempo ouvi do senhor, Mestre, que o cavalheiro
instruído no Caminho ama seus semelhantes e que os homens vulgares instruídos
no Caminho são fáceis de serem comandados”. (XVII.4) Tzu-lu disse: “Há algum
tempo ouvi do senhor, Mestre, que o cavalheiro não entra nos domínios daquele
que não pratica o bem”. (XVII.7) Tzu-chang disse: “Isso é diferente do que eu
ouvi. Ouvi que o cavalheiro honra aqueles que lhe são superiores e é tolerante
para com a multidão, que é cheio de elogios para com os bons ao mesmo tempo em
que se apieda dos incapazes”. (XIX.3) A relação entre ouvir e colocar em
prática o que se ouviu é claramente abordada nas seguintes passagens: O Mestre
disse: “Use seus ouvidos (wen) amplamente, mas deixe de fora o que é duvidoso;
repita o resto com cuidado e você cometerá poucos erros. Use seus olhos (chien)
amplamente e deixe de fora o que é perigoso; coloque o resto em prática com
cautela e você terá poucos arrependimentos”. (II.18) A única coisa que Tzu-lu
temia era que, antes que pudesse colocar em prática algo que aprendera, lhe
ensinassem outra coisa diferente. (V.14) O Mestre disse: “Estas são as coisas
que me causam preocupação: (...) incapacidade de, quando me é dito (wen) o que
é correto, tomar uma atitude”. (VII.3) O Mestre disse: “Faço amplo uso de meus
ouvidos e sigo o que é bom daquilo que ouvi; faço amplo uso dos meus olhos e
retenho na minha mente o que vi”. (VII.28) Tzu-lu perguntou: “Deve-se
imediatamente colocar em prática o que se ouviu?”. (XI.22) A inter-relação
entre aprender e colocar em prática o que se aprendeu é forte porque entre as
coisas que se aprende estão os preceitos, e qual seria a utilidade de aprender
um preceito se não se fizesse uma tentativa de colocá-lo em prática? Daí a
preocupação de Confúcio quanto a sua incapacidade de se mover para uma nova
posição assim que ele aprendeu que essa posição é moralmente correta e o medo
de Tzu-lu de se atrasar se preceitos surgirem mais rápido do que ele pode acompanhar.
Mas isso não significa que se deve colocar um preceito em prática simplesmente
porque é um preceito. Deve-se, antes de tudo, refletir profundamente quanto a
se ele é correto. É por isso que Confúcio está constantemente aconselhando que
se deve escolher daquilo que foi aprendido apenas o que é bom e deixar de fora
o que é duvidoso. A única maneira de fazer isso é por meio do pensamento. Isso
nos traz de volta à questão de aprender e pensar. Há um ditado bem conhecido em
Os analectos: “Se um homem aprende com os outros mas não pensa, ele ficará
confuso. Se, por outro lado, um homem pensa mas não aprende com os outros, ele
estará em perigo” (II.15). Deve-se aprender com os sábios do passado e do
presente, mas, ao mesmo tempo, deve-se tentar aprimorar aquilo que foi
aprendido. Embora tanto aprender quando pensar sejam indispensáveis, Confúcio
parece considerar o ato de aprender, de alguma forma, mais importante. Ele
disse: “Uma vez passei todo o dia pensando, sem comer nada, e toda a noite
pensando sem ir para a cama, mas descobri que nada ganhei com isso. Teria sido
melhor gastar o tempo estudando” (XV.31). Aqui Confúcio está falando que se
devêssemos nos entregar a uma busca apenas, então aprender seria mais
proveitoso do que pensar. Um momento de reflexão mostrará que essa visão é
bastante razoável. Se a meta de um homem é conseguir avanços de conhecimento,
tanto pensamento quando aprendizado são igualmente necessários, mas, em casos
em que o homem não tem esse objetivo, por meio do aprendizado ele pode ao menos
ganhar algo, ao tomar conhecimento do que já é sabido, mas dificilmente terá
qualquer ganho se ficar pensando in vácuo. Tomemos um exemplo que ilustra o
modo como Confúcio refletiu sobre os ritos existentes. O Mestre disse: “Os
ritos prescrevem um boné cerimonial de linho. Hoje, usamos seda preta no lugar.
Isso é mais frugal, e eu sigo a maioria. Os ritos prescrevem que a pessoa
prostre-se antes de subir os degraus. Hoje faz-se isso após tê-los descido.
Isso é casual, e, embora indo de encontro à maioria, sigo a prática de
prostrar-me antes de subir”. (IX.3) Aqui temos um caso claro de uma visão
crítica de Confúcio quanto aos ritos. Ele concluiu que em um determinado caso
estava preparado para seguir a maioria, mas não no outro caso. Ele chegou a essa
conclusão voltando aos princípios que subjazem aos ritos em questão. No segundo
caso, o princípio subjacente é respeito, enquanto no primeiro caso há
igualmente frugalidade. Que o respeito devesse ser o princípio subjacente é
nada menos do que algo a ser esperado, mas que a frugalidade devesse ser tal
princípio pode parecer surpreendente, até que lembremos da resposta de Confúcio
para uma pergunta quanto aos fundamentos dos ritos. Parte desta resposta foi:
“Com os ritos, é melhor pecar pela simplicidade do que pela extravagância”
(III.4). Todas as coisas sendo iguais, é melhor ser frugal. O gorro de seda
cinza é mais frugal, mas nada perde em respeito. Daí a aprovação de Confúcio.
Prostração depois de subir os degraus, por outro lado, é casual, em outras palavras,
menos respeitoso, e não tem ganhos compensatórios. Daí a desaprovação de
Confúcio. Conforme vimos, preceitos são muitas vezes introduzidos pela fórmula
“Ouvi dizer”. Muitas vezes, entretanto, essa fórmula é dispensada,
particularmente nos casos em que o preceito está para ser examinado. Nesses
casos, a pergunta “O que você acha desse dizer?” é simplesmente colocada. Por
exemplo: Tzu-kung disse: “‘Pobre sem ser servil, rico sem ser arrogante’. O que
o senhor pensa desse provérbio?” O Mestre disse: “É bom, mas melhor ainda é:
‘Pobre, mas alegre no Caminho; rico, porém observador dos ritos’” (I.15). Aqui
o preceito citado por Tzu-kung trata da superação da pobreza e da riqueza como
obstáculos para a realização moral. Confúcio examina o preceito sob esse
aspecto e propõe uma versão aprimorada. Alguém disse: “‘Pague uma injúria com
uma boa ação’. O que você acha desse ditado?”. O Mestre disse: “Com o que,
então, você paga uma boa ação? Deve-se pagar a injúria com a retidão, mas pagar
com uma boa ação apenas uma boa ação”. (XIV.34) Aqui Confúcio critica o
provérbio existente “Pague uma injúria com uma boa ação” por ela ser generosa
demais, já que não deixa nada com o que se pagar uma boa ação. É suficiente, na
visão de Confúcio, que não sejamos motivados pela vingança. O que Confúcio
advoga é o caminho do meio entre vingança e generosidade excessiva. De exemplos
como esses, em que Confúcio examina criticamente preceitos existentes, podemos
inferir algumas coisas sobre sua opinião geral quanto ao problema das regras e
dos princípios. Na época de Confúcio, se alguém devesse explicitar o problema,
seria correto colocá-lo em termos de li (os ritos) e yi (retidão). Já abordamos
a relação entre os dois no contexto da moralidade dos atos e dos agentes. Agora
examinaremos mais detidamente essa relação. Os ritos são um código de regras de
comportamento. Embora os ritos, por serem algo herdado da Antiguidade,
carregassem grande autoridade, mesmo assim essa autoridade não pode garantir a
correção deles. Se eles estão corretos ou não depende de estarem à altura das
exigências do que é correto. Serem ou não corretos, por outro lado, é o
critério pelo qual todos os atos têm, em última instância, de ser avaliados.
Assim, há uma íntima relação entre li e yi. O exame crítico dos preceitos
existentes é precisamente isso, sujeitar as regras à prova de se ele condiz ou
não ao que é considerado correto. Mas por que uma regra que foi considerada
correta no passado deveria ser submetida a novo e fresco escrutínio? A resposta
é a seguinte: primeiro, uma regra, uma vez formulada em termos precisos, não
pode se adaptar a circunstâncias cambiantes. O que foi correto em uma época
anterior não necessariamente continua sendo correto em uma época subsequente.
Essa consciência de que as regras têm de estar de acordo com o os tempos – que
mudam – é claramente sentida por Confúcio. Ele disse: “Os Yin basearam-se nos
ritos de Hsia. Pode-se saber o que foi acrescentado e o que foi omitido. Os
Chou basearam-se nos os ritos de Yin. Pode-se saber o que foi acrescentado e o
que foi omitido” (II.23). Aqui podemos ver que, embora os ritos de uma época
posterior tenham tido como base aqueles de uma época anterior, por causa do
passar do tempo novas regras tiveram de ser acrescidas, e outras, obsoletas, tiveram
de ser suprimidas. Essa consciência de que aquilo que é apropriado muda com o
tempo foi uma das características diferenciadoras do pensamento de Confúcio,
tanto que Mêncio o descreve como “o sábio cujas ações eram apropriadas ao seu
tempo” (Mencius, V.B.1). Em segundo lugar, podem surgir circunstâncias em que
uma regra entre em conflito com outra. Tal conflito apenas pode ser solucionado
lançando-se mão de princípios morais básicos. Em terceiro lugar, mesmo com uma
regra que possa ser satisfatória em si, há ocasiões em que a observância dela
entra em conflito com a ideia por trás da regra. Por todas essas razões, é
preciso sempre estar alerta à possibilidade de que uma regra necessite
reformulação a qualquer momento e em qualquer ocasião. Até agora, apenas
observamos o problema do ponto de vista da subordinação da regra ao princípio.
Igualmente, o princípio não pode existir sem regras que lhe deem expressão.
Princípios morais precisam ser aplicados na prática, e qualquer ato que dê
expressão a um princípio moral será, na verdade, um exemplo de uma ou outra
regra. Isso é, conforme vimos, especialmente verdade nos casos em que o
objetivo de um ato é mostrar certa atitude, por exemplo, respeito. Nenhuma ação
é, inerentemente, um sinal de respeito. Uma ação pode apenas servir para
demonstrar respeito dentro de uma certa convenção, e uma convenção apenas pode
ser pronunciada, declarada, em uma regra. Dessa forma, enquanto uma regra pode
continuar correta apenas sendo constantemente medida e avaliada mediante necessidades
de princípios, um princípio não pode existir sem regras, no que diz respeito a
ter expressão. Esse diálogo entre regra e princípio constitui a essência do
sistema de pensamento moral de Confúcio. Nesse sentido, a abordagem de Confúcio
pode ter algo a oferecer ao debate sobre se moral é algo objetivo ou uma
convenção. O argumento funciona mais ou menos da seguinte forma. Se moralidade
é uma convenção, não tem nenhuma objetividade. Apenas se podem julgar regras
morais dentro das convenções de um dado sistema social do qual elas fazem
parte. Não há como julgá-las misturando critérios de sistemas diferentes. Por
outro lado, se a moralidade é algo objetivo, como ficamos sabendo que essa
realidade objetiva nos coloca problemas epistemológicos? A abordagem de
Confúcio parece oferecer uma saída. Todas as regras morais têm implícito algum
princípio ou princípios. Uma regra pode, portanto, ser julgada por seu sucesso
em realizar esses princípios. Em outras palavras, regras morais têm embutidos
padrões pelos quais podem ser julgadas. Se deixam a desejar, isso aponta para o
caminho do seu aprimoramento. Por outro lado, os princípios implícitos são
ideais que se tornam mais claros para nós na medida em que são usados como
padrões para criticar as regras. Adquirimos uma visão mais aprofundada sobre um
princípio moral ao descobrir as inadequações das regras que lhe dão expressão.
Além de refletir sobre questões morais do passado, pensar também é importante
se conseguimos ver conexões entre fenômenos que à primeira vista parecem não
ter relação. Vimos que isso é importante tanto na esfera da literatura quanto
na esfera da moralidade. Na literatura, vimos que as Odes podem estimular a
imaginação de modo que seja possível ver similaridades subjacentes entre
fenômenos díspares. No campo da moralidade, é por meio do método shu que
podemos esperar ser capazes de praticar a benevolência, e shu consiste em usar
a nós mesmos como analogia para descobrir sobre as preferências e aversões de
outros seres humanos. Confúcio não toleraria nenhum discípulo que, por não
conseguir pensar, fosse incapaz de descobrir novas aplicações para princípios
já conhecidos. Ele disse: “Se mostro um dos cantos de um quadrado para alguém e
essa pessoa não consegue encontrar os outros três, não mostro uma segunda vez”.
De fato, Confúcio acreditava tanto no valor do estudante que fizesse o máximo
de esforço para pensar por si próprio que ele disse, na mesma ocasião: “Nunca
explico nada para alguém que não esqueça do mundo ao tentar entender um problema
ou que não entre em um frenesi ao tentar se expressar por palavras” (VII.8).
Vimos que Confúcio elogiou Tzu-hsia como alguém com quem valia a pena discutir
as Odes (III.8). Ao elogiar Tzukung de modo similar, ele acrescentou a seguinte
observação: “Diga algo a este homem, e ele poderá ver sua relevância em relação
ao que não foi dito” (I.15). Essa também é a característica essencial para um
professor. “Merece ser um professor o homem que descobre o novo ao refrescar na
sua mente aquilo que ele já conhece” (II.11). Inteligência é algo que Confúcio
valorizava muito. O maior elogio feito por ele foi dirigido a Yen Hui, que não
apenas era superior aos seus colegas discípulos em matéria de compreensão moral
como também em inteligência. Quando Tzukung, que não era homem de pouca
inteligência, observou “Como eu ousaria me comparar a Hui? Quando lhe é dita
uma coisa, ele compreende cem coisas. Quando me é dita uma coisa, eu entendo
apenas duas”, Confúcio consolou-o dizendo: “De fato, você não é tão bom quanto
ele. Nenhum de nós dois é tão bom quanto ele” (V.9). Confúcio era um grande
pensador, assim como um grande ser humano. Na condição de pensador, ele
propunha um ideal para todos os homens. Este consistia na possibilidade de uma
pessoa aperfeiçoar o próprio caráter. A realização desse ideal envolve não
apenas ser benevolente com outros indivíduos, mas também trabalhar arduamente
pelo bem-estar do povo. Por isso Confúcio não podia oferecer nenhuma esperança
de recompensa, seja nesta vida ou na próxima. A recompensa reside no ato de
fazer o que é bom, e isso constitui a alegria de perseguir o Caminho. Ele tinha
grande respeito pela sabedoria do passado, mas não a aceitava sem fazer
críticas. Para ele, o único modo de progredir é refletir sobre aquilo que nos
foi entregue pelo passado. Confúcio era tudo, menos dogmático: “recusava-se a
fazer conjecturas ou a ser dogmático; recusava-se a ser inflexível ou
egocêntrico” (IX.4). Ao descrever a si próprio, ele disse: “Não tenho
preconceitos quanto ao que deve e ao que não deve ser feito” (XVIII.8). Não se
pode negar que, ao longo dos séculos, o confucionismo incorporou muitos dogmas
e desenvolveu tendências autoritárias, mas seria tão injusto acusar disso
Confúcio quanto culpar Jesus pelos excessos da Igreja Católica ao longo da
história. Confúcio era modesto quanto às suas próprias realizações. Ele disse:
“Como posso me considerar um sábio ou um homem benevolente?” (VII.34). Apesar
dessa modéstia, ele provavelmente realizou, em grande parte, o seu próprio
ideal. De outra forma, seria impossível justificar a reverência e a afeição a
ele demonstradas pelos discípulos, que eram muito diferentes em termos de
talento e temperamento. Yen Hui, que era excepcional em matéria de moral e
inteligência, disse-lhe certa vez, quando Confúcio achou que ele tinha sido
morto em uma emboscada: “Enquanto o senhor, Mestre, estiver vivo, como eu
ousaria morrer?” (XI.23). Ele descreveu o ideal do Mestre e seu método de
ensino da seguinte maneira: Quanto mais o observo, mais alto ele parece. Quanto
mais o pressiono, mais duro ele se torna. Vejo-o à minha frente. De repente,
está atrás de mim. O Mestre é bom em conduzir alguém passo a passo. Ele me
estimula com a literatura e me traz de volta às coisas essenciais por meio dos
ritos. Eu não conseguiria desistir nem que quisesse, mas, uma vez que dei o
melhor que pude, ele parece levantar-se acima de mim e não consigo segui-lo,
por mais que eu queira. (IX.11) Tzu-kung, o homem do mundo que teve uma
carreira bem-sucedidda tanto como diplomata quanto mercador, fez o seguinte
comentário quando alguém criticou Confúcio: Não é possível difamar Chung-ni. Em
outros casos, homens de excelência são como montanhas que uma pessoa pode
escalar. Chung-ni é como o sol e a lua, que ninguém escala. Mesmo que alguém
quisesse escapar do sol e da lua, como isso deporia contra eles? Isso somente
serviria para mostrar mais claramente que esse alguém não teve consciência do
seu próprio tamanho. (XIX.24) Mais adiante ele disse: O Mestre não pode ser
igualado, assim como o céu não pode ser medido. (...) Em vida, ele é
glorificado e, na morte, será pranteado. Como pode ele ser igualado? (XIX.25)
Tseng Tzu, o discípulo que levava sua responsabilidade moral tão seriamente
(VIII.7), disse, de acordo com Mencius, o seguinte sobre Confúcio: Banhado pelo
Rio e por Han, alvejado pelo sol de outono, tão imaculado era ele que seu
testemunho não pode ser ultrapassado. (III.1.4) Mêncio deu eco a esse
sentimento quando disse: Desde que o ser humano veio para este planeta, nunca
houve um maior do que Confúcio. (II.A.2) De sua parte, Confúcio nunca se disse
superior em inteligência ou em qualidades morais. Ele disse: “Não nasci com
conhecimento, mas, por gostar do que é antigo, apressei-me em buscá-lo”
(VII.20), e “Em um vilarejo de dez casas, sempre haverá aqueles que são meus
iguais quanto a fazer o melhor que podem pelos outros e quanto a ser fiéis às
próprias palavras, mas dificilmente terão tanta vontade de aprender quanto eu
tenho” (V.28). Em ambos os dizeres, tudo o que ele proclamava era sua sede de
aprender. Esta era igualada apenas por sua sede de ensinar. Ele disse:
“Silenciosamente depositar conhecimento na minha mente, aprender sem perder a
curiosidade, ensinar sem cansar: isso não me apresenta dificuldade alguma”
(VII.2). Novamente, ao negar que fosse um sábio, ele disse: “Talvez possa ser
dito sobre mim que aprendo sem esmorecer e que ensino sem me cansar” (VII.34).
Como professor, ele era capaz tanto de criticar seus discípulos com firmeza
quanto de provocá-los de forma bemhumorada. Quando Tsai Yü tirou um cochilo
durante o dia, Confúcio disse: “Um pedaço de madeira podre não pode ser
esculpido, tampouco pode uma parede de esterco seco ser aplainada” (V.10). De
novo, quando o mesmo discípulo duvidou da sabedoria do período de luto de três
anos, Confúcio disse: “Quão insensível é Yü. (...) Os pais de Yü não lhe deram
três anos de amor?” (XVII.21) Na ocasião em que Confúcio foi até Wu Ch’eng e
encontrou Tzu-y u ensinando música às pessoas, ele brincou com o discípulo ao
dizer: “Para que usar um cutelo de boi para matar uma galinha?” Quando Tzu-y u
levou isso a sério e começou a defender suas próprias ações, Confúcio admitiu
que estava apenas brincando (XVII.4). A impressão predominante que fica de
Confúcio, ao se ler Os analectos, é a de um homem cuja vida era cheia de
alegrias. Quando o prefeito de She perguntou a Tzu-lu que tipo de homem
Confúcio era, Tzu-lu não respondeu. O comentário de Confúcio foi: Por que você
não falou simplesmente o seguinte: ele é o tipo de homem que esquece de comer
quando está distraído com um problema, que é tão alegre que esquece suas
preocupações e que não percebe a aproximação da velhice? (VII.19) Ele descreve
essa alegria em termos mais concretos quando diz: Ao comer arroz comum e ao
beber água, ao utilizar o próprio cotovelo como apoio, a alegria será
encontrada. Riqueza e status conquistados por meios imorais têm tanto a ver
comigo quanto as nuvens que passam. (VII.16) Não há dúvida de que parte dessa
alegria vinha da busca do Caminho. Confúcio disse: “aos setenta, segui o meu
coração, sem passar dos limites” (II.4). É compreensível que ele tenha ficado
alegre quando, após toda uma vida de cultivação moral, ele descobriu que aquilo
que ele desejava naturalmente coincidia com aquilo que era moral. Mas a alegria
não era confinada ao lado moral da sua vida. Em uma ocasião em que ele estava
com um grupo de discípulos, Confúcio pediu que dissessem o que gostariam de
fazer. Quando terminaram, Confúcio demonstrou que sua simpatia estava com Tseng
Hsi, que dissera: No final da primavera, uma vez confeccionadas as roupas da
estação, eu gostaria de, junto com cinco ou seis adultos ou sete meninos, ir
tomar banho no rio Yi e aproveitar a brisa no Altar da Chuva e então voltar
para casa entoando poesias. (XI.26) Eis aqui um homem que, de fato, apreciava
as alegrias da vida. Qualquer um que tenha lido os dizeres de Confúcio
atentamente e sem preconceitos com certeza achará difícil reconhecer o
incorrigível conservador e arqui vilão no qual às vezes ele é transformado.
Confúcio é, talvez, uma nova instância do profeta-modelo. D.C.L. www.rl.art.br. Abraço. Davi
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