quinta-feira, 21 de julho de 2016

II. DESENVOLVENDO A COMPAIXÃO.

Escrito por Tenzin Gyatso (1935-  ), o décimo quarto Dalai Lama. Capítulo dois. DESENVOLVENDO A COMPAIXÃO. AMIGOS E INIMIGOS. Devo assinalar mais uma vez que simplesmente pensar que a compaixão, a razão e a paciência são boas não será suficiente para desenvolvê-las. Devemos esperar que surjam dificuldades e então tentar praticá-las. E quem cria essas oportunidades? Não os nossos amigos, é claro, mas os nossos inimigos. São eles que nos dão mais trabalho. Então, se realmente quisermos aprender, deveremos considerar nossos inimigos os nossos maiores professores! Para alguém que valorize a compaixão e o amor, a prática da paciência é essencial, e para isso os inimigos são indispensáveis. Assim, deveríamos ser gratos a nossos inimigos, pois são eles quem mais podem nos ajudar a desenvolver uma mente tranquila! Além disso, tanto na vida pessoal quanto na vida pública, muitas vezes uma mudança de circunstâncias transforma inimigos em amigos. É claro que todos queremos amigos, o que é natural e correto. Mas essa amizade é produzida por brigas e raiva, por inveja e por uma competividade intensa? Não penso assim. A melhor maneira de fazer amigos é ser muito compassivo! Só a afeição nos traz verdadeiros amigos íntimos. Você deve tomar muito cuidado com os outros, preocupar-se com seu bem estar, ajuda-lo, servi-lo, fazer mais amigos, criar mais sorrisos. O resultado? Quando for você a precisar de ajuda, encontrará muitos ajudantes! Se, por outro lado, você negligenciar a felicidade dos outros, a longo prazo será você o perdedor. Na sociedade materialista de hoje em dia, se você tem dinheiro e poder, pode parecer que tem muitos amigos. Mas eles não são seus amigos; são amigos do seu dinheiro e do seu poder. Quando você perde sua riqueza e sua influência, descobrirá que é muito difícil encontrar essas pessoas. O problema é que, quando as coisas no mundo correm bem para nós, tornamo-nos confiantes de que podemos cuidar de tudo sozinhos e sentimos que não precisamos de amigos, mas, à medida que nosso status ou nossa saúde declina, rapidamente percebemos o quanto estávamos errados. Assim, para nos preparar para essa época, para fazer amigos genuínos que nos ajudarão quando surgir a necessidade, devemos cultivar a compaixão! Embora as pessoas às vezes riam quando digo isso, eu próprio sempre quero mais amigos.  Adoro sorrisos. Por causa disso, tenho o problema de saber como fazer mais amigos, especialmente sorrisos genuínos. Existem outros tipos de sorrisos, como o sorriso sarcástico, sorriso artificial ou o sorriso diplomático. Muitos sorrisos não produzem nenhum sentimento de satisfação e algumas vezes podem até criar suspeita ou medo, não é mesmo? Mas um sorriso genuíno realmente nos transmite um sentimento de frescor e é, acredito, exclusivo dos seres humanos. Se forem esses os sorrisos que queremos, então devemos criar as razões para que surjam. Então, como fazer amigos? Certamente não por meio de ódio e do confronto. É impossível fazer amigos batendo nas pessoas e brigando com elas. Uma amizade genuína só pode  surgir por meio de uma cooperação baseada na honestidade e na sinceridade, e isso significa ter uma mente aberta e um coração generoso. Acredito que isso fique óbvio observando nossas próprias interações cotidianas com os outros. SUPERANDO O INIMIGO INTERIOR. A raiva e o ódio são nossos verdadeiros inimigos. São as forças que mais precisamos confrontar e derrotar, não “inimigos” temporários que aparecem de forma intermitente durante nossa vida. E a não ser que treinemos nossa mente para reduzir sua força negativa, eles continuarão a nos perturbar e a destruir nossas tentativas de desenvolver uma mente calma. Para eliminar completamente o potencial destrutivo da raiva e do ódio, precisamos reconhecer que a raiz da raiva está na atitude que valoriza nosso próprio bem estar e benefício ao mesmo tempo em que ignora o bem estar dos outros. Essa atitude egoísta está na origem não apenas da raiva, mas de praticamente todos os nossos estados de espírito. É uma atitude iludida, que tem uma percepção equivocada da maneira como as coisas realmente são, e esse equívoco é responsável  por todo o sofrimento e a insatisfação que sentimos. Portanto, a primeira tarefa de um praticante da compaixão e de um bom coração é obter uma compreensão da natureza destrutiva desse inimigo interior e de como ela leva de maneira natural e inevitável a consequências indesejáveis. De modo a ver claramente esse processo destrutivo, precisamos nos conscientizar da natureza da mente. Sempre digo às pessoas que a mente é um fenômeno muito complexo. Segundo a filosofia budista, existem muitos tipos de mente, ou consciência, e na meditação budista desenvolvemos uma profunda familiaridade com nossos estados mentais em constante mudança. Na pesquisa científica, analisamos a matéria em termos das partículas que a constituem. Valorizamos o potencial das várias composições moleculares e químicas e das estruturas atômicas que têm  valor benéfico, ao mesmo tempo em que negligenciamos, ou em alguns casos eliminamos deliberadamente, aquelas desprovidas de tais propriedades úteis. Essa abordagem discriminatória levou a alguns resultados fascinantes. Se prestássemos uma quantidade de atenção semelhante à análise de nossa mente, do mundo da experiência e dos fenômenos mentais, descobriríamos que existem inúmeros estados mentais, diferentes em seu modo de apreensão, em seu objeto, na intensidade de seu compromisso com seu objeto, e assim por diante. Alguns aspectos da mente são úteis e benéficos, então deveríamos identifica-lo corretamente e aumentar seu potencial. Como os cientistas, se, ao examiná-los, descobrirmos que determinados estados de espírito são prejudiciais por trazer-nos sofrimento e problemas, então deveremos buscar uma maneira de erradica-los. Esse realmente é um projeto que vale muito apenas. Na verdade, é a maior preocupação para os praticantes do budismo. É bastante parecido com o abrir o crânio de alguém para fazer experimentos naquelas pequenas células com o objetivo de determinar quais as que nos trazem felicidade e as que causam perturbações. Enquanto esses inimigos interiores permanecerem lá em segurança, o perigo é grande. Quando abordamos uma técnica como o treinamento budista da mente, devemos compreender e avaliar a complexidade da tarefa que temos diante de nós. As escrituras budistas mencionam oitenta e quatro mil tipos de pensamentos negativos e destrutivos, que tem oitenta e quatro mil abordagens ou antídotos correspondentes. É importante não ter a expectativa pouco realista de que de algum modo, em algum lugar, encontraremos uma única chave mágica que nos ajudará a erradicar todas essas negatividades. Precisamos aplicar muitos métodos diferentes durante um longo período para obter resultados duradouros. Assim, precisaremos de grande determinação e paciência. É errado esperar que, quando você começar a prática do Dharma, ficará iluminado em curto período, talvez em uma semana. Isso é irrealista. O famoso santo budista Nagarjuna escreveu um lindo texto sobre a necessidade de paciência e de uma noção do tempo necessário para realmente engajar-se em um processo de treinamento mental. Segundo Nagarjuna, se por meio do treinamento e da disciplina mental, por meio da compreensão e de sua aplicação habilidosa, você for capaz de desenvolver dentro de si um sentimento de tranquilidade e confiança, uma tranquilidade baseada em uma postura confirmada e definitiva, o tempo necessário para se tornar iluminado não importa. Ao contrário de Nagarjuna, em nossa própria experiência pessoal, o tempo é importante. Se estivermos passando por um acontecimento insuportavelmente triste, mesmo por pouco tempo, ficamos impacientes. Queremos sair desse estado o mais rápido possível. Já que a compaixão e um bom coração se desenvolvem graças a um esforço constante e consciente, é importante primeiro identificar as condições favoráveis que dão origem a nossas próprias qualidades de gentileza e depois identificar as circunstâncias adversas que nos impedem de cultivar esses estados de espírito positivo. Assim, é importante que levemos uma vida de consciência e alerta mental constantes. Nosso domínio da consciência deveria ser tal que, todas as vezes em que uma nova situação surgisse, fôssemos capazes de reconhecer imediatamente se as circunstâncias são favoráveis ou adversas ao desenvolvimento da compaixão e de um bom coração. Ao buscar praticar a compaixão dessa maneira, gradualmente seremos capazes de aliviar os efeitos das forças obstrutivas e de intensificar as condições que favorecem o desenvolvimento da compaixão e de um bom coração. Como já mencionei, qualquer tipo de felicidade e de sofrimento é em primeiro lugar físico ou mental. Quando a dor chega principalmente na forma de sensações físicas, pode ser aliviada por um estado mental positivo, se seu estado mental estiver calmo, isso pode neutralizar a dor. Uma atitude de aceitação ou de disposição para suportar essa dor física também pode fazer uma grande diferença. Por outro lado, se sua dor for principalmente mental e não física, então é muito difícil obter qualquer alívio do conforto físico. Você pode tentar neutralizar a dor por meio da gratificação sensorial, mas isso nunca funciona por muito tempo e, na verdade, pode piorar sua dor. Portanto, é muito útil  e importante concentrar-se no treinamento mental todos os dias, mesmo independentemente de considerações espirituais sobre a hora da morte  ou o caminho para a iluminação. Mesmo no caso daqueles que não estão interessados em tais preocupações de longo prazo, vale mais a pena cuidar de nossa mente do que cuidar somente de nosso dinheiro. É claro que o budismo não se preocupa apenas com o alívio da própria dor, seu objetivo é garantir que todos os seres vivos estejam livres do sofrimento. No entanto, se é tão difícil suportar nossa própria dor, como podemos sequer pensar em assumir a responsabilidade pelo sofrimento de todos os seres? Em sua grande obra, Guia para o modo de vida do bodhisattva, o mestre indiano do século VIII, Shantideva, diz que existe uma diferença fenomenológica entre a dor que se sente quando se assume a dor de outra pessoa e a dor vinda diretamente da própria dor e sofrimento. Na primeira, há um elemento de desconforto porque você está compartilhando a dor de outra pessoa; no entanto, também há uma certa dose de estabilidade porque, de certo modo, você está aceitando essa dor voluntariamente. Na participação voluntária no sofrimento de outra pessoa há força e uma sensação de confiança. No entanto, no segundo caso, quando você está passando por sua própria dor e sofrimento, há um elemento involuntário e, por causa dessa falta de controle da sua parte, você se sente fraco e completamente subjugado. Nos ensinamentos budistas sobre altruísmo e compaixão, usam-se determinadas expressões, tais como “Despreze seu próprio bem estar e valorize o bem estar dos outros”. Instruções desse tipo podem parecer intimidadoras, mas é importante entender essas afirmações sobre a prática de compartilhar voluntariamente a dor e o sofrimento de outra pessoa em seu contexto correto. Fundamentalmente, a base sobre a qual você pode construir uma noção de cuidar dos outros é a capacidade de amar a si mesmo. O amor por si próprio não nasce de alguma grande dívida que você tenha consigo mesmo. Pelo contrário, a capacidade de amar a si mesmo baseia-se no fato de que todos desejamos naturalmente a felicidade e queremos evitar o sofrimento. E uma vez que você reconhece esse amor em relação a si mesmo, poderá então estendê-lo para outros seres sencientes. Assim, quando encontrar nos ensinamentos afirmações como “Despreze seu próprio bem estar e valorize o bem estar dos outros”, você deve entende-los no contexto de treinar-se segundo o ideal da compaixão. Isso é importante para não nos entregarmos a modos auto referentes de pensar que desprezem o impacto de nossas ações sobre outras pessoas. Podemos desenvolver a atitude de considerar outros seres sencientes tão preciosos quanto nós reconhecendo papel de sua gentileza em nossa própria experiência de alegria, da felicidade e do sucesso. Essa deveria ser a nossa primeira consideração. Em seguida, deveríamos ter em mente que, por meio de uma análise, podemos ver que grande parte de nossa primeira consideração. Em seguida, deveríamos ter em mente que, por meio de uma análise, podemos ver que grande parte de nossa tristeza e de nossa dor é o resultado de uma atitude auto referente que valoriza nosso próprio bem estar em detrimento dos outros, enquanto grande parte da alegria e da sensação de segurança em nossas vidas vem de pensamentos e emoções que valorizam o bem estar dos outros. Contrastar essas duas atitudes – valorizar apenas a nós mesmos versus valorizar os outros – nos convence da necessidade de considerar precioso o bem estar dos outros. EQUANIMIDADE. Já que a compaixão genuína é Universal e não faz distinções, cultivar a compaixão deve envolver, em primeiro lugar, o cultivo da equanimidade em relação a todos os seres sencientes. Por exemplo, você pode saber que tal pessoa é seu amigo ou seu parente nesta vida, mas o budismo assinala que essa pessoa pode ter sido seu pior inimigo em uma vida passada. Você pode aplicar o mesmo tipo de raciocínio a alguém que considere um inimigo: embora essa pessoa possa se comportar negativamente com você e ser sua inimiga nesta vida, ela pode ter sido seu melhor amigo ou mesmo sua mãe em uma vida passada. Ao  refletir sobre a natureza flutuante de nossa relação com os outros e também sobre o potencial que existe em todos os seres sencientes tanto para serem amigos quanto inimigos, você pode desenvolver essa serenidade mental ou equanimidade. A prática de desenvolver a equanimidade envolve uma forma de distanciamento, mas é  importante entender o que significa distanciamento. Algumas vezes, quando as pessoas ouvem falar na prática budista do distanciamento, pensam que o budismo está pregando a indiferença em relação a todas as coisas, mas não é esse o caso. Manter um certo distanciamento significa reavaliar se o que sentimos pelos outros está baseado em considerações superficiais de distância ou proximidade. Então, baseados nisso, podemos desenvolver uma compaixão que seja realmente Universal. O distanciamento não significa indiferença em relação ao mundo ou à vida – significa justamente o contrário. Uma experiência profunda de distanciamento é a base sobre a qual podemos construir uma compaixão genuína que se estenda a todos os demais seres sencientes. Do Livro A Vida de Compaixão. Abraço. Davi.

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