quarta-feira, 20 de julho de 2016

DESAFIOS ECOLÓGICOS DO FIM DO MILÊNIO.

Espiritualidade. Texto de (2001) Leonardo Boff. O bem-estar não pode ser só social, tem de ser também sócio cósmico". Ernst Haeckel, biólogo alemão (1834-1919), criou em 1866 a palavra ecologia e definiu o seu significado: o estudo do interretrorelacionamento de todos os sistemas vivos e não vivos entre si e com seu meio ambiente. De um discurso regional como subcapítulo da biologia, passou a ser atualmente um discurso Universal, quiçá de maior força mobilizadora na virada do milênio. Na pletora de propostas, queremos apresentar, como numa leitura de cegos, os elementos mais relevantes da discussão atual. Ela se dá em quatro grandes vertentes: a ecologia ambiental, a ecologia social, a ecologia mental e a ecologia integral. Ecologia ambiental. Esta primeira vertente se preocupa com o meio ambiente, para que não sofra excessiva desfiguração, com qualidade de vida e com a preservação das espécies em extinção. Ela vê a natureza fora do ser humano e da sociedade. Procura tecnologias novas, menos poluentes, privilegiando soluções técnicas. Ela é importante porque procura corrigir os excessos da voracidade do projeto industrialista mundial, que implica sempre custos ecológicos altos. Se não cuidarmos do planeta como um todo, podemos submetê-lo a graves riscos de destruição de partes da biosfera e, no seu termo, inviabilizar a própria vida no planeta. Ecologia social. A segunda a ecologia social não quer apenas o meio ambiente. Quer o ambiente inteiro. Insere o ser humano e a sociedade dentro da natureza. Preocupa-se não apenas com o embelezamento da cidade, com melhores avenidas, com praças ou praias mais atrativas. Mas prioriza o saneamento básico, uma boa rede escolar e um serviço de saúde decente. A injustiça social significa uma violência contra o ser mais complexo e singular da criação que é o ser humano, homem e mulher. Ele é parte e parcela da natureza. A ecologia social propugna por um desenvolvimento sustentável. É aquele em que se atende às carências básicas dos seres humanos hoje sem sacrificar o capital natural da Terra e se considera também as necessidades das gerações futuras que têm direito à sua satisfação e de herdarem uma Terra habitável com relações humanas minimamente justas. Mas o tipo de sociedade construída nos últimos 400 anos impede que se realize um desenvolvimento sustentável. É energívora (se alimenta de energia), montou um modelo de desenvolvimento que pratica sistematicamente a pilhagem dos recursos da Terra e explora a força de trabalho. No imaginário dos pais fundadores da sociedade moderna, o desenvolvimento se movia dentro de dois infinitos: o infinito dos recursos naturais e o infinito do desenvolvimento rumo ao futuro. Esta pressuposição se revelou ilusória. Os recursos não são infinitos. A maioria está se acabando, principalmente a água potável e os combustíveis fósseis. E o tipo de desenvolvimento linear e crescente para o futuro não é universalizável. Não é, portanto, infinito. Se as famílias chinesas quisessem ter os automóveis que as famílias americanas têm, a China viraria um imenso estacionamento. Não haveria combustível suficiente e ninguém se moveria. Carecemos de uma sociedade sustentável que encontra para si o desenvolvimento viável para as necessidades de todos. O bem-estar não pode ser apenas social, mas tem de ser também sócio cósmico. Ele tem que atender aos demais seres da natureza, como as águas, as plantas, os animais, os micro organismo, pois todos juntos constituem a comunidade planetária, na qual estamos inseridos, e sem os quais nós mesmos não viveríamos.Ecologia mental. A terceira, a ecologia mental, chamada também de ecologia profunda, sustenta que as causas do déficit da Terra não se encontram apenas no tipo de sociedade que atualmente temos. Mas também no tipo de mentalidade que vigora, cujas raízes alcançam épocas anteriores à nossa história moderna, incluindo a profundidade da vida psíquica humana consciente e inconsciente, pessoal e arquetípica.  Há em nós instintos de violência, vontade de dominação, arquétipos sombrios que nos afastam da benevolência e compaixão em relação à vida e à natureza. Aí dentro da mente humana se iniciam os mecanismos que nos levam a uma guerra contra a Terra. Eles se expressam por uma categoria: a nossa cultura antropocêntrica. O antropocentrismo considera o ser humano rei/rainha do Universo. Pensa que os demais seres só têm sentido quando ordenados ao ser humano; eles estão aí disponíveis ao seu bel prazer. Esta estrutura quebra com a lei mais Universal do Universo: a solidariedade cósmica. Todos os seres são interdependentes e vivem dentro de uma teia intrincadíssima de relações. Todos são importantes. Não há isso de alguém ser rei/rainha e considerar-se independente sem precisar dos demais. A moderna cosmologia nos ensina que tudo tem a ver com tudo em todos os momentos e em todas as circunstâncias. O ser humano esquece esta realidade. Afasta-se e se coloca sobre as coisas em vez de sentir-se junto e com elas, numa imensa comunidade planetária e cósmica. Importa recuperarmos atitudes de respeito e veneração para com a Terra. Isso somente se consegue se antes for resgatada a dimensão do feminino no homem e na mulher. Pelo feminino o ser humano se abre ao cuidado, se sensibiliza pela profundidade misteriosa da vida e recupera sua capacidade de maravilhamento. O feminino ajuda a resgatar a dimensão do sagrado. O sagrado impõe sempre limites à manipulação do mundo, pois ele dá origem à veneração e ao respeito, fundamentais para a salvaguarda da Terra. Cria a capacidade de religar todas as coisas à sua fonte criadora que é o Criador e o Ordenador do Universo. Desta capacidade religadora nascem todas as religiões. Precisamos hoje revitalizar as religiões para que cumpram sua função religadora. Ecologia integral. Por fim, a quarta - a ecologia integral - parte de uma nova visão da Terra. É a visão inaugurada pelos astronautas a partir dos anos 60 quando se lançaram os primeiros foguetes tripulados. Eles vêm a Terra de fora da Terra. De lá, de sua nave espacial ou da Lua, como testemunharam vários deles, a Terra aparece como resplandecente planeta azul e branco que cabe na palma da mão e que pode ser escondido pelo polegar humano. Daquela perspectiva, Terra e seres humanos emergem como uma única entidade. O ser humano é a própria Terra enquanto sente, pensa, ama, chora e venera. A Terra emerge como o terceiro planeta de um Sol que é apenas um entre 100 bilhões de outros de nossa galáxia, que, por sua vez, é uma entre 100 bilhões de outras do Universo, Universo que, possivelmente, é apenas um entre outros milhões paralelos e diversos do nosso. E tudo caminhou com tal calibragem que permitiu a nossa existência aqui e agora. Caso contrário não estaríamos aqui. Os cosmólogos, vindos da astrofísica, da física quântica, da biologia molecular, numa palavra, das ciências da Terra, nos advertem que o inteiro Universo se encontra em cosmogênese. Isto significa: ele está em gênese, se constituindo e nascendo, formando um sistema aberto, sempre capaz de novas aquisições e novas expressões. Portanto ninguém está pronto. Por isso, temos que ter paciência com o processo global, uns com os outros e também conosco mesmo, pois nós, humanos, estamos igualmente em processo de antropogênese, de constituição e de nascimento. Três grandes emergências ocorrem na cosmogênese e antropogênese: (1) a complexidade/diferenciação, (2) a auto-organização/consciência e (3) a religação/relação de tudo com tudo. A partir de seu primeiro momento, após o Big Bang, a evolução está criando mais e mais seres diferentes e complexos (1). Quanto mais complexos mais se auto-organizam, mais mostram interioridade e possuem mais e mais níveis de consciência (2) até chegaram à consciência reflexa no ser humano. O Universo, pois, como um todo possui uma profundidade espiritual. Para estar no ser humano, o espírito estava antes no Universo. Agora ele emerge em nós na forma da consciência reflexa e da amorização. E, quanto mais complexo e consciente, mais se relaciona e se religa (3) com todas as coisas, fazendo com que o Universo seja realmente Uni-Verso, uma totalidade orgânica, dinâmica, diversa, tensa e harmônica, um cosmos e não um caos. As quatro interações existentes, a gravitacional, a eletromagnética e a nuclear fraca e forte, constituem os princípios diretores do Universo, de todos os seres, também dos seres humanos. A galáxia mais distante se encontra sob a ação destas quatro energias primordiais, bem como a formiga que caminha sobre minha mesa e os neurônios do cérebro humano com os quais faço estas reflexões. Tudo se mantém religado num equilíbrio dinâmico, aberto, passando pelo caos que é sempre generativo, pois propicia um novo equilíbrio mais alto e complexo, desembocando numa ordem, rica de novas potencialidades. Uma visão libertadora.  A ecologia integral procura acostumar o ser humano com esta visão global e holística. O holismo não significa a soma das partes, mas a captação da totalidade orgânica, una e diversa em suas partes, mas sempre articuladas entre si dentro da totalidade e constituindo esta totalidade. Esta cosmo visão desperta no ser humano a consciência de sua funcionalidade dentro desta imensa totalidade. Ele é um ser que pode captar todas estas dimensões, alegrar-se com elas, louvar e agradecer aquela Inteligência que tudo ordena e aquele Amor que tudo move, sentir-se um ser ético, responsável pela parte do Universo que lhe cabe habitar, a Terra. Ela, a Terra, é, segundo notáveis cientistas, um super organismo vivo, denominado Gaia, com calibragens refinadíssimas de elementos físico-químicos e auto organizacionais que somente um ser vivo pode ter. Nós, seres humanos, podemos ser o satã da Terra, como podemos ser seu anjo da guarda bom. Esta visão exige uma nova civilização e um novo tipo de religião, capaz de religar Deus e mundo, mundo e ser humano, ser humano e a espiritualidade do cosmos. O cristianismo é levado a aprofundar a dimensão cósmica da encarnação, da inabitação do espírito da natureza e do panenteísmo, segundo o qual Deus está em tudo e tudo está em Deus. Importa fazermos as pazes e não apenas uma trégua com a Terra. Cumpre refazermos uma aliança de fraternidade/sororidade e de respeito para com ela. E sentirmo-nos imbuídos do Espírito que tudo penetra e daquele Amor que, no dizer de Dante, move o céu, todas as estrelas e também nossos corações. Não cabe opormos as várias correntes da ecologia. Mas discernirmos como se complementam e em que medida nos ajudam a sermos um ser de relações, produtores de padrões de comportamentos que tenham como consequência a preservação e a potenciação do patrimônio formado ao longo de 15 bilhões de anos e que chegou até nós e que devemos passá-lo adiante dentro de um espírito sinergético e afinado com a grande sinfonia universal. Paz como equilíbrio do movimento. Como definir a paz? Desde a antiguidade encontramos muitas definições. Todas elas possuem suas boas razões e também seus limites. Privilegiamos uma, por ser extremamente sugestiva: a paz é o equilíbrio do movimento. A felicidade desta definição reside no fato de que se ajusta à lógica do Universo e de todos os processos biológicos Tudo no Universo é movimento, nada é estático e feito uma vez por todas. Viemos de uma primeira grande instabilidade e de um incomensurável caos. Tudo explodiu. Começou o movimento que ainda não terminou. E ao expandir-se, o Universo vai pondo ordem no caos. Por isso o movimento de expansão é criativo e generativo. E esta ordem surge pelo jogo de relações que todas as coisas entretém entre si. Tudo tem a ver com tudo em todos os momentos e em todas as circunstâncias. Essa afirmação constitui a tese básica de toda a cosmologia contemporânea, da física quântica e da biologia genética e molecular. Em razão da panrelacionadade de tudo com tudo o universo não deve mais ser entendido como o conjunto de todos os seres existentes e por existir, mas como o jogo total, articulado e dinâmico de todas as relações que sustentam os seres e os mantém unidos e interdependentes entre si. A vida, as sociedades humanas e as biografias das pessoas se caracterizam pelo movimento. A vida nasceu do movimento da matéria que se auto-organiza; a matéria nunca é "material" mas um jogo altamente interativo de energias e de dinamismos que fazem surgir os mais diferentes seres. Não sem razão asseveram alguns biólogos que, quando a matéria alcança determinado nível de auto-organização, em qualquer parte do universo, emerge a vida como imperativo cósmico, fruto do movimento de relações que pervade todo o cosmos. As coisas mantém-se em movimento, por isso evoluem; elas ainda não acabaram de nascer. Estão em processo de gênese: cosmogênese, biogênese, antropogênese e cristogênese. O ser humano passa por sucessivos processos de transformação mediante os quais constrói sua identidade e plasma seu destino. Mas o caos jamais teria chegado a cosmos e a desordem primordial jamais teria se transformado em ordem aberta se não houvesse o equilíbrio. Este é tão importante quanto o movimento. Movimento desordenado é destrutivo e produtor de entropia. Movimento com equilíbrio produz sintropia e faz emergir o Universo como cosmos, vale dizer, como harmonia, ordem e beleza. Que significa equilíbrio? Equilíbrio é a justa medida entre o mais e o menos. É o ótimo relativo. O movimento possui equilíbrio e assim expressa a situação de paz se ele se rea lizar dentro da justa medida, não for nem excessivo nem deficiente. Importa, então, sabermos o que significa a justa medida. A justa medida consiste na capacidade de usar potencialidades naturais, sociais e pessoais de tal forma que elas possam durar o mais possível e possam, sem perda, se reproduzir. Isso só é possível, quando se estabelece moderação e equilíbrio entre o mais e o menos. A justa medida pressupõe realismo, aceitação humilde dos limites e aproveitamento inteligente das possibilidades. É este equilíbrio que garante a sustentabilidade a todos os fenômenos e processos, à Terra, às sociedades e à vida das pessoas. 0 Universo surgiu por causa de um equilíbrio extremamente sutil. Após a grande explosão originária, se a força de expansão fosse fraca demais, o Universo calapsaria sobre si mesmo. Se fosse forte demais, a matéria cósmica não conseguiria adensar-se e formar assim gigantescas estrelas vermelhas, posteriormente, as galáxias, as estrelas, os sistemas planetários e os seres singulares. Se não tivesse funcionado esse refinadíssimo equilíbrio nós humanos não estaríamos aqui para falar disso tudo. Há paz no universo e as estrelas não caem sobre nossas cabeças porque há equilíbrio do movimento. Como alcançar essa justa medida e esse equilíbrio dinâmico? Essa é uma questão extremamente complexa. A própria natureza do equilíbrio demanda uma arte combinatória de muitos fatores e de muitas dimensões, buscando a justa medida dentre todas elas. Pretender derivar o equilíbrio de uma única instância é situar-se numa posição sem equilíbrio. Por isso não basta a razão crítica, não é suficiente a razão simbólica, presente na religião e na espiritualidade, nem a razão emocional, subjacente ao mundo dos valores e das significações, nem o recurso da tradição, do bom senso e da sabedoria dos povos. Todas estas instâncias são importantes, mas nenhuma delas é suficiente, por si só, para garantir o equilíbrio. Este exige uma articulação de todas as dimensões e todas as forças. Numa palavra, o equilíbrio evoca a sabedoria que é exatamente o saber que tem sabor, o saber justo sobre cada coisa e situação, a atitude que se mantem equidistante da carência e da abundância, do mais e do menos. A partir destas ideias, temos condições de apreciar a excelência da compreensão da paz como equilíbrio do movimento. Se houvesse somente movimento sem equilíbrio, movimento linear ou desordenado, em todas as direções, imperaria o caos e teríamos perdido a paz. Se houvesse apenas equilíbrio sem movimento, sem abertura a novas relações, reinaria a estagnação e nada evoluiria. Seria a paz dos túmulos. A manutenção sábia dos dois polos faz emergir a paz dinâmica, feita e sempre por fazer, aberta a novas incorporações e a sínteses criativas. Consideradas sob a ótica da paz como equilíbrio do movimento, as sociedades atuais são profundamente destruidoras das condições da paz. Vivemos dilacerados por radicalismos, unilateralismos, fundamentalismos e polarizações insensatas em quase todos os campos. A concorrência na economia e no mercado, feita princípio supremo, esmaga a cooperação necessária para que todos os seres possam viver e continuar a evoluir. O pensamento único da ideologia neoliberal, levado a todos os quadrantes da terra, destrói a diversidade cultural e espiritual dos povos. A imposição de um única forma de produção, com a utilização de um único tipo de técnica e de administração, maxinilizando os lucros, encurtando o tempo e minimizando os investimentos, devasta os ecossistemas e coloca sob risco o sistema vivo de Gaia (Terra). As relações profundamente desiguais entre ricos e pobres, entre Norte e Sul e entre religiões que se consideram portadoras de revelação divina e outras religiões da humanidade, reforça a arrogância e aumenta os conflitos religiosos. Todos estes fenômenos são manifestações da destruição do equilíbrio do movimento e, por isso, da paz tão ansiada por todos. Somente fundando uma nova aliança entre todos e com a natureza, inspirada na paz equilíbrio do movimento como método e como meta, conseguiremos sociedades sem barbárie, onde a vida pode florescer e os seres humanos podem viver no cuidado de uns para com os outros, em justiça e, enfim, na paz perene, secularmente ansiada. www.leonardoboff.com.br. Abraço. Davi.

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