Cristianismo.
Cristianismo e história. Leonardo Boff (1938-
). Jesus deixou um opus inconclusum, quer dizer, uma obra inacabada. Não
vindo o Reino na plenitude desejada, apenas realizado em sua pessoa pela
ressurreição, entraram em seu lugar o movimento de Jesus, as igrejas, o
cristianismo popular e os valores cristãos que penetraram a cultura ocidental,
e por fim a mundial. Esta nova fase não pode ser considerada decadência da
anterior; ela é simplesmente outra coisa. Agora começa a história da influência
do sonho de Jesus e de sua conservação mediante os escritos que recolheram suas
palavras e sua gesta, os quatro evangelhos e os demais textos do Segundo
Testamento, e principalmente as igrejas cristãs. Inicia sua difusão lenta pelo
mundo afora, seu enraizamento nos continentes e nas culturas. Esse processo
participa da condição da história real sempre marcada por momentos de violência
e de paz, por pactos mentirosos e por gestos heroicos. As vezes, a diabólica e
simbólica não poupou o cristianismo. As vezes, a diabólica ganhou proporções
funestas que nada tinham a ver com o legado de Jesus; outras vezes, a simbólica
alcançou os píncaros da perfeição e mostrou a possibilidade da antecipação,
mesmo que parcial, do Reino de Deus. Aí estão os santos e santas, os mártires,
os místicos e a piedade de tanta gente simples que tomaram e tomam a sério a
causa de Jesus. 1. A distinção entre Reino de Deus e Igreja. 4.2. Tal
constatação nos leva, antes de mais nada, a distinguir Rino de Deus e Igreja.
Eles não se recobrem nem se identificam. Para os evangelistas Marcos, Lucas e
João sequer existe o fenômeno e a palavra Igreja. Com razão, pois ela não
estava nos planos de Jesus. Tudo se concentrava no Reino. Tardiamente, pelos
anos 90 DC., quando já se havia assimilado o fim trágico de Jesus e se haviam
constituído comunidades cristãs, surge o Evangelho de Mateus com essa palavra
"Igreja". “Liga-se a Jesus e a fé de Pedro. O texto de Mateus
16:17-19 “Tu és Pedro e sobre essa pedra edificarei a minha Igreja” era até o
século V entendida pelas duas igrejas, a Católica e a Ortodoxa, como um elogio
de Jesus diante da fé de Pedro sem referi-la à fundação da Igreja. Sobre está
fé se construirá a Igreja, e não sobre a pessoa de Pedro. Tal constatação é
importante para relativizar a interpretação posterior e oficialista da Igreja
Romano católica que buscava e ainda busca sua auto justificação com a única
Igreja verdadeira na sucessão do Apóstolo Pedro. O mérito de Pedro foi o de
antecipando-se aos demais apóstolos, fazer a profissão de fé em Jesus como
Filho de Deus (Mateus 16:18; 18:17). Sobre esta fé, portanto, e não sobre a
figura de Pedro, depois desqualificada por Jesus como satanás, construir-se-á a
comunidade cristã, constituída por aqueles que creem como Pedro creu. Porém, ao
entender mal o conceito de Filho de Deus que não era aquele de poder e glória,
mas de despojamento e humilhação, Pedro, como já acenamos, é rudemente
repreendido, com a expressão mais dura que Jesus usou, chamando-o de “satanás”
e de “pedra de escândalo” (Mateus 16:23). 4.3. A Igreja só tem lugar porque o
Reino não pôde se instalar definitivamente e porque havia uma base a
sustenta-la, a fé de Pedro. O Reino é o principal, a Igreja o secundário; o
Reino é o todo, a Igreja a parte: o Reino é a substância, a Igreja o seu
sacramento sinal; o Reino ficará, a Igreja desaparecerá; por isso nunca se
poderá identificar Reino com Igreja. No máximo se poderá dizer que a Igreja é o
sacramento sinal e instrumento do Reino, bem como pode ser, lamentavelmente, o
antissacramento do Reino. Seu mérito maior é o de conservar a memória sagrada
de Jesus, não deixar morrer seu sonho, criar condições para antecipá-lo na
história com iniciativas nascidas do amor e da compaixão, mas pode também ser
um empecilho ao Evangelho pela forma como se organiza; hierarquizada,
autoritária e doutrinária. A realidade da Igreja institucional é paradoxal;
santa e pecadora, ou como se chegou a dizer nos primeiros séculos: ela pode ser
casta meretrix, uma casta meretriz, casta quando se conforma ao Evangelho e
meretriz quando o trai. 2. O Cristianismo como movimento e caminho espiritual.
4.4. O cristianismo compareceu primeiramente na história como caminho (odós tou
Christou) e como movimento. Ele é anterior a sua sedimentação nos evangelhos,
nas doutrinas, nos ritos e nas igrejas. O caráter de caminho espiritual e de
movimento é algo perene, sempre se manteve ao longo da história; é um tipo de
cristianismo que possui seu próprio curso. Geralmente vive à margem e, as
vezes, em distância crítica da instituição oficial, mas nasce e se alimenta do
permanente fascínio pela figura e pela mensagem libertária e espiritual de
Jesus de Nazaré. Inicialmente tido como “heresia dos nazarenos” (Atos 24:5) ou
simplesmente “heresia” (Atos 28:22) no sentido de grupelho, foi lentamente
ganhando autonomia até que seus seguidores fossem chamados de “cristãos”, como
o atesta os Atos dos Apóstolos (11:36). O movimento de Jesus certamente é a
força mais forte do cristianismo por não estar enquadrado nas instituições ou
aprisionado em doutrinas e dogmas. É composto por todo tipo de gente, das mais
variadas culturas e tradições espirituais, até por agnósticos e ateus que se
deixam tocar profundamente por sua figura corajosa, por seu espírito
libertário, por sua mensagem de um profundo humanismo, por sua ética do amor
incondicional, especialmente aos pobres e aos oprimidos e pela forma como
assumiu o drama do destino humano, no meio de humilhações, torturas e da
execução na cruz. Apresentou uma imagem de Deus tão íntima e amiga da vida, que
é difícil furtar-se a ela até por quem não crê em Deus. Muitos desses dizem: se
existe um Deus, este deve ser aquele que tem os traços do Deus de Jesus. Todos
sentem-se atraídos e próximos a seus ideais
e estilo de vida. O movimento de Jesus comparece como uma forma elevada
de humanismo e revela uma crença religiosa, mas também não religiosa no valor
da pessoa humana, incluindo sua dimensão transcendente. 3. O Cristianismo no
encontro com as culturas. 4.5. De movimento, o cristianismo muito cedo ganhou a
forma de grupos familiares, pequenas comunidades cristãs e de igrejas
institucionais com várias formas de organização. Nelas se elaboraram as muitas
cristologias de exaltação de sua figura. Em derivação delas, surgiram os
evangelhos que recolhiam os conteúdos da fé das respectivas comunidades. Estas
possuem uma dupla face: o poder e o carisma. Pelo poder sagrado se organiza a
ordem interna e se estabelecem os critérios de pertença e de exclusão;
define-se um conjunto de doutrinas como referência identitária, instituem-se
normas éticas a serem seguidas por todos e se criam os estilos próprios de
celebrar. É a dimensão petrina da Igreja, vale dizer, manter o que Pedro
significa: a tradição e o fato de sua fé constituir o fundamento perene do
fenômeno cristão. Pelo carisma se flexibiliza a tradição, projetam-se visões
novas, criam-se outras linguagem, apoiam-se figuras proféticas e se acolhem
inovações, fruto do diálogo com o meio. É a dimensão paulina da Igreja, isto é,
reconhecer o que Paulo fez, que, sem perguntar a ninguém, iniciou sua
evangelização dentro do mundo grego, reinventando o cristianismo na roupagem
daquela cultura e tendo a coragem de inovar para responder às situações
diferentes. A Igreja é carisma e poder; ambos os elementos coexistem e possuem
igual dignidade. Lamentavelmente, o poder marginalizou, senão abafou o carisma,
sem jamais consegui-lo totalmente, enrijecendo a mensagem de Jesus a ponto de
perder seu caráter libertário e seu fascínio, mas é a partir do polo do carisma
que deve ser entendido o polo do poder na Igreja instituição, caso contrário
ele se autonomiza e tira a vitalidade e a irradiação do sonho de Jesus. 4.6.
Assim, desde o início as comunidades desenvolveram rostos diferentes; umas de
estilo judaico, outras marcadas pelo judaísmo da diáspora, estoutras pela
cultura dominante romana e, por fim, pelo helenismo difuso em todo o Império.
Mais tarde, ganhou a forma da cultura germânica, hispânica e europeia em geral.
Nos países colonizados e à margem do grande curso da história e da Igreja
central ganhou, por força da encarnação nas culturas locais, traços africanos,
asiáticos e índio afro latino americanos nas Américas. Nestas igrejas vive mais
da metade dos cristãos, de sorte que atualmente podemos afirmar que o cristianismo
é uma religião do Terceiro e Quarto Mundos e não mais dos países centrais do
Hemisfério Norte. Na Etiópia e no norte da África recebeu traços africanos, e
na Ásia Menor estilos médio orientais. Na medida em que o sonho de Jesus se
encarna nestas diferentes situações, também se autolimita, mas ao mesmo tempo,
abre caminho para novas expressões, mostrando virtualidades insuspeitadas do
sonho de Jesus. Do Livro Cristianismo o mínimo do mínimo. Abraço. Davi.
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