terça-feira, 26 de janeiro de 2016

A Distinção Entre Reino de Deus e a Igreja.



Cristianismo. Cristianismo e história. Leonardo Boff (1938-  ). Jesus deixou um opus inconclusum, quer dizer, uma obra inacabada. Não vindo o Reino na plenitude desejada, apenas realizado em sua pessoa pela ressurreição, entraram em seu lugar o movimento de Jesus, as igrejas, o cristianismo popular e os valores cristãos que penetraram a cultura ocidental, e por fim a mundial. Esta nova fase não pode ser considerada decadência da anterior; ela é simplesmente outra coisa. Agora começa a história da influência do sonho de Jesus e de sua conservação mediante os escritos que recolheram suas palavras e sua gesta, os quatro evangelhos e os demais textos do Segundo Testamento, e principalmente as igrejas cristãs. Inicia sua difusão lenta pelo mundo afora, seu enraizamento nos continentes e nas culturas. Esse processo participa da condição da história real sempre marcada por momentos de violência e de paz, por pactos mentirosos e por gestos heroicos. As vezes, a diabólica e simbólica não poupou o cristianismo. As vezes, a diabólica ganhou proporções funestas que nada tinham a ver com o legado de Jesus; outras vezes, a simbólica alcançou os píncaros da perfeição e mostrou a possibilidade da antecipação, mesmo que parcial, do Reino de Deus. Aí estão os santos e santas, os mártires, os místicos e a piedade de tanta gente simples que tomaram e tomam a sério a causa de Jesus. 1. A distinção entre Reino de Deus e Igreja. 4.2. Tal constatação nos leva, antes de mais nada, a distinguir Rino de Deus e Igreja. Eles não se recobrem nem se identificam. Para os evangelistas Marcos, Lucas e João sequer existe o fenômeno e a palavra Igreja. Com razão, pois ela não estava nos planos de Jesus. Tudo se concentrava no Reino. Tardiamente, pelos anos 90 DC., quando já se havia assimilado o fim trágico de Jesus e se haviam constituído comunidades cristãs, surge o Evangelho de Mateus com essa palavra "Igreja". “Liga-se a Jesus e a fé de Pedro. O texto de Mateus 16:17-19 “Tu és Pedro e sobre essa pedra edificarei a minha Igreja” era até o século V entendida pelas duas igrejas, a Católica e a Ortodoxa, como um elogio de Jesus diante da fé de Pedro sem referi-la à fundação da Igreja. Sobre está fé se construirá a Igreja, e não sobre a pessoa de Pedro. Tal constatação é importante para relativizar a interpretação posterior e oficialista da Igreja Romano católica que buscava e ainda busca sua auto justificação com a única Igreja verdadeira na sucessão do Apóstolo Pedro. O mérito de Pedro foi o de antecipando-se aos demais apóstolos, fazer a profissão de fé em Jesus como Filho de Deus (Mateus 16:18; 18:17). Sobre esta fé, portanto, e não sobre a figura de Pedro, depois desqualificada por Jesus como satanás, construir-se-á a comunidade cristã, constituída por aqueles que creem como Pedro creu. Porém, ao entender mal o conceito de Filho de Deus que não era aquele de poder e glória, mas de despojamento e humilhação, Pedro, como já acenamos, é rudemente repreendido, com a expressão mais dura que Jesus usou, chamando-o de “satanás” e de “pedra de escândalo” (Mateus 16:23). 4.3. A Igreja só tem lugar porque o Reino não pôde se instalar definitivamente e porque havia uma base a sustenta-la, a fé de Pedro. O Reino é o principal, a Igreja o secundário; o Reino é o todo, a Igreja a parte: o Reino é a substância, a Igreja o seu sacramento sinal; o Reino ficará, a Igreja desaparecerá; por isso nunca se poderá identificar Reino com Igreja. No máximo se poderá dizer que a Igreja é o sacramento sinal e instrumento do Reino, bem como pode ser, lamentavelmente, o antissacramento do Reino. Seu mérito maior é o de conservar a memória sagrada de Jesus, não deixar morrer seu sonho, criar condições para antecipá-lo na história com iniciativas nascidas do amor e da compaixão, mas pode também ser um empecilho ao Evangelho pela forma como se organiza; hierarquizada, autoritária e doutrinária. A realidade da Igreja institucional é paradoxal; santa e pecadora, ou como se chegou a dizer nos primeiros séculos: ela pode ser casta meretrix, uma casta meretriz, casta quando se conforma ao Evangelho e meretriz quando o trai. 2. O Cristianismo como movimento e caminho espiritual. 4.4. O cristianismo compareceu primeiramente na história como caminho (odós tou Christou) e como movimento. Ele é anterior a sua sedimentação nos evangelhos, nas doutrinas, nos ritos e nas igrejas. O caráter de caminho espiritual e de movimento é algo perene, sempre se manteve ao longo da história; é um tipo de cristianismo que possui seu próprio curso. Geralmente vive à margem e, as vezes, em distância crítica da instituição oficial, mas nasce e se alimenta do permanente fascínio pela figura e pela mensagem libertária e espiritual de Jesus de Nazaré. Inicialmente tido como “heresia dos nazarenos” (Atos 24:5) ou simplesmente “heresia” (Atos 28:22) no sentido de grupelho, foi lentamente ganhando autonomia até que seus seguidores fossem chamados de “cristãos”, como o atesta os Atos dos Apóstolos (11:36). O movimento de Jesus certamente é a força mais forte do cristianismo por não estar enquadrado nas instituições ou aprisionado em doutrinas e dogmas. É composto por todo tipo de gente, das mais variadas culturas e tradições espirituais, até por agnósticos e ateus que se deixam tocar profundamente por sua figura corajosa, por seu espírito libertário, por sua mensagem de um profundo humanismo, por sua ética do amor incondicional, especialmente aos pobres e aos oprimidos e pela forma como assumiu o drama do destino humano, no meio de humilhações, torturas e da execução na cruz. Apresentou uma imagem de Deus tão íntima e amiga da vida, que é difícil furtar-se a ela até por quem não crê em Deus. Muitos desses dizem: se existe um Deus, este deve ser aquele que tem os traços do Deus de Jesus. Todos sentem-se atraídos e próximos a seus ideais  e estilo de vida. O movimento de Jesus comparece como uma forma elevada de humanismo e revela uma crença religiosa, mas também não religiosa no valor da pessoa humana, incluindo sua dimensão transcendente. 3. O Cristianismo no encontro com as culturas. 4.5. De movimento, o cristianismo muito cedo ganhou a forma de grupos familiares, pequenas comunidades cristãs e de igrejas institucionais com várias formas de organização. Nelas se elaboraram as muitas cristologias de exaltação de sua figura. Em derivação delas, surgiram os evangelhos que recolhiam os conteúdos da fé das respectivas comunidades. Estas possuem uma dupla face: o poder e o carisma. Pelo poder sagrado se organiza a ordem interna e se estabelecem os critérios de pertença e de exclusão; define-se um conjunto de doutrinas como referência identitária, instituem-se normas éticas a serem seguidas por todos e se criam os estilos próprios de celebrar. É a dimensão petrina da Igreja, vale dizer, manter o que Pedro significa: a tradição e o fato de sua fé constituir o fundamento perene do fenômeno cristão. Pelo carisma se flexibiliza a tradição, projetam-se visões novas, criam-se outras linguagem, apoiam-se figuras proféticas e se acolhem inovações, fruto do diálogo com o meio. É a dimensão paulina da Igreja, isto é, reconhecer o que Paulo fez, que, sem perguntar a ninguém, iniciou sua evangelização dentro do mundo grego, reinventando o cristianismo na roupagem daquela cultura e tendo a coragem de inovar para responder às situações diferentes. A Igreja é carisma e poder; ambos os elementos coexistem e possuem igual dignidade. Lamentavelmente, o poder marginalizou, senão abafou o carisma, sem jamais consegui-lo totalmente, enrijecendo a mensagem de Jesus a ponto de perder seu caráter libertário e seu fascínio, mas é a partir do polo do carisma que deve ser entendido o polo do poder na Igreja instituição, caso contrário ele se autonomiza e tira a vitalidade e a irradiação do sonho de Jesus. 4.6. Assim, desde o início as comunidades desenvolveram rostos diferentes; umas de estilo judaico, outras marcadas pelo judaísmo da diáspora, estoutras pela cultura dominante romana e, por fim, pelo helenismo difuso em todo o Império. Mais tarde, ganhou a forma da cultura germânica, hispânica e europeia em geral. Nos países colonizados e à margem do grande curso da história e da Igreja central ganhou, por força da encarnação nas culturas locais, traços africanos, asiáticos e índio afro latino americanos nas Américas. Nestas igrejas vive mais da metade dos cristãos, de sorte que atualmente podemos afirmar que o cristianismo é uma religião do Terceiro e Quarto Mundos e não mais dos países centrais do Hemisfério Norte. Na Etiópia e no norte da África recebeu traços africanos, e na Ásia Menor estilos médio orientais. Na medida em que o sonho de Jesus se encarna nestas diferentes situações, também se autolimita, mas ao mesmo tempo, abre caminho para novas expressões, mostrando virtualidades insuspeitadas do sonho de Jesus. Do Livro Cristianismo o mínimo do mínimo. Abraço. Davi.

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