Na
última curva da estrada Te-ha-tá parou e olhou para o céu. As
montanhas sombrias, cobertas de neve, pareciam gigantes encanecidos que
vigiavam silenciosos as fronteiras do Tibet. O sol, já perto do
horizonte, retardava a sua marcha como se quisesse receber as últimas
preces com que os lamas1 imploravam a misericórdia do Senhor da Compaixão2.
A sombra de um vulto surgiu, sobre uma pedra, na margem da estrada. Te-ha-tá tremeu de pavor.
Em seu caminho achava-se o impiedoso Han-Ru, o Anjo da Morte, o mensageiro da dor e da desolação3.
O
coração tem, por vezes, o dom de pressentir a desgraça. Te-ha-tá, ao
avistar o Anjo da Morte, lembrou-se de sua noiva, a formosa Li-Tsen-li.
Te-ha-tá dirigiu-se, pois, sem hesitar, ao mensageiro cruel do Destino.
—
Han-Ru, ó gênio desapiedado! — exclamou. — Que procuras aqui, quase à
sombra da casa da encantadora Li-Tsen-li? Bem sei que a tua presença
vale por uma sentença de morte.
Respondeu Han-Ru, com a paciência de um enviado do Eterno:
—
A tua inquietação é legitima, meu amigo. Vim a este recanto buscar a
tua noiva Li-Tsen-li. Chegou, pela determinação do Destino, o termo de
sua existência neste mundo. Li-Tsen-li vai morrer!
— Piedade, Han-Ru! Piedade! — implorou Te-ha-tá. — Ela é tão jovem, e tão prendada! Pelo amor de Maia Devi4 deixa viver Li-Tsen-li!
O Anjo da Morte meditou em silêncio durante alguns instantes e depois, sem erguer o rosto, disse:
—
Muito fácil será, para aquele (e é esse o teu caso!) que tem o amparo
de Maia Devi, prolongar a vida de Li-Tsen-li. Sei que tens direito a
uma vida longa e tranqüila; restam-te, ainda, quarenta e seis anos de
vida. Poderás ceder à tua noiva a metade do tempo que te cabe, no
futuro, para viver. Li-Tsen-li ficará, portanto, com direito à metade
de tua vida e viverá em tua companhia, vinte e três anos. Findo esse
prazo, morrerão ambos no mesmo instante! Aceitas essa proposta?
As palavras de Han-Ru fizeram hesitar o jovem Te-ha-tá. Quem, decerto,
não ficaria indeciso antes de sacrificar, cedendo a outrem, a metade da
própria vida?
—
A tua sugestão, Han-Ru, implica uma decisão de infinita gravidade
para a minha vida. Não poderei tomar uma decisão nesse sentido, sem,
previamente, consultar os meus três grandes amigos. Poderás esperar que
eu ouça a opinião daqueles que sempre me auxiliaram e orientaram na
vida?
—
Farei como pedes, meu amigo — respondeu o Anjo da Morte. — Até o
findar da noite que vai começar, aguardarei a tua palavra final.
Deveras voltar, com a tua decisão, à minha presença, antes do
amanhecer.
Partiu Te-ha-tá em busca dos amigos, cujos sábios conselhos pretendia
ouvir. Deveria ele como noivo sacrificar a metade da sua vida para
salvar das garras da Morte a criatura amada?
O
primeiro amigo de Te-ha-tá era um artista tibetano de assinalados
méritos. Su-Liang sabia esculpir com admirável perfeição, na pedra ou
na madeira, e os seus trabalhos eram mais apreciados do que os olhos
negros das Apsaras que enchem de encanto o céu de Indra5.
Eis como Su-Liang, o escultor, falou a Te-ha-tá:
—
A vida, meu amigo, só tem sentido quando a sua finalidade é traduzida
por um grande e incomparável amor. E o amor que dispensa sacrifícios e
renúncias não é amor; é a expressão grotesca de um capricho vulgar.
Feliz aquele que pode demonstrar a grandeza de seu coração medindo-a
pela extensão de um ingente sacrifício. Pela mulher amada deve o homem
sacrificar, não apenas a metade de sua vida, mas a vida inteira! Que
importa, Te-ha-tá, uma existência longa, torturada pela dor de uma
incurável saudade? Preferível, mil vezes, que vivas a metade de tua
vida à sombra feliz do amor delicioso de tua eleita. No teu caso eu não
teria hesitado, um só instante, em aceitar a proposta do terrível
Han-Ru.
O segundo amigo de Te-ha-tá chamava-se Niansi. Era hábil caçador e auferia consideráveis lucros mercadejando peles.
Ao ouvir a consulta do jovem, Niansi não se conteve:
—
É uma loucura, Te-ha-tá! Onde se viu um moço, rico e cheio de saúde,
sacrificar a metade da vida por causa de uma mulher? Encontrarás, pelo
mundo, milhões e milhões de mulheres lindas, muitas com as sete ou
talvez, com as oito perfeições indicadas no Livro Sagrado6.
Aqui mesmo (no Tibet) poderás topar, em qualquer aldeia, com centenas
de meninas, algumas das quais nada ficariam a dever, julgadas pelos
seus predicados de graça e beleza, à tua noiva Li-Tsen-li! Desgraçada a
idéia de quereres adiar o termo da existência de uma mulher com o
sacrifício de vinte e tantos anos de.tua vida! E quem poderá prever o
futuro? Amanhã, essa mulher, arrebatada por uma nova paixão e
deslembrada do sacrifício que por ela fizeste, abandonar-te-á e irá
viver, nos braços de outro, a vida que é a tua própria vida! Que farás,
então, vendo-a ceder a um odiento rival os dias roubados ao rosário de
tua existência? Penso que não deverias ter hesitado ante a proposta
descabida de Han-Ru, repelindo-a no mesmo instante.
A divergência entre os dois amigos mais fez crescer a indecisão e a incerteza no coração de Te-ha-tá.
— Vou ouvir — pensou o jovem — a opinião do prudente Kin-Sã. Só ele poderá indicar-me o caminho a seguir.
Kin-Sã, citado no Tibet como um estudioso das leis e dos ritos, assim falou ao apaixonado noivo:
—
Se amas realmente Li-Tsen-li, acho que deves ceder, a essa jovem, a
metade do tempo que te resta para viver. Convém, entretanto, impor uma
condição. A parcela de vida, depois de cedida a Li-Tsen-li, poderá ser
retomada por ti, em qualquer momento. Terás, assim, a tua tranqüilidade
garantida no caso de uma infidelidade de tua futura esposa. Se ela,
por qualquer motivo, não se mostrar digna de teu sacrifício, perderá
o direito ao resto da vida que lhe cabia viver! Fora dessa
condicional, qualquer outra solução para o caso não passaria de
irremediável loucura!
E concluiu o seu conselho com estas palavras:
— Fizeste bem em hesitar. A Hesitação é irmã da Prudência. Só os loucos e temerários é que nunca hesitam.
Achou Te-ha-tá bastante prudente e razoável a proposta sugerida pelo
douto Kin-Sã, e levou-a sem perda de tempo, ao conhecimento de Han-Ru, o
Enviado da Morte.
Han-Ru aceitou a condição imposta pelo noivo:
—
Está bem, Te-ha-tá. Aceito a tua proposta. A bondosa Li-Tsen-li vai
viver os vinte e três anos. Esta parcela de vida não foi, porém, dada,
mas sim “emprestada”.
Passaram-se
muitos meses. Li-Tsen-li casou-se com o jovem Te-ha-tá, e os dois eram
citados como os esposos mais felizes do Tibet. Li-Tsen-li, depois do
casamento, passou a chamar-se Ti-long-li, vocábulo que significa “minha vida querida”.
Um dia, afinal, Te-ha-tá foi obrigado a fazer uma longa viagem para além das fronteiras de sua terra. Deixou “Minha vida querida” e seu filhinho, que já contava algumas semanas, em companhia de seus pais.
Quando regressou, tempos depois, teve a surpresa de encontrar os seus
três amigos que o aguardavam na entrada da pequena povoação.
—
Onde está “Minha vida querida”? — perguntou, ansioso, aos amigos. —
Por que não veio? Estará doente? Que aconteceu à “Minha vida querida”?
Disse um dos amigos:
— Enche de ânimo e de coragem o teu coração, ó Te-ha-tá! Uma grande desgraça, há três dias, caiu sobre a tua vida!
—
Desgraça? — repetiu, aflito, Te-ha-tá. — É horrível esta angústia!
Vamos! Quero saber a verdade! Onde está “Minha vida querida”?
— Morreu!
— Morreu! — gritou Te-ha-tá, desesperado. — Não é possível! Não podia morrer! Eu sacrifiquei por ela, metade de minha vida!
E
Te-ha-tá, dominado pela dor e revoltado pelo infortúnio de haver
perdido a sua esposa querida, entrou a blasfemar como um possesso,
contra o Senhor da Compaixão. Erguia os braços para o céu; rolava, por
vezes, sobre a terra. Insultava o nome do Criador.
Os amigos afastaram-se, cautelosos. Era preciso deixar o infeliz
Te-ha-tá dar plena expansão à indizível angústia que lhe esmagava o
coração.
Em dado momento Te-ha-tá viu surgir diante de si a figura de Han-Ru, o Anjo da Morte.
— Han-Ru! — bradou, num tom de incontido rancor. — Faltaste com a tua palavra. Que fizeste de “Minha vida querida”?
—
Escuta, Te-ha-tá — respondeu Han-Ru. — Preciso dizer-te a verdade,
para que não continues a blasfemar desse modo. A tua esposa deveria
viver vinte e três anos. Um dia, porém, o seu filhinho adoeceu
gravemente. O pequenino ia morrer. Que fez a tua esposa? Pediu, em
preces, que a sua vida fosse dada ao filhinho enfermo para que ele
pudesse viver! Salvou-se o teu filho, mas tua esposa morreu!
E, ante a estupefação de Te-ha-tá, o Anjo da Morte concluiu:
—
E enquanto tu, como noivo, hesitaste em ceder a metade de tua vida,
ela mãe extremosa, não hesitou um segundo em dar, pelo filhinho, a vida
inteira!
1- Lamas — Sacerdotes budistas entre Mongóis, Nepaleses, Hindus, Butaneses e Tibetanos. O chefe supremo é Sua Santidade o Dalai Lama, Tenzin Gyatso (1935- ). No budismo é considerado um Bodhissatva, a encarnação do Sakyamuni Budha (563 AC 483).
2- Deus.
3- Han-Ru
— Na extraordinária mitologia hindu figuram nada menos de 17 deuses. Os
três primeiros, Brahma (o principio criador), Vishnu (o principio
conservador) e Shiva o principio destruidor), formam a celebre trindade
hindu. Além dos 17 deuses, os hindus incluíram entre as divindades os
planetas, alguns rios (o Ganges, por exemplo, é adorado sob a forma de
uma deusa) e certos animais. Shiva, cuja esposa é Maia Devi ou Bhavâni,
tem vários auxiliares. Han-Ru é um dos gênios que se encarregam de
cumprir as determinações do Deus da Destruição.
4- Maia Devi
— também denominada Bhavâni. É a esposa de Shiva, terceiro deus da
trindade hindu. Essa deusa é, em geral, representada sob a forma de uma
linda mulher, em atitude ameaçadora, montada num tigre.
5- Céu de Indra
— Da multiplicidade de deuses que são apontados na Mitologia Hindu
decorre a crença, geralmente aceita, de que existem vários céus. O céu
de Indra parece ser o mais notável. Erguem-se, nessa região divina,
palácios de ouro ornados de pedras preciosas, grutas, jardins
prodigiosos cujas flores exalam cem mil perfumes diferentes. Um foco
luminoso — mais intenso do que o sol — derrama uma claridade sobre
todos os recantos do paraíso hindu. O céu de Indra é povoado por uma
infinidade de ninfas encantadoras denominadas Apsaras.
6- Livro Sagrado
— A religião dos hindus é, em parte, explicada nos Vedas, que não
passam, afinal, de uma coleção de hinos, preces e conceitos morais. O
Livro Sagrado a que se refere o herói do conto deve ser, naturalmente, o
Código de Manu, cuja origem é anterior ao século IX AC. Outros livros sagrados hindus: Upanishad, Vedanta, Agama, Purunas e Bhagavad Gita. Todos os conceitos e princípios religiosos no livro de Manu aparecem, aliás, citados nos Vedas. Há
quatro Vedas, sendo cada um deles dividido em duas ou três partes. O
primeiro, Samhita, é constituído exclusivamente por vários hinos religiosos e
preces; o segundo, Brahmana, estuda os princípios religiosos e analisa as
controvérsias teológicas; o terceiro, Aranyaka, discute certos pontos obscuros de
Teologia. O quarto Veda, Itihasas, é um complemento dos Upanishad. Os
Vedas não podem ser atribuídos a um único autor; em cada um deles
colaboram vários personagens de épocas diversas. Essas Escrituras Sagradas
foram reunidas sob a forma atual no século XVI.
Autor: Malba Tahan (1895-1974) - livro - Minha vida querida.
http://www.maisbelashistoriasbudistas.com.br. Abraço. Davi.
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