Budismo Theravada. Texto escrito pelo Bhikkhu Bodhi. A importância de combinar o estudo com a prática. Nos dias
de hoje, aqui nos Estados Unidos e em outros países ocidentais, há um grande interesse pelo Budismo
em muitos níveis. Com frequência, no entanto, os praticantes e
estudiosos estão separados por uma grande distância, quase como se
vivessem em mundos distintos. Muitos daqueles que se consideram
praticantes do Budismo consideram que a prática Budista consiste apenas
de meditação, perseguida em separado de um entendimento mais amplo do
Dharma. Isto algumas vezes conduz a radicais novas interpretações dos
ensinamentos, que transformam o Dharma em um antigo sistema de
psicoterapia que transcende o indivíduo ou uma mera arte de vida, uma
maneira de viver feliz e em paz aqui e agora. Isto pode ser bom até onde
possa levar, mas quem estiver em busca de algo mais sério em breve irá
sentir uma deficiência de visão, uma falta de profundidade, ao comparar
essa versão dos ensinamentos com a versão clássica.
Por
outro lado, nas universidades seculares, os acadêmicos realizam estudos
avançados dos textos, cultura e história Budista, tentando compreender o
Budismo em termos puramente objetivos como um fenômeno cultural e
histórico. Esta abordagem pode nos proporcionar um vasto volume de
conhecimentos sobre o Budismo, mas isso não produz o genuíno insight em
relação às verdades que o Budha estava tentando transmitir. O defeito
nesta abordagem é que o estudo do Budismo é feito com total
desconsideração da fé e prática Budista, que são os requisitos para o
insight genuíno. Sem dúvida, sob o ponto de vista acadêmico é útil
adquirir esse conhecimento, mas se esse conhecimento não tiver um
impacto nas nossas vidas, este será estéril e improdutivo.
Portanto,
aqui na América, o presente encantamento com o Budismo tende a se
dividir em duas facções. De um lado, há praticantes que são sinceros no
seu comprometimento com a prática Budista, mas com frequência carecem de
uma clara compreensão dos princípios Budistas. Alguns até mesmo rejeitam
o estudo do Dharma, chamando isso de emaranhado de conceitos e ideias.
Do outro lado da divisão encontramos os acadêmicos eruditos que possuem
amplo conhecimento factual sobre o Budismo, mas que carecem de fé no
Dharma e da experiência prática no caminho Budista. Em nenhum dos casos
existe a preocupação de na verdade “aprender com o Budha.”
A União do Estudo e a Prática
Aqui
no Bodhi Monastery (New Jersey, USA) enfatizamos a importância de
juntar a fé, estudo e a prática num equilíbrio harmonioso. Embora este
monastério exista faz apenas três anos, a nossa missão já está tomando
uma forma e na medida em que os anos passam, esperamos que irá trazer
frutos abundantes. A visão que guia este monastério provém do trabalho
do Mestre Yin-shun (1906-2005), o mais destacado monge erudito Chinês da era
moderna. O trabalho
do Mestre Yin-shun foi verdadeiramente impressionante e inspira respeito.
Combina os métodos mais rigorosos de erudição histórica e literária com
ousados insights acerca da doutrina e história Budista, suportado por um
comprometimento firme e inabalável com o caminho espiritual Budista. Os
seus muitos volumes de estudos eruditos abrangem toda a história do
Budismo, desde as suas origens através da evolução na Índia e o
subsequente desenvolvimento na China. O fundador do Bodhi Monastery,
Mestre Jen-chun (1919- ), é o pupilo mais sênior vivo do Mestre Yin-shun e também
uma pessoa extraordinária. Igual ao seu mestre, ele combina o
conhecimento erudito do Budismo com um coração compassivo, profundos
insights, e grandes votos de alguém que está bem avançado no caminho
Budista.
Combinar o estudo e a
prática como parte da estrutura da fé Budista é uma abordagem que
ressoa a própria tradição Budista. Muitas formulações nos textos
enfatizam a importância de combinar essas duas asas do caminho Budista
num equilíbrio saudável. Uma, encontrada nos suttas, diz que quando uma
pessoa adquire fé, ela deve se aproximar de um mestre para aprender a
doutrina. Tendo ouvido a doutrina, ela a retém na mente; aí, ela deve
dominá-la verbalmente para imprimi-la com firmeza na mente; em seguida,
ela examina o significado para ver como os ensinamentos se relacionam
com a própria experiência individual, como eles se aplicam à própria
vida. Por fim, ela se esforça para concretizar os ensinamentos e quando a
prática amadurecer, ela enxergará a verdade última por ela mesma. Outra,
num esquema mais simples, encontrado nos comentários Budistas, fala das
três principais pilares no desenvolvimento do caminho: estudo,
prática e realização. Primeiro a pessoa estuda a doutrina, depois a
coloca em prática e por fim realiza a verdade.
Ambas
as formulações sugerem que o estudo do Dharma é a base para a prática e
a realização. Quanto de estudo é necessário irá variar de pessoa para
pessoa e de uma tradição para outra. Não pode haver regras rígidas e
imutáveis que se apliquem a todos. Sem dúvida, algumas pessoas podem
praticar de modo eficaz e obter sucesso com o mínimo de conhecimento
doutrinário. Outras precisam de mais conhecimento, enquanto que outras,
ainda, terão a inclinação natural de estudar o Dharma de forma ampla e
profunda. Isto poderá auxiliar na prática delas e torná-las mais
eficientes no ensino do Dharma. Portanto, o conhecimento amplo do
Dharma, quando apoiado pela fé e conectado com a prática, tem valor
porque ele não só amplia a própria compreensão como acentua a eficácia
como mestre. O estudo em si também pode se tornar um empreendimento
inspirador e que enaltece, abrindo os próprios olhos para a vastidão e
profundidade do domínio do Dharma.
Tendo Noção Clara do Objetivo
Embora
aprendamos de muitos mestres e oradores, em ultima instância estamos
aprendendo do próprio Budha, pois todos os ensinamentos que estudamos
derivam do Budha diretamente ou através da contínua tradição Budista. Ao
iniciarmos juntos o aprendizado dos ensinamentos do Budha, é bom ter em
mente um dos ditos do mestre Yin-shun:
“Nosso objetivo ao aprender os ensinamentos do Budha hoje deve ter o
mesmo propósito do Budha em disseminar os seus ensinamentos.” O Budha
surgiu no mundo para conduzir as pessoas a dar um fim ao sofrimento e
aflição mostrando-lhes o caminho para a felicidade e a paz supremas.
Todas as pessoas possuem uma aversão natural ao sofrimento e aflição e
desejam a felicidade e a paz.
Então
porque não podemos obter isso por conta própria, seguindo as tendências
das nossas próprias mentes? Porque temos que aprender isso do Budha? A
razão é porque as nossas mentes estão obscurecidas pela ignorância e
pelas contaminações: as nossas ideias estão “de pernas para o ar.”
Então,
embora todos nós desejamos ter felicidade, com demasiada frequência nos
sentimos agitados e aflitos. Nós criamos muito sofrimento para nós
mesmos e para os
outros. Através da sua perfeita sabedoria, o Budha compreendeu de modo
preciso e a fundo, as causas e condições que conduzem ao sofrimento e à
felicidade. Devido à sua imensa compaixão, durante quarenta e cinco anos
ele ensinou essas causas e condições extensivamente para o mundo, de
modo que as pessoas pudessem entender que tipo
de ações devem ser evitadas e que tipos de ações devem ser cultivadas.
Portanto nosso objetivo último ao estudar os ensinamentos do Budha deve
ser aprender como distinguir os modos que são prejudiciais e destrutivos
dos modos que são úteis e benéficos; os caminhos que conduzem ao
sofrimento e os caminhos que conduzem à felicidade e a paz.
Deveríamos
fazer isso com um objetivo duplo: primeiro, progredir na direção da
nossa própria libertação, e segundo permitir que contribuamos da forma
mais eficaz para o bem estar dos outros. Isto satisfaz o que é chamado
de “o bem duplo,” o bem estar próprio e dos demais.
Ao
aprender os ensinamentos do Budha, temos que aprender como aplicá-los à
nossa própria situação. Muitos dos ensinamentos que encontramos nos
suttas mais antigos eram dirigidos aos monásticos, pessoas que haviam
renunciado ao mundo dedicando-se tempo integral à prática do caminho. Eu
penso que seria um erro as pessoas leigas descartarem esses
ensinamentos como sendo irrelevantes nas suas vidas, pois esses
ensinamentos apontam para o objetivo último que todos os discípulos do
Budha deveriam buscar e a prática necessária para alcançar esse objetivo.
Mas também seria um erro as pessoas leigas pensarem que elas apenas
podem praticar o Dhamma de modo adequado imitando a prática de monges e
monjas. Eu penso que durante as suas rondas de pregações o Budha deve
haver dado muito mais ensinamentos para os seus discípulos leigos do que
aquilo que está registrado nos textos. Embora estes possam ter sido
perdidos, podemos extrair os princípios principais dos ensinamentos que
foram preservados. Não é suficiente apenas repetir esses ensinamentos
com as palavras usadas para registrá-los. Precisamos ver como
praticá-los na atualidade, nas nossas próprias situações de vida. Ao
fazer isso, precisamos traçar um rumo entre dois extremos: um é o
conservadorismo rígido, que adere com rigor e de modo impensado às
formulações antigas sem a preocupação de entender as suas razões
subjacentes; o outro é o revisionismo excessivo, que torce os
ensinamentos em demasia para adaptá-los às condições presentes. Uma
abordagem saudável em relação ao Dharma reconheceria que a doutrina em
si está sujeita às duas leis da impermanência e condicionalidade. As
formulações têm que mudar com as inevitáveis mudanças no pensamento
humano e nas condições sociais, no entanto elas têm que sempre
permanecer fiéis aos princípios fundamentais do Dharma.
Dois Aspectos na Prática do Dharma
Aqui,
quero sugerir que aprender com o Budha em um contexto prático, significa
antes de mais nada aprender dois aspectos do Dharma que de modo ideal
devem correr em paralelo. Eu irei chamá-los de auto transformação e
auto transcendência. O objetivo último dos ensinamentos, a iluminação ou
libertação, é alcançada através de um ato de auto transcendência, um
ato através do qual ultrapassamos os limites e fronteiras da mente
condicionada e penetramos na verdade incondicionada. Esse ato é exercido
através da sabedoria. No entanto, a sabedoria libertadora pode surgir
apenas numa mente que seja cultivada de forma apropriada, e o processo
de cultivo da mente é a tarefa da auto transformação.
Auto transformação
A
auto transformação significa o cultivo gradual de modo a progredir passo
a passo na direção do despertar da verdadeira sabedoria. A
auto transformação envolve dois processos: um é a eliminação; o outro é o
desenvolvimento. Irei discutir ambos de forma breve.
“Eliminação”
significa a remoção das qualidades prejudiciais nas nossas vidas.
Significa evitar as ações prejudiciais com o corpo, linguagem e mente: o
controle e submissão dos pensamentos prejudiciais; a rejeição das
opiniões falsas e das ideias deludidas (enganosas). Tal como um jardineiro que
queira cultivar um belo jardim precisa primeiro eliminar as ervas
daninhas e o entulho, assim também nós precisamos exterminar as ervas
daninhas e o entulho das nossas mentes. Ao aprender com o Budha estamos
tentando entender a nós mesmos, entender a nossa própria mente. O Budha
nos mostra um espelho das nossas mentes e corações, mostrando os estados
mentais poluídos que prejudicam a nós a aos outros. Portanto, ao
estudar os ensinamentos do Budha, obtemos um melhor entendimento das
nossas fraquezas, os defeitos que temos que nos forçar à superar.
Nós
também aprendemos os métodos para superá-los, pois esse é exatamente o
poder do ensinamento Budista: nos proporciona, com uma precisão
impressionante, os medicamentos para eliminar todas as enfermidades das
nossas mentes. O que é tão surpreendente nos ensinamentos Budistas mais
antigos é o insight incrivelmente detalhado da mente humana. Esses
ensinamentos proporcionam um tipo distinto de análise psicológica aquilo que encontramos na psicologia ocidental. O objetivo aqui não é
tanto recuperar pessoas perturbadas de modo patológico a um nível de
saúde mental considerado como normal, mas de tratar as “pessoas normais”
de modo que elas possam se elevar acima das limitações e grilhões da
mente normal e concretizar o seu potencial oculto, a mente totalmente
purificada e desperta. Isto requer uma abordagem completamente distinta,
uma abordagem que é a excelente contribuição do Budha para o
entendimento da natureza humana.
O
Budha não somente nos oferece uma análise dos nossos defeitos, mas um
catálogo das nossas forças em potencial. Ele também nos ensina os meios
para fazer com que essas forças em potencial se tornem reais e efetivas.
Ele nos proporciona um ensinamento extraordinariamente pragmático que
podemos aplicar na nossa vida diária passo a passo, ascendendo na
direção da realização última, o movimento nessa direção é o que
significa desenvolvimento. “Desenvolvimento” significa o cultivo de
qualidades benéficas, as qualidades que promovem a paz interior e a
felicidade e que faz das nossas vidas canais efetivos para trazer a paz e
felicidade para os outros. O Budha oferece um amplo espectro de práticas
benéficas, desde as observâncias éticas básicas até práticas como as
cinco faculdades espirituais, o Nobre Caminho Óctuplo e os Seis ou Dez Paramitas.
Para aprender isso, devemos estudar o Dharma em extensão e
profundidade. Depois devemos aprender como aplicá-lo nas nossas vidas do
modo mais realista e benéfico.
Auto transcendência
O
segundo processo principal que aprendemos do Buda é a
auto transcendência. Embora o Budha fale em eliminar os estados
prejudiciais e desenvolver os benéficos, o objetivo dele não é que
apenas sejamos pessoas felizes e contentes dentro dos limites mundanos
do mundo. Ele nos aponta para um objetivo transcendente: ele nos conduz
para a realidade incondicionada, Nibbana, o estado calmo e quiescente
que está além do nascimento, envelhecimento, sofrimento e morte. Esse
objetivo apenas pode ser alcançado através de uma completa e clara
compreensão da natureza última das coisas, o modo de existência final de
todos os fenômenos. Enquanto que essa realidade tem que ser penetrada
através da experiência direta, nós precisamos de instruções específicas
para compreendê-la. O objetivo em si transcende conceitos e palavras,
mas o Budha e os grandes mestres Budistas nos proporcionaram uma
variedade de “fotografias” que nos oferecem um vislumbre da verdadeira
natureza das coisas. Nenhuma dessas “fotos” pode capturá-la
completamente, mas elas nos proporcionam uma idéia das coisas que
deveríamos estar buscando, os princípios que precisamos entender e o
objetivo ao qual deveríamos estar aspirando.
Dedicar-se
ao estudo dos princípios relevantes à auto transcendência é um
empreendimento filosófico, mas essa não é uma filosofia como mera
especulação ociosa. Para o Budismo, a filosofia é o esforço para sondar a
verdadeira natureza das coisas, empregar conceitos e ideias para obter
um vislumbre da verdade que nos liberta, uma verdade que transcende
todos os conceitos e ideias.
A
filosofia Budista é uma grande correnteza que flui do Budha,
continuamente remodelada e ampliada para trazer à luz as diferentes
facetas da realidade, para expor os diferentes aspectos de uma verdade
que nunca pode ser capturada de forma adequada dentro de algum sistema.
Quando estudamos a filosofia Budista, precisamos sempre lembrar que essas
investigações filosóficas não são realizadas com o mero intento de
satisfazer a curiosidade intelectual, mas para ajudar na tarefa de
auto transcendência. Elas fazem isso identificando com precisão a
natureza da sabedoria que precisamos ter para obliterar a ignorância, a
raiz principal de todo sofrimento e cativeiro.
Ser um Budha
Eu tenho falado em “aprender com o Budha” como se isso
sempre implique aprender os ensinamentos registrados de modo explícito
nos textos. Mas isso é apenas parte do que “aprender com o Budha”
envolve. Aprender com o Budha significa não somente estudar as palavras
dele: também significa aprender da conduta dele e da mente dele. A
tradição Budista nos proporciona muitos registros das ações do Budha ao
longo da sua vida e nas vidas passadas, e isso forma uma parte
significativa da herança Budista. A vida, conduta e a mente do Budha nos
proporcionam um modelo a ser emulado (imitado), o padrão ideal que nós, como
discípulos do Budha, deveríamos tentar incorporar nas nossas vidas. http://www.acessoaoinsight.net/. Abraço. Davi.
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