Texto do escritor brasileiro Leonardo Boff (1938- ). II. Estamos entrando na Era da Vida.
Em razão disso, humildemente admite a corresponsabilidade do judeu
cristianismo pela situação crítica atual. Mas reluta em admitir a ideia
de
que seja o principal fator de desequilíbrio ecológicos, como o renomado
historiador norte americano Lynn White Junior e o brilhante ensaísta
alemão Carl Amery admitem. Outros fatores, quem sabe mais poderosos, se
conjugaram com este religioso. Mas ele atuou
poderosamente, criando um quadro geral que tornou possível a
secularização, a falta de veneração para com a Terra, o surgimento do
projeto da tecnociência, esse complexo todo é um dos principais fatores
da atual deficiência e degradação da Terra. Seis são
os pontos de conotação anti Ecológica na tradição judeu cristã. Em
primeiro lugar, o patriarcalismo. O Antigo e o Novo Testamento da Bíblia
expressam sua mensagem dentro do quadro cultural comum da antiguidade
clássica que é o patriarcalismo. Os valores masculinos
ocupam os principais espaços sociais. Deus mesmo é apresentado como Pai
e Senhor absoluto. As características femininas e especialmente
maternas das divindades anteriores ao Neolítico, que eram de versão
matriarcal, são deslegitimadas. Com isso a dimensão
feminina da existência torna-se invisível já que não pode ser
objetivamente eliminada. As mulheres são marginalizadas e mantidas no
espaço do privado. Esse reducionismo agride o equilíbrio dos gêneros e
representa uma ruptura na Ecologia social e religiosa.
Em segundo lugar, o judeu cristianismo é profundamente monoteísta. Sua
intuição primordial consiste em testemunhar que por detrás, antes e
depois do processo cósmico, vige um princípio único criador e
preservador universal, Deus. Há razões de ordem filosófica
e teológica que sustentam o monoteísmo. Nisso não reside a questão que
interessa à Ecologia. Mas à formulação psicológica e política que o
monoteísmo recebeu historicamente. É sabida a luta incansável que a
tradição travou contra o politeísmo de qualquer matiz.
Por mais fundada que seja filosoficamente, ela entretanto
impossibilitou a salvaguarda o momento de verdade presente no
politeísmo, resgatada anos após São Francisco de Assis, como veremos no
último capítulo. E a verdade é esta: o Universo com sua policromia
de seres, montanhas, fontes, bosques, rios, firmamento, etc. é
penetrado de energias poderosas e por isso é portador de mistério e
sacralidade. Mais ainda; o ser humano é habitado por muitos centros de
Energia que o desbordam por todos os lados e têm a ver
com a Energia Universal que trabalha há bilhões de anos o cosmo,
centros estes que dão um sentido profundo à existência. Estas forças
transcendentes foram, no decorrer da história, hipostasiadas na forma de
divindades masculinas e femininas. Surgiu uma visão
substancialista do sagrado e do espiritual, dando origem ao mundo dos
deuses e deusas, como entidades subsistentes. Mas originalmente elas
traduziam a efervescência interior da dinâmica do Universo e de cada ser
humano as voltas com o sentido radical de suas
vida pessoal e coletiva. As divindades funcionavam como arquétipos
poderosos da profundidade do ser humano. Ora, a radicalização do
monoteísmo (religiões com um único Deus: cristianismo, judaísmo e
islamismo), combatendo o politeísmo, fechou muitas janelas
da alma humana. Dessacralizou o mundo, ao confrontá-lo e contra
distingui-lo de Deus. Por causa da polêmica com o paganismo e seu
politeísmo, o cristianismo não soube discernir a presença das Energias
Divinas no Universo e especialmente o caráter sacramental
do mundo e da história. Teria entretanto uma ponte entre Deus e o
mundo, pois tudo seria perpassado pela inefável presença do Mistério.
Não foi o que predominou, embora houvesse um filão espiritual que
atravessa os séculos e qu elaborou uma mística cósmica.
Houve a maciça destruição do Universo policrômico do politeísmo e de
sua significação antropológica. O monoteísmo conheceu também uma
política. Foi invocado, frequentemente, para justificar o autoritarismo e
a centralização do poder. Argumentava-se, assim
como há um Deus no céu deve haver um só senhor na Terra, um só chefe
religioso, uma só cabeça ordenadora na família. Esta visão linear
destruiu o diálogo, a equidade e a comunidade Universal, de todos serem
filhos e filhas de Deus, sacramentos de sua bondade
e ternura. Ela ganhou uma expressão ainda mais redutora ao afirmar que
somente o ser humano, homem e mulher, assumirá a representação de Deus
na criação. Só deles se diz que são imagem e semelhança divina, Gênesis
1:26. Só deles se crê que prolongam o ato
criador de Deus e por isso possuem uma centralidade, negada aos demais
seres que também são imagem e semelhança de Deus e por sua ação
evolutiva atualizam e prolongam a vontade criadora divina. Olvidou-se
(esquecer) a grande comunidade cósmica que é portadora
do Mistério e por isso reveladora da Divindade. O antropocentrismo
(homem no centro) resulta desta leitura arrogante do ser humano. O texto
bíblico é taxativo ao dizer: "sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a
Terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do
mar, as aves do céus (...)", Gênesis 1: 28. Por esses textos resulta
claro o convite a demografia ilimitada e ao domínio irrestrito da Terra.
A mesma ênfase da dominação e do povoamento da Terra aparece claramente
no relato do dilúvio. Na nova ordem do mundo,
estabelecida após aquela imensa catástrofe Ecológica, diz o texto
sagrado: "sede fecundos, multiplicai, povoai a Terra e dominai-a",
Gênesis 9:7. E logo antes se detalha esta dominação: "sede o medo e o
pavor de todos os animais da Terra (...) eles são entregues
nas vossas mãos", Gênesis 9: 2. Mesmo o Salmo 8, dedicado à glória de
Deus na criação, mantêm o radicalismo antropocêntrico bíblico: "e o
fizeste (o ser humano) pouco menos de um Deus (...) para que domine as
obras de tuas mãos sob seus pé tudo colocaste,
ovelhas e bois, a ave do céu e os peixes do oceano (...)", Salmos 8;
6-8. Não há como eludir o sentido destes textos. Não vale a exegese
erudita de tantos que procuram situar e recolocar tais textos no
contexto da antropologia médio oriental para anular seu
teor anti Ecológico. Mas apesar de todo o empenho apologético, seu teor
se mantêm. E assim foi entendido e assimilado pela mentalidade moderna a
partir do século XVII como legitimação divina da conquista atroz do
mundo e do submetimento de todos os seres da
criação ao projeto da subjetividade arbitrária do ser humano.
evidentemente há nas Escrituras Sagradas uma outra leitura do relato da
criação (um sistema de alegoria e metáfora) com outra funcionalidade do
ser humano, feito anjo protetor e cultivador do jardim
do Éden, Gênesis 2:15 e assim reforçando uma fundamental perspectiva
Ecológica. Deveremos em seu devido lugar, desentranhar outras
perspectivas da tradição judeu cristã que são benfazejas para uma
religação de todas as coisas consigo mesmas e com sua fonte.
Assim nos referiremos a graça original, a aliança com todos os viventes
simbolizada pelo arco íris após o dilúvio, a dança da criação, o
Evangelho do Christo cósmico, a inabitação do Espírito nas energias do
Universo, a natureza sacramental da matéria por
causa da encarnação e dos sacramentos, a recapitulação de todas as
coisas para serem, por assim dizer o corpo de Deus. Mas aqui queremos
apontar os desvios de uma religião que historicamente descumpriu sua
função religadora e assim ajudou no desastre que hoje
padecemos em nosso planeta. Outro elemento perturbador de uma concepção
Ecológica do mundo, comum aos herdeiros da fé abraâmica (hebreus,
cristãos e muçulmanos) é a ideologia tribalista da eleição. Sempre que
um povo ou alguém se sente eleito e portador de
uma mensagem única corre o risco da arrogância e cai facilmente nas
tramas da lógica da exclusão. Efetivamente a consciência de hebreus,
cristãos e muçulmanos de serem povos eleitos por Deus levou-os a fazer
guerra contra todos os demais ou aos intentos de
submetê-los e incorporá-los à sua visão das coisas. Transformaram suas
convicções suas convicções em dogmas a serem impostos a todos os demais,
em nome de Deus e de seus desígnios históricos. Por causa disso,
instaurou-se, em certas épocas no Ocidente, uma
verdadeira "fraternidade" do terror contra toda a diversidade de
pensamento (inquisição, fundamentalismo, guerras religiosas). Nada mais
inimigo da Ecologia que esta cisma na solidariedade Universal e a
negação da aliança sob cujo arco íris todos e não somente
alguns se encontram. Entretanto, de todas as distorções Ecológicas
nenhuma sobrepuja aquela que advêm da crença na queda da natureza. Por
esta doutrina se crê que todo o Universo caiu sob o poder do demônio
devido ao pecado original introduzido pelo ser humano.
O Universo perde seu caráter sagrado, deixa de ser templo do Espírito
para ser a seara dos demônios. É matéria corrupta, pecaminosa,
decadente. O texto bíblico é explícito "maldita seja a Terra por tua
causa", Gênesis 3:17. A Noé Deus disse: "decidi acabar
com toda a carne porque a Terra está cheia de vícios por causa dos
homens", Gêneis 6:15. A ideia de que a Terra com tudo o que nela existe e
se move seja castigada por causa do pecado humano remete a um
antropocentrismo (o homem no centro do Universo) sem
medida. Os terremotos, as dizimações das espécies e a morte já existiam
antes que o ser humano tivesse sequer aparecido sobre a face da Terra.
Portanto, nem tudo o que acontece, de bom e de mau, deve ser atribuído
aos comportamentos do ser humano. Mas essa
demonização da natureza por causa da queda levou as pessoas a terem
pouco apreço a este mundo, dificultou por séculos o interesse das
pessoas religiosas por um projeto do mundo, retardou a pesquisa
científica e amargurou a vida, pois colocou sob pesada suspeita
todo o prazer, realização e plenitude advindos do trato e da fruição da
natureza. Nesta compreensão o pecado original ganha a partida sob a
graça original. Para muitos esse binômio pecado redenção caracteriza
fundamentalmente o cristianismo. Em certas tradições (que se remetem a
doutrinas de São Paulo, de Santo Agostinho e de Martinho Lutero) o
pecado ganhou tanta centralidade que o ser humano se sente mais ligado e
dependente da velho Adão pecador do que o novo Adão libertador Jesus
Christo. Abraço. Davi.
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