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Texto de Alex Castro. A MAIOR DE TODAS AS ILUSÕES É O EU. Dentre as muitas
armadilhas mentais que construímos para nós mesmos, mentiras gigantescas que
nunca questionamos e escolhas hegemônicas que ofuscam possíveis alternativas,
poucas podem ser mais unânimes (especialmente no Ocidente) do que a ilusão de
que, dentro de cada uma de nós, existiria uma essência maior do que a soma de
nossas partes: o Eu. A prática de atenção não é “abandonar o Eu” — porque
o Eu não existe e não temos como abandonar algo que não existe —, mas sim
desapegar dessa ilusão que criamos para buscar o prazer e evitar a dor, dessa
ilusão que nos venderam para poderem vender a ela automóveis e pasta de dente. Não existe essência. Eu, se perder um braço, continuaria sendo eu, só que sem um braço. Mas, e
se tivesse estudado engenharia ou ido morar na Austrália, eu teria sido eu,
apenas com uma vida diferente? Se meus pais tivessem feito sexo cinco minutos
depois, eu teria sido eu? Se tivesse nascido na década seguinte, em Manaus,
loiro e geminiano, ou na década anterior, em Porto Alegre, ruivo e leonino, eu
teria sido eu? Em que momento haveria tantas e mais tantas condições fortuitas
e circunstâncias contingentes nas quais eu deixaria de ser eu? Uma caneta Bic,
se tiro a tampa, é uma caneta sem tampa, de um lado, e uma tampa, do outro.
Mas, se abro o corpo da caneta e tiro a carga, a caneta ainda é uma caneta?
Agora, tenho três objetos: (1) uma tampa (2) uma carga, com ponta, e (3) um
tubo transparente e oco. Qual desses três objetos é a caneta? Nenhum deles?
Todos eles? Em que momento passaram a ser uma caneta? Em que momento deixaram
de ser? Onde está a essência da caneta? Se digo que uma mesa existe
concretamente, mas não tem essência, o que quero dizer é que sua existência
enquanto objeto não depende de si mesma. Se não tivéssemos desenvolvido o
conceito de “móvel” e, dentro dele, de “mesa”, aquilo que nos parece um único
objeto poderia igualmente e corretamente ser descrito como quatro pedaços de
pau espetados numa tábua de madeira. Sem a ideia prévia de “mesa”, nem faria
sentido descrever esse ajuntamento temporário de pedaços de madeira como um
“objeto” uno, em vez de apenas um breve instantâneo na história de alguns
fragmentos de árvore, antes arrumadas assim, depois organizadas assado. Para a
mesa existir enquanto “mesa”, ela depende das partes que a compõem (pés, tábua
etc.), de suas causas imediatas e distantes (alguém decidiu fazê-la, alguém a
fez etc.), de seu material físico (madeira, metal etc.), de sua idealização
enquanto conceito (a ideia de mesa) etc. Sem essas condições contingentes (ou
seja, fortuitas e dependentes de outras condições), não poderia existir o
objeto “mesa”. Ou seja, a mesa não é uma entidade dotada de existência própria
e intrínseca, mas apenas uma fatia arbitrária do espaço-tempo que escolhemos
chamar por um termo convencionado (“mesa”). Tudo é relação: nada existe por si
e para si. O que vale para objetos manufaturados, como a mesa, vale igualmente
para seres vivos, tanto a árvore de onde veio sua madeira, quanto eu
e você. Não
existe o Eu. Não é que eu, aqui, pessoa concreta, de carne e osso, escrevendo essas
linhas nesse exato minuto, e você aí, lendo essas linhas nesse exato minuto,
não tenhamos existência física, concreta, real. (Afinal, eu sinto ,
eu sei que
estou aqui e você sente, você sabe que está aí.) Mas essa
entidade que chamo de Eu — que me parece tão maior e mais transcendental do que
apenas a mera soma de “meus” membros, “meu” corpo, “minha” consciência, “meu”
nome — é apenas um conceito que não possui existência permanente e autônoma,
uma coleção de características contingentes e fortuitas sem nenhum tipo de
essência intrínseca. Assim como a mesa, assim como a caneta. Nossa consciência
é formada por um contínuo de experiências ao qual damos um nome. Por razões
práticas, faz sentido distinguir uma pessoa da outra — sou o Alex Castro porque
não sou nem o Chico Buarque nem a Joana D’Arc. Da mesma maneira, distinguimos
um rio do outro: o rio Amazonas e o rio Paraíba do Sul são dois rios diferentes
porque nascem em pontos diferentes, correm por trajetos diferentes, contêm
águas de composições químicas diferentes, deságuam em pontos diferentes.
Entretanto, por mais reais e concretos que sejam esses caudalosos rios, eles
não possuem qualquer essência: como até os gregos antigos sabiam, ninguém se
banha duas vezes no mesmo rio. Suas águas literalmente nunca são as
mesmas. Tudo é contingente: somos pessoas únicas não porque temos uma pretensa
essência metafísica (o Eu!) qualitativamente diferente da essência metafísica
das outras entidades que não-são-o-meu-Eu, mas sim porque surgimos a partir de condições
únicas e de circunstâncias irrepetíveis. Se o nosso Eu tivesse uma
essência, então nossa natureza nunca poderia mudar: o fato de o nosso Eu ser
vazio de existência intrínseca é justamente o que nos permite a liberdade de
nos reconstruir, recriar, reinventar. (…). Síndrome da pessoa alheia. Se temos uma ferida sangrando na perna ou se nosso estômago está
roncando, nossa mão não se comporta como se esses problemas lhe fossem alheios:
ela estanca o sangue e coloca alimentos na boca. As diferentes partes do todo
que é o meu corpo simplesmente, naturalmente se comportam como se fossem um só.
As mãos de algumas pessoas, porém, agem à revelia de sua vontade: pegam objetos
que não deveriam pegar, fazem gestos que não deveriam fazer e, em casos
extremos, até mesmo atacam outros membros do corpo. Só uma parte doente se
comporta como se fosse uma entidade separada da totalidade à qual pertence. Por
isso, essa doença, chamada de Síndrome da Mão Alheia, é considerada uma
desordem neurológica devastadora. Nossa mão não é alheia à fome do nosso
estômago, porque ambos reconhecem fazer parte do mesmo todo, mas somos alheias
à fome da pessoa que está ali na calçada, porque não nos reconhecemos como
parte do mesmo todo que ela. A desordem existencial devastadora de nossa
civilização é ver na fome, no sofrimento, na angústia da outra pessoa
um problema alheio a nós. Todas sofremos de Síndrome da Pessoa Alheia. Quando
finalmente enxergamos a miragem do Eu, cuidar das outras pessoas se torna tão
natural quanto a mão que automaticamente estanca o sangue da perna que pertence
ao mesmo corpo que ela. Não
existe verdade. Uma objeção a esse texto: — No meio de tanto dogmatismo místico, vejo
várias contradições. Por exemplo, como você pode ter tanta certeza de que não
existe? Não poderíamos parafrasear Descartes e dizer: “Penso ‘não existo’, logo
existo?” Quem é esse Eu que escreve textos dizendo que o Eu não existe? Além
disso, como posso me autoconstruir, ou escolher o meu mundo… se não existo? Quando
passo debaixo da lâmpada, vejo minha sombra no chão; quando entro na banheira,
o nível da água sobe na exata proporção do volume do meu corpo; quando assino
um contrato, tenho que reconhecer firma no cartório. (Uma das poucas vantagens
comprovadas de não existir é nunca precisar reconhecer firma.) Então, se
desloco água e abro firma, também posso autoconstruir minha identidade e
escolher meu trabalho. A questão não é se eu existo (é claro que eu existo),
mas sim que o meu Eu não existe dessa maneira essencial e transcendental como
sinto que ele existe, no centro de um universo que gira ao seu redor,
observando tudo sempre a partir de sua própria perspectiva. No século XVII,
quando Galileu Galilei ousou sugerir que era a Terra que girava em torno do Sol
(e não vice-versa), um cardeal retrucou: — Eu não sou uma coisa qualquer, numa
estrelazinha qualquer, girando por aí, ninguém sabe até quando. Eu sinto a
terra firme debaixo dos meus pés, em repouso, no centro do universo. Eu estou no
centro do universo, e o olho do Criador repousa em mim , somente em mim.
Os astros e o Sol majestoso giram em torno de mim, fixados em oito esferas de
cristal; foram criados para iluminar a minha cercania, e também para me iluminar
a mim,
para que Deus me veja. Mas o pobre do Galileu não estava dizendo que a Terra e
o Sol não existiam, assim como não estou dizendo que o Eu não existe. Galileu
dizia apenas que a Terra e o Sol não eram o centro do universo, que eram
somente mais um planeta e mais uma estrela, como infinitos outros, sem nada de
intrinsecamente especial — a não ser o especialíssimo fato, para nós , de ser o
planeta onde nós vivemos, e a estrela que nós orbitamos.
Tirando o fato de, para mim, Eu ser Eu (que é mais uma questão de perspectiva
do que de essência), o que há de tão importante, transcendental nesse meu Eu?
Nada. Quando digo que encaro o meu Eu como se ele não tivesse essência
intrínseca, o que estou compartilhando é uma perspectiva, não uma verdade: um método,
não uma doutrina; uma prática, não um dogma. A afirmação
de uma fé nos convida a acreditar ou desacreditar: a proposta de um método, se
acharmos que faz sentido e que pode nos trazer benefícios, nos convida a investigá-lo
e vivenciá-lo, testá-lo e corporificá-lo. Em minha experiência
pessoal, tem valido a pena viver como se o meu Eu fosse desprovido de essência
intrínseca. Algumas pessoas também decidiram viver assim. Outras, não. No
fim das contas, independentemente de como escolhemos pensar sobre nós mesmas,
todas deslocamos água quando entramos na banheira. Desapegar do Eu não é deixar de se amar. O nosso Eu só sabe amar a si próprio: ele foi criado e treinado para
premiar quem lhe pode ser útil e punir quem lhe pode ser incômodo. Por isso,
não existe como servir e ajudar as outras pessoas a partir de uma perspectiva
egoica: o Eu não consegue ser desinteressado, porque nós o inventamos para
perseguir nossos (pretensos) interesses a todo custo. É só isso que ele sabe
fazer. Quando o Eu ajuda, ele ajuda para parecer uma pessoa boa, para conseguir
reconhecimento, para aumentar seu cacife, para ser feliz. Tudo sempre girando
em torno de si mesmo, de seus interesses e de suas necessidades. Um Eu não tem
como ajudar ninguém, não tem como ser útil à sua comunidade: mas, se nos
desapegamos da ilusão do Eu e percebemos que estamos juntas, então, podemos nos
ajudar a nós todas, de igual para igual, no mesmo nível. As práticas de atenção
se reforçam umas às outras. Na 17 a prática, Estar presente,
aprendemos que tudo passa: nossa dor e nossa alegria, nosso êxtase e nosso
luto, nossa vida e o nosso Sol. Mas, se não tivermos nos desapegado
do nosso Eu (a 18 a prática), essa percepção pode nos tornar ainda
mais egoístas: — A Sâmara está sofrendo, mas pra que vou me dar ao trabalho de
acolhê-la e abraçá-la? Essa dor vai passar mesmo! Deixa ela sofrer um pouco,
faz bem pra alma! Entretanto, se temos confiança de que tudo passa ao mesmo
tempo em que conseguimos nos desapegar do nosso Eu, então podemos estar
presentes na alegria e no sofrimento do mundo sem medo nem egoísmo, de forma
plena e destemida, nos abrindo à dor de Sâmara, recebendo-a e acolhendo-a, e
também deixando-a partir, permitindo que sua dor passe por nós como trens
passando por uma estação. Se não somos a nossa dor, também não precisamos ser a
dor de Sâmara. Desapegar do Eu não significa nos odiarmos, ou não nos amarmos,
mas amarmos a nós mesmas com o mesmo amor com o qual amamos a outra pessoa,
porque somos todas partes do mesmo todo. Nós nos amamos e nos cuidamos não para
nós mesmas, mas para as outras pessoas, para podermos
amá-las e cuidar delas. Quando um avião despressuriza, temos cerca de quinze
segundos para colocar a máscara de oxigênio antes de perdermos a consciência.
Assim, colocamos a máscara primeiro em nós mesmas não porque somos mais
importantes do que as outras passageiras, mas porque, se estivermos
desacordadas, não teremos como ajudar mais ninguém com suas máscaras. Desapegar do Eu é engajar-se no mundo. O vazio que sentimos dentro de nós (que tentamos desesperadamente
preencher com dinheiro ou fama, sexo ou família, ou qualquer outra coisa que
nos pareça factível) só é um problema enquanto tentamos preenchê-lo. Se
conseguimos desapegar do Eu, entretanto, o mesmo vazio que antes nos angustiava
passa a nos fortalecer: livres da obrigação absorvente de proteger essa frágil
entidade dentro de nós e cuidar dela (“será que construí o suficiente em vinte
e cinco anos de vida?”, “será que as pessoas gostam mesmo dos meus textos?”
etc. etc.), podemos finalmente levantar os olhos, perceber as pessoas à nossa
volta e nos dar conta de que elas também estão sofrendo. Desapegar do nosso Eu
não nos impede de militar em causas sociais ou de lutar para transformar a
realidade. Pelo contrário, ao eliminar a importância excessiva que damos a nós
mesmas em relação às outras pessoas, o nosso potencial de engajamento político
é finalmente desbloqueado, realizado, magnificado. Nós não estamos
dentro do nosso corpo olhando para fora: nós somos o universo olhando
para si mesmo. Nós não estamos aqui e o universo ali: nós somos o que o universo está fazendo
agora. www.budavirtual.com.br. Abraço. Davi
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