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Texto de Judy Lief. A ESPADA AFIADA DE PRAJNA. A sabedoria, diz Judy Lief, não
é sobre respostas. Trata-se do poder de questionar, de desenvolver uma grande
curiosidade que corta toda a solidez e autoengano. Matéria traduzida por Marcos
Bauch do original em inglês publicado na Lions Roar disponível aqui → O Mahayana é conhecido como “o
grande veículo” do budismo porque é vasto e desafiador e aberto a todos. No
coração do caminho mahayana estão a compaixão e a sabedoria, ou prajna.
Para o praticante, o desafio é como juntar estes dois. Prajna é uma palavra sânscrita que,
literalmente, significa “melhor conhecimento” ou “saber melhor”. Prajna é
um natural borbulhar de curiosidade, dúvida e exploração. É preciso, mas, ao
mesmo tempo, é lúdico. O despertar de prajna aplica-se a todos
os aspectos da vida, até os mínimos detalhes. Nosso interesse inquisitivo
engloba todos os níveis, dos mais mundanos, como, por exemplo, ‘como eu ligo
este computador’, até níveis tão profundos quanto ‘qual é a natureza da
realidade?’ Prajna é
simbolizada de muitas maneiras: como um livro, um sol, um vaso com elixir, como
uma centelha catalítica. Uma das principais formas de simbolizar prajna é
como uma espada. Quando você pensa em uma espada, isso pode fazer você se
sentir um pouco desconfortável. Uma espada pode ser perigosa e, se você não
lidar com ela da forma correta, você pode se machucar. Então, simbolizar prajna como
uma espada indica o conhecimento que é ameaçador. Por que prajna é ameaçadora? Porque prajna é
o meio pelo qual percebemos a vacuidade, ou shunyata, ela destroi
nossa própria noção de realidade e os limites que colocamos em nossa visão de
mundo. Nos abrir para a imensidão e a profundidade de shunyata nos
obriga a abandonar completamente nossa mente mesquinha e nosso auto apego.
Muitos sutras lidam com o tema de prajna. Um dos mais
amados é a explicação extremamente concisa e elegante conhecida como o Sutra do
Coração, que é recitada diariamente pelos budistas de muitas tradições. Em
frases tão famosas e provocativas como: “Não tem olhos, nem ouvidos, nem nariz,
nem língua, nem corpo, nem mente (…) não tem sofrimento, nem a origem do
sofrimento, nem cessação do sofrimento, nem caminho … nem sabedoria, nem
realização”, O Sutra do Coração, passo a passo, de forma precisa e sistemática
– quase cirurgicamente – remove todas e quaisquer barreiras que nos separam da
viva experiência de shunyata. O fio afiado de prajna corta
em muitos níveis. No sentido mundano, prajna representa um amolar
da percepção e curiosidade. À medida que vamos seguindo nossas vidas, e
particularmente, quando entramos em um caminho espiritual, estamos sempre
fazendo perguntas. Estamos sempre tentando entender. Em vez de apenas aceitar
um entendimento superficial, pensamos profundamente e perguntamos: “O que eu
realmente entendo? Isso faz algum sentido”? Prajna tem essa
qualidade de dúvida criativa – não apenas aceitando coisas com base em
autoridade ou boatos, mas continuamente cavando mais fundo. Além de serem afiadas, as espadas têm pontas que são capazes de
perfurar. A espada pontuda e afiada de prajna perfura todos os
tipos de delusões, todos os tipos de auto engano, todos os tipos de falsos
entendimentos e falsas visões. Essa qualidade perfurante de prajna é
abrupta e imediata. Ela toma você de surpresa. Talvez você seja um praticante
novo que esteja explorando o dharma, estudando todas essas coisas novas e
interessantes e começando a praticar a meditação. De repente, prajna se
apossa de você e você se sente perfurado. Você foi pego. Prajna pegou
você no ato, seja no ato de auto absorção, de estar envaidecido, ou o ato de
mentir para si mesmo. Prajna é uma zona livre de mentiras.
Sempre que tentamos nos afastar do presente, da realidade imediata das coisas,
estamos nos colocando como um alvo para esta qualidade perfurante de prajna.
Podemos dizer que prajna é um mecanismo de
defesa. Se continuamos a ser cada vez mais arrogantes, em algum momento somos
perfurados pela prajna e tudo entra em colapso. Isso é bom,
mas, ao mesmo tempo, essa qualidade de ser perfurante e cortante pode ser vista
como uma ameaça. Nos sentimos ameaçados pela possibilidade de ser descobertos,
mas, uma vez que prajna é o nosso próprio insight intrínseco,
por quem estamos sendo descobertos? Por nós mesmos! Não é que outra pessoa vá
dizer: “Ah, eu conheço o seu jogo”. Através de prajna, no fundo nós
sabemos o que realmente está acontecendo: conhecemos o nosso próprio jogo. É
preciso esforço para continuar a nos auto enganar. Se não nos esforçarmos para
seguir nos enganando, fingindo que não sabemos o que está acontecendo, então,
mais cedo ou mais tarde, vamos ser perfurados. Você pode ver tudo isso como
uma pequena advertência: assim que você entra no caminho budista, começa a
praticar a meditação e estudar o dharma, você está recolhendo essa espada
de prajna. Agora que você está segurando essa coisa afiada, essa
espada que perfura e corta todas as viagens do ego, você tem que encarar isso.
A espada de prajna tem dois lados afiados, não
apenas um. É uma espada de dois gumes, afiada em ambos os lados, então, quando
você golpeia com prajna, ela corta de duas maneiras. Quando você
corta o engano, você também está cortando o ego que quer levar o crédito por
isso. Você é abandonado no meio do nada, mais ou menos. Quanto mais consciência [mindfulness] você desenvolve, mais
poderosa é a espada da prajna. Uma vez que você tenha essa espada,
ela corta todas as possibilidades de fuga. Mas não tem ninguém fazendo isso com
você – é sua própria inteligência e não um bicho-papão cósmico. O golpe
de prajna é como um hara-kiri. Enquanto você está
segurando a espada, você prepara o contragolpe, pronto para atacar – e aí
descobre que você se cortou em dois. Prajna nunca para de cortar.
Se você está podando uma planta, você pode dizer: “Vou apenas podar, podar,
podar e então vou ter esse galinho que voltará a crescer”. Mas prajna continua
cortando e cortando, até não restar mais nada, apenas esta espada, cortando e
cortando. Prajna não nos
permite criar uma credencial ou fazer de qualquer coisa uma fundamentação.
Podemos criar credenciais de qualquer coisa que fazemos, incluindo a
espiritualidade ou a tradição budista ou a prática da meditação. Poderíamos
usar qualquer uma dessas coisas na nossa maneira usual e convencional de
construir credenciais, construir identidades, tentando ser especiais.
Poderíamos dizer: “Agora sou uma pessoa espiritual que faz bla-bla-bla”. A
resposta de prajna é: “Bom, tudo bem. Você pode até dizer
isso, mas você sabe muito bem que isso não é bem assim. Você sabe que isso não
é lá tão sólido”. A espada da prajna corta nosso apego à uma
base sólida. Outra imagem para prajna é o
sol: o sol de prajna está iluminando nosso mundo. Se somos
curiosos, se estamos atentos, um tipo natural de iluminação acontece. Há luz
brilhando nos cantos escuros e uma sensação de estar em destaque, totalmente exposto.
O engraçado é que, na verdade, pensamos que podemos nos esconder. Como podemos
pensar isso? Como podemos pensar que, na verdade, não sabemos quem somos? Mas
muitas vezes tomamos a abordagem de não querer olhar, para nós mesmos e para
nossas vidas, muito de perto. Nós simplesmente olhamos para o outro lado e
seguimos em frente. No entanto, não há um canto onde o sol da prajna não
brilhe. Prajna é como ter um sol brilhando em todos os
lugares, nunca se pondo. Uma vez que você se abre
para prajna, para essa curiosidade fundamental, ela tende a
explodir em chamas. É como uma pequena centelha jogada em uma pilha de folhas
secas. Uma vez que apareça aquela pequena faísca, aquele pequeno insight,
aquela pequena suspeita de que sabemos mais do que achamos – ela explode, ela
consome tudo. Prajna é
representada iconograficamente pela deidade feminina Prajnaparamita e a deidade
masculina Manjushri. Prajnaparamita é retratada como uma bela deidade feminina
com quatro braços. Dois braços estão dobrados em seu colo, na postura clássica
de meditação, e seus outros dois braços seguram uma espada e um livro. Através
desses gestos, ela manifesta três aspectos da prajna: conhecimento
acadêmico, corte do engano e percepção direta da vacuidade. A divindade masculina personificando o conhecimento, Manjushri,
também é representado segurando uma espada. Às vezes, ele também segura um vaso
cheio com o elixir do conhecimento, que simboliza a visão intuitiva direta. A
espada é a atividade de prajna e o vaso é o aspecto receptivo
da aprendizagem. Às vezes Manjushri segura um livro e uma flor. O livro
simboliza o aprendizado acadêmico e a flor representa o desdobramento orgânico
de prajna, que, como uma flor, naturalmente se abre e floresce. Não
precisa ser forçada. Prajna tem a ver com cultivar a curiosidade da mente, cultivando uma
compreensão profunda que não é uma mera identidade, mas nos transforma
completamente. Como cultivar prajna? O processo de aprofundamento
da nossa compreensão é descrito como os três níveis de prajna, ou
as três prajnas. Que chamamos de ouvir, contemplar e meditar.
A PRIMEIRa PRAJNA: OUVIR. A primeira prajna, ouvir, é
baseada em estar aberto a novas informações, reunir conhecimento e realmente
tentar ouvir. Embora seja chamada de ouvir, além de escutar com seus ouvidos,
também inclui leitura e observação através de todos os nossos sentidos. Quando
você ouve o dharma ou ouve os ensinamentos, você deveria ser como um cervo na
floresta. Você ouve um ruído – passos pisando as folhas – e você não sabe se
esse barulho vem de um caçador ou de um leão de montanha. Naquele momento, seus
sentidos se aguçam completamente. Você está focado e pronto para correr do
perigo, se necessário. Você está absolutamente alerta e sintonizado com o meio
ambiente. Essa qualidade de alerta e atenção refinadas é a qualidade de ouvir.
Você precisa ouvir os ensinamentos como se sua vida dependesse disso. Essa é a
maneira correta de seguir a primeira prajna. A SEGUNDA PRAJNA: CONTEMPLAR. No entanto, neste ponto, vemos
o conhecimento como algo separado de nós, um objeto lá fora com o qual estamos
tentando lidar. Para aprofundar, recorremos à segunda prajna,
contemplar. Uma vez que tenhamos ouvido ou lido ou experimentado algo, o
contemplar significa realmente mastigar isso. Nós continuamente questionamos o
que ouvimos, olhando aquilo de ângulos diferentes, tomando tempo para
explorá-lo. Lembro do meu professor, Chögyam Trungpa Rinpoche, dizendo que, se
você realmente entender os ensinamentos, você deveria ser capaz de descrevê-los
para sua avó de um jeito que ela possa entender. Isso é muito desafiador – você
não pode simplesmente chegar marchando e apresentar sua conversa pré-moldada ou
suas muitas camadas de listas e termos. Você tem que ter mastigado as coisas e
realmente ter pensado sobre isso. Você precisa chegar ao ponto em que você pode
expressar os ensinamentos em suas próprias palavras, suas próprias imagens.
Você precisa encontrar sua voz, e isso leva tempo. Essa é a ideia de
contemplar. Estudar os ensinamentos budistas não é como ir
à escola, onde você tem uma aula depois da outra. Na tradição budista, você
pega uma ou duas coisas e você as estuda repetidamente. Você pega um tópico e
sempre volta nele, vez após vez. Você trabalha com ele toda a sua vida. Vez
após vez você retorna a apenas algumas idéias básicas e a cada vez sua
compreensão se aprofunda. O processo de contemplação é um relacionamento de
longo prazo, como o de um casal velhinho. Isso não acontece rapidamente; leva
tempo. A TERCEIRA PRAJNA:
MEDITAR. A terceira prajna é
chamada de meditar. Este é o ponto em que você estudou algo tão profundamente,
olhou-o tão completamente, que aquilo não está mais separado de você. É parte
de quem você é, encravado em seus próprios ossos até a medula. O prajna da
meditação significa que você realmente digeriu os ensinamentos. Não há
necessidade de tentar acessar o dharma de algum lugar, ou fazer um esforço para
reconstruí-lo, porque já está lá. Está em suas células e seu DNA. Ouvir é como colocar um pedaço de comida na sua boca. Contemplar é
como engolir essa comida e começar a digerir para ver se isso lhe dá indigestão
ou não. Meditar é quando você já digeriu e essa comida faz parte de você. Não
pode ser separada de você; Está completamente incorporada em seu ser. Você
reteve a essência e descartou qualquer coisa que seja irrelevante, o mesmo que
fazemos com a comida que comemos ou com o ar que respiramos. Todo o processo é
tão natural quanto comer. Normalmente pensamos que
conhecimento significa ter todas as respostas, mas a qualidade de prajna está
mais em ter todas as perguntas. A frase que Trungpa Rinpoche (1939-1987) usava
sempre era: “A pergunta é a resposta”. Estamos olhando na direção errada se
pensarmos que algum caminho ou algum professor ou algum livro ou alguma prática
fornecer-nos “a resposta definitiva”. O que deveríamos estar realmente
procurando é a pergunta definitiva. Poderíamos aprender a confiar na nossa
mente questionadora. Poderíamos aprender a confiar no nosso insight, sem
reduzi-lo ou enfiá-lo em nossas categorias convencionais. Na verdade, prajna não
pode ser classificada. Isso seria como tentar colocar o sol em um escaninho.
Simplesmente não é possível. Que conhecimento é esse que não
pode ser possuído, que não podemos segurar, que não é nossas credenciais, que
não é um objeto? Que conhecimento é esse que parece aparecer apenas quando não
estamos tentando alcançá-lo? Que conhecimento é esse que parece vir do nada?
Que conhecimento é esse que é inspirador, mas, ao mesmo tempo, ameaçador? Que
conhecimento é esse que nos desafia a reconhecer o que já sabemos, mas que
preferimos manter enterrado? Que insight penetrante é esse que
nos leva à experiência direta da vacuidade? Fundamentalmente, prajna é
uma grande mente questionadora. É um grande questionamento, nem mesmo mente. www.budavirtual.com.br. Abraço. Davi.
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