sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

UM SONHO CULTURAL


Cristianismo. www.vatican.va. EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL. QUERIDA AMAZÔNIA. Do Santo Padre Francisco (1936 - ). Ao povo de Deus e a todas as pessoas de boa vontade. Capítulo II. UM SONHO CULTURAL. 28. O objetivo é promover a Amazónia; isto, porém, não implica colonizá-la culturalmente, mas fazer de modo que ela própria tire fora o melhor de si mesma. Tal é o sentido da melhor obra educativa: cultivar sem desenraizar, fazer crescer sem enfraquecer a identidade, promover sem invadir. Assim como há potencialidades na natureza que se poderiam perder para sempre, o mesmo pode acontecer com culturas portadoras duma mensagem ainda não escutada e que estão ameaçadas hoje mais do que nunca. O poliedro amazônico. 29. Na Amazónia, vivem muitos povos e nacionalidades, sendo mais de cento e dez os povos indígenas em isolamento voluntário (PIAV)[31]. A sua situação é fragilíssima; e muitos sentem que são os últimos depositários dum tesouro destinado a desaparecer, como se lhes fosse permitido sobreviver apenas sem perturbar, enquanto avança a colonização pós-moderna. Temos que evitar de os considerar como «selvagens não-civilizados»; simplesmente criaram culturas diferentes e outras formas de civilização, que antigamente registaram um nível notável de desenvolvimento[32]. 30. Antes da colonização, os centros habitados concentravam-se nas margens dos rios e lagos, mas o avanço da colonização expulsou os antigos habitantes para o interior da floresta. Hoje, a crescente desertificação obriga a novas deslocações muitos, que acabam por ocupar as periferias ou as calçadas das cidades por vezes numa situação de miséria extrema, mas também de dilaceração interior devido à perda dos valores que os sustentavam. Neste contexto, habitualmente perdem os pontos de referência e as raízes culturais que lhes conferiam uma identidade e um sentido de dignidade e vão alongar a fila dos descartados. Assim interrompe-se a transmissão cultural duma sabedoria que, durante séculos, foi passando de geração em geração. As cidades, que deveriam ser lugares de encontro, enriquecimento mútuo e fecundação entre diferentes culturas, tornam-se palco dum doloroso descarte. 31. Cada povo, que conseguiu sobreviver na Amazônia, possui a sua própria identidade cultural e uma riqueza única num universo multicultural, em virtude da estreita relação que os habitantes estabelecem com o meio circundante, numa simbiose – de tipo não determinista – difícil de entender com esquemas mentais alheios:

«Havia outrora uma paisagem que despontava com seu rio,
seus animais, suas nuvens e suas árvores.
Às vezes, porém, quando não se via em lado nenhum
a paisagem com seu rio e suas árvores,
competia a tais coisas assomar à mente dum
garotinho»[33].

«Do rio, fazes o teu sangue (…).
Depois planta-te,
germina e cresce
que tua raiz
se agarre à terra
mais e mais para sempre
e, por último,
sê canoa,
barco, jangada,
solo, jarra,
estábulo e homem»[34]
.

32. Os grupos humanos, seus estilos de vida e cosmovisões são tão variados como o território, pois tiveram que se adaptar à geografia e aos seus recursos. Não são iguais as aldeias de pescadores às de caçadores, nem as aldeias de agricultores do interior às dos cultivadores de terras sujeitas a inundações. Além disso, na Amazônia, encontram-se milhares de comunidades de indígenas, afrodescendentes, ribeirinhos e habitantes das cidades que, por sua vez, são muito diferentes entre si e abrigam uma grande diversidade humana. Deus manifesta-Se, reflete algo da sua beleza inesgotável através dum território e das suas caraterísticas, pelo que os diferentes grupos, numa síntese vital com o ambiente circundante, desenvolvem uma forma peculiar de sabedoria. Quantos de nós observamos de fora deveríamos evitar generalizações injustas, discursos simplistas ou conclusões elaboradas apenas a partir das nossas próprias estruturas mentais e experiências. Cuidar das raízes. 33. Quero lembrar agora que «a visão consumista do ser humano, incentivada pelos mecanismos da economia globalizada atual, tende a homogeneizar as culturas e a debilitar a imensa variedade cultural, que é um tesouro da humanidade»[35]. Isto afeta muito os jovens, quando se tende a «dissolver as diferenças próprias do seu lugar de origem, transformá-los em sujeitos manipuláveis feitos em série»[36]. Para evitar esta dinâmica de empobrecimento humano, é preciso amar as raízes e cuidar delas, porque são «um ponto de enraizamento que nos permite crescer e responder aos novos desafios»[37]. Convido os jovens da Amazônia, especialmente os indígenas, a «assumir as raízes, pois das raízes provém a força que [os] fará crescer, florescer e frutificar»[38]. Para quantos deles são batizados, incluem-se nestas raízes a história do povo de Israel e da Igreja até ao dia de hoje. Conhecê-las é uma fonte de alegria e sobretudo de esperança que inspira ações válidas e corajosas. 34. Durante séculos, os povos amazónicos transmitiram a sua sabedoria cultural, oralmente, através de mitos, lendas, narrações, como sucedia com «aqueles primitivos jograis que percorriam as florestas contando histórias de aldeia em aldeia, mantendo assim viva uma comunidade que, sem o cordão umbilical destas histórias, a distância e a falta de comunicação teriam fragmentado e dissolvido»[39]. Por isso, é importante «deixar que os idosos contem longas histórias»[40] e que os jovens se detenham a beber desta fonte. 35. Enquanto o risco de perder esta riqueza cultural é cada vez maior, nos últimos anos – graças a Deus – alguns povos começaram a escrever para contar as suas histórias e descrever o significado dos seus costumes. Assim, eles próprios podem reconhecer explicitamente que há algo mais do que uma identidade étnica e que são depositários de preciosas memórias pessoais, familiares e coletivas. Alegra-me ver aqueles que perderam o contato com as suas raízes tentarem recuperar a memória danificada. Por outro lado, nos próprios setores profissionais, começou a desenvolver-se uma maior percepção da identidade amazônica, tornando-se a Amazônia – mesmo para eles, muitas vezes descendentes de imigrantes – fonte de inspiração artística, literária, musical, cultural. As várias expressões artísticas, particularmente a poesia, deixaram-se inspirar pela água, a floresta, a vida que se agita, bem como pela diversidade cultural e os desafios ecológicos e sociais. Encontro intercultural. 36. As culturas da Amazónia profunda, como aliás toda a realidade cultural, têm as suas limitações; as culturas urbanas do Ocidente também as têm. Fatores, como o consumismo, o individualismo, a discriminação, a desigualdade e muitos outros, constituem aspetos frágeis das culturas aparentemente mais evoluídas. As etnias que desenvolveram um tesouro cultural em conexão com a natureza, com forte sentido comunitário, apercebem-se facilmente das nossas sombras, que não reconhecemos no meio do suposto progresso. Assim, far-nos-á bem recolher a sua experiência da vida. 37. É a partir das nossas raízes que nos sentamos à mesa comum, lugar de diálogo e de esperanças compartilhadas. Deste modo a diferença, que pode ser uma bandeira ou uma fronteira, transforma-se numa ponte. A identidade e o diálogo não são inimigos. A própria identidade cultural aprofunda-se e enriquece-se no diálogo com os que são diferentes, e o modo autêntico de a conservar não é um isolamento que empobrece. Por isso, não é minha intenção propor um indigenismo completamente fechado, a-histórico, estático, que se negue a toda e qualquer forma de mestiçagem. Uma cultura pode tornar-se estéril, quando «se fecha em si própria e procura perpetuar formas antiquadas de vida, recusando qualquer mudança e confronto com a verdade do homem»[41]. Isto poderia parecer pouco realista, já que não é fácil proteger-se da invasão cultural. Por isso, cuidar dos valores culturais dos grupos indígenas deveria ser interesse de todos, porque a sua riqueza é também a nossa. Se não progredirmos nesta direção de corresponsabilidade pela diversidade que embeleza a nossa humanidade, não se pode pretender que os grupos do interior da floresta se abram ingenuamente à «civilização». 38. Na Amazônia, mesmo entre os distintos povos nativos, é possível desenvolver «relações interculturais onde a diversidade não significa ameaça, não justifica hierarquias de um poder sobre os outros, mas sim diálogo a partir de visões culturais diferentes, de celebração, de inter-relacionamento e de reavivamento da esperança»[42]. Culturas ameaçadas, povos em risco.  39. A economia globalizada danifica despudoradamente a riqueza humana, social e cultural. A desintegração das famílias, que resulta das migrações forçadas, afeta a transmissão dos valores, porque «a família é, e sempre foi, a instituição social que mais contribuiu para manter vivas as nossas culturas»[43]. Além disso, «diante duma invasão colonizadora maciça dos meios de comunicação», é necessário promover para os povos nativos «comunicações alternativas, a partir das suas próprias línguas e culturas», e que «os próprios indígenas se façam protagonistas presentes nos meios de comunicação já existentes»[44]. 40. Em qualquer projeto para a Amazônia, «é preciso assumir a perspectiva dos direitos dos povos e das culturas, dando assim provas de compreender que o desenvolvimento dum grupo social (...) requer constantemente o protagonismo dos atores sociais locais a partir da sua própria cultura. Nem mesmo a noção da qualidade de vida se pode impor, mas deve ser entendida dentro do mundo de símbolos e hábitos próprios de cada grupo humano»[45]. E se as culturas ancestrais dos povos nativos nasceram e se desenvolveram em estreito contato com o ambiente natural circundante, dificilmente podem ficar ilesas quando se deteriora este ambiente. Isto abre passagem ao sonho sucessivo (...). www.vatican.va. Abraço. Davi

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