Religião
Afro-brasileira. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Tradução de Maria
Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018). Capítulo II. O ESPAÇO E O TEMPLO SAGRADO
II. A ilé-orixá é muito mais vasta, pois se estende sobre a quase totalidade do
terreiro, e se decompõe num certo número de habitações ou de aposentos, tendo,
cada um, função bem diferenciada. A ilé-orixá é antes de mais nada um templo, e
como tal guarda todos os objetos em que as divindades se fixaram: pedras,
pedaços de ferro, tambores, etc. Mas é também um convento onde são iniciadas,
onde são formadas as yauô, e onde as yauô, uma vez "feitas", encarnam
as divindades nas danças públicas. Finalmente, como é necessária uma certa
quantidade de pessoal para vigiar, cuidar, controlar templo e convento, a
ilé-orixá é ao mesmo tempo moradia. Podemos deixar de lado este último aspecto,
embora certas salas da moradia não deixem de desempenhar seu papel na vida
mística da ilé-orixá. A cozinha, por exemplo, onde são preparados os alimentos
tanto dos deuses quanto dos homens, ou ainda a sala de visitas, que muitas
vezes está cheia de clientes, à espera de um conselho ou de uma ordem do
babalorixá ou da ialorixá. O convento compreende a aliaché, isto é, o aposento
em que se faz a iniciação, e o salão de danças, que é naturalmente o mais
espaçoso de todo o edifício. O salão está dividido em dois por uma balaustrada,
que delimita a localização de dançarinos e dançarinas. Atrás dela se colocam os
espectadores, os homens de um lado e as mulheres do outro. Finalmente, num
canto, sobre pequeno estrado, a música. Como já indicamos, distinguem-se no
templo os Orixá do ar livre e os outros Orixá. Os primeiros, Omolú, Ogun,
Oxossi, têm seus santuários separados do corpo do edifício. Os outros vivem num
ou em vários aposentos da casa principal; mas, esteja o quarto do Orixá no
interior ou no exterior da casa, seja-lhe ou não dado um nome especial (sala do
trono de Xangô, sala do tanque de Yemanjá (...), todos são pegi. Ali se
encontram, em travessas ou em pratos, as pedras "feitas", com os
alimentos que lhe foram oferecidos, tudo recoberto por toalhas bordadas, as
insígnias das divindades, e às vezes esculturas africanas ou imagens de santos
católicos. As vestes litúrgicas das yauô estão quase sempre guardadas no
interior de baús ou de armários, na parte da ilé-oríxá consagrada à habitação.
Os tambores, nos intervalos que separam as cerimônias, permanecem cobertos por
suas ojas. Tais são os elementos indispensáveis de todos os candomblés. Mas
muitos deles possuem também uma fonte sagrada onde as filhas de santo vão tomar
seus banhos, de onde se tira a água para a lavagem das pedras, e que se dá a
beber como um teste de "pureza do corpo" (se a pessoa manteve
relações sexuais na noite anterior, a água fá-la adoecer). Estas fontes têm
nomes diferentes, conforme a divindade que as protege: fonte de Oxun, água de
Xangô, bica de Oxalá (...). Vê-se também muitas vezes, nas moitas emaranhadas,
uma ou duas árvores cujos galhos trazem pendurados pedaços de pano branco
chamados ofa, e ao pé dos quais se encontram garrafas, pratos, recipientes de
toda espécie. Uma dessas árvores, gameleira branca (ficus doliaria, religiosa?)
é identificada com o Irocô, a árvore sagrada dos africanos. É preparada
exatamente como se prepara uma pedra ou uma filha de santo, isto é, fixando-se
dentro dela a divindade; daí por diante toma-se objeto de culto, não pode mais
ser tocada por ninguém, e se lhe cortassem os galhos, deles correria sangue. No
Recife mais particularmente, nalgumas festas, cânticos são algumas vezes
entoados em sua honra. Mas não tem filhos, não monta nenhum cavalo. Não se deve
confundir estas árvores sagradas com as dos terreiros bantos, que constituem as
suas ilé-saim: as almas das filhas de santo mortas vêm habitar em seus ramos
(de onde talvez se desprendam para entrar no ventre de uma mulher que passa e
continuar, assim, o ciclo das reencarnações, como sucede na África). O espaço
sagrado é, pois, espaço fechado entre os muros ou os limites do terreiro.
Todavia, fora dos candomblés existem outros lugares que os africanos também
consideram sagrados. Por exemplo, no tempo de Raimundo Nina Rodrigues
(1862-1906), a "pedra de Ogun" se encontrava num município vizinho ao
da capital. De forma de paralelepípedo irregular e colocada na encosta de um
vale, à margem da estrada, a pedra tem a face voltada para o sul, enterrada no
solo até quase o meio, mas a face norte, com mais de dois metros de altura,
está toda descoberta. A pedra tem mais de três metros de comprimento e
apresenta na face norte uma escavação ou entalhe natural que se estende até à
face superior. Sobre esta pedra encontram-se de contínuo vestígios ou restos de
sacrifícios, sangue, penas de aves, conchas marinhas, etc. A primeira vez que
fui visitá-la, fiquei surpreendido de encontrar sobre a pedra um bom punhal,
dentro de uma bainha de couro (...). Os laivos de ferrugem que se começavam a
formar indicavam bem que ali tinha sido deposto havia poucos dias ainda (...).
O punhal pertencia a um negro casado que tentara assassinar com ele a própria
esposa e fora ali colocado por ordem de Ogun. Que naqueles dias se tinha
manifestado à mãe do terreiro. Na Bahia mesmo, existe ainda a pedra de
Oxunmarê, perto do mar, que apresenta anfractuosidade semelhante a uma pia de
água benta. As jovens mães ali vão para de certo modo batizar os filhos, a
concavidade estando sempre cheia d'água de chuva e das misturadas. Sinal feliz
é nesse momento aparecer no céu um arco-íris: Oxunmarê está abençoando a
criança que lhe apresentam. Os cultos de Yemanjá e de Oxun, deusas água salgada
e da água doce, reclamam principalmente oferendas atiradas na margem ou de uma
barca em alto mar. Os presentes, - sabões, água de colônia, flores,
espelhinhos, pentes. Pois ambas as divindades são igualmente vaidosas, dão
lugar a procissões solenes como as organizadas por Joana de Ogun, ou a grandes
festas populares, como a do "presente de Yemanjá". Neste último caso,
o barco que se afasta da praia para levar o "presente" para longe, no
meio do oceano, é verdadeiro candomblé marítimo, com as filhas de santo, os
tambores, em torno do enorme cesto cheio de presentes doados pelos fiéis.
Todavia, não é qualquer ponto da praia que pode ser utilizado para tais
manifestações; há lugares privilegiados, como o Dique, Montserrat, a praia do
Rio Vermelho, etc. Não há, portanto, contradição, entre o que acabamos de dizer
e a afirmação anterior de que o espaço sagrado é o espaço delimitando
unicamente o candomblé. Efetivamente, os lugares profanos só revestem um
aspecto religioso na medida em que se tornam um prolongamento exterior do
terreiro. O texto de Nina Rodrigues, citado, mostra bem que a pedra de Ogun
estava ligada a um santuário vizinho e que uma ialorixá cuidava dela. A pedra
de Oxunmarê está também em relação estreita com a vida das seitas africanas e,
no dia 24 de agosto, é ali celebrada uma festa que Edison Carneiro chama de
"festa da purificação". Quanto às festas de Oxun ou de Yemanjá, estão
sempre organizadas, controladas e dirigidas por um candomblé determinado; e o
mar ou o lago não se tornam sagrados senão unicamente no local por onde passa o
candomblé, e apenas enquanto dura a cerimônia. Foi por isso que, por ocasião da
festa dos presentes, a 2 de fevereiro, um de nossos amigos negros fez-nos tirar
os sapatos para banhar os pés no vaivém das ondas. Sendo que várias pessoas tinham
trazido garrafas vazias para guardar um pouco da água cortada pela esteira do
barco, pois ela possuía toda a espécie de virtudes curativas e profiláticas.
Mas no dia seguinte, nesse mesmo lugar, a água não era mais do que água salgada
comum. Não podíamos encontrar melhor prova de que somente o espaço do candomblé
é realmente o espaço sagrado, e que os outros espaços não adquirem caráter
místico senão na medida em que se puserem, de uma maneira ou de outra, em
participação com o primeiro. Mas este espaço sagrado será também um espaço
mítico? A construção do templo lembraria a criação do mundo? Representa o
presente os gestos das divindades antigas? Pode parecer que não à primeira
vista. As casas dispersas no terreiro são casebres de sapé ou de tijolos, como
todas as da Bahia, quadrangulares em vez de arredondadas, e que nada têm de
africano. O homem se adaptou a seu novo meio geográfico e cultural; pediu
emprestado ao branco as técnicas dos pedreiros, a planta das habitações.
Todavia, desde nossa primeira viagem à Bahia, ficamos vivamente impressionados
por um traço arquitetural que ninguém tinha ainda assinalado. A existência, no
meio do salão de dança, de um poste central. Este poste não podia ter função
arquitetônica, não era suporte do teto uma vez que não existia nos terreiros
bantos, fosse qual fosse a dimensão das salas de dança, E pelo menos num caso,
no candomblé de Oxunmarê, não ia até o teto. Por outro lado, tinha função
ritual evidente; era em torno dele que giravam as filhas de santo em suas rodas
extáticas, e era também a seus pés que, nas cerimônias mortuárias ou axêxê, se
depositavam os pratos de oferenda, os potes de barro da morta, os pratos
contendo farinha ou dinheiro miúdo. Um estudo comparativo levou-nos a encontrar
este poste noutras regiões aa América, também atingidas pela civilização
africana. No Brasil mesmo, é encontrado ainda no Piauí, como um dos raros
traços africanos conservados no interior de uma religião que sofreu fortes
influências ameríndias. No Haiti, eleva-se também um pilar, chamado poteaumitan
no centro do terraço descoberto em que se desenrolam as danças, e em seu pé são
desenhados os vêvê. São depostos os objetos sagrados, são saudados os deuses;
em torno dele gira também a roda das vodun-si. Este poste, cercado de vasos de
flores e de velas, entrou até no culto protestante de Trinidad. Para que
semelhante traço de arquitetura se tenha conservado com tal força, a ponto de
se introduzir em seitas tão pouco tradicionais quanto a dos
"Encantados", do Piauí, ou a dos "Hurleurs" de Trinidad. É
preciso que corresponda a algo de muito importante. Com efeito, é ao pé deste
pilar que se enterra, na Bahia, o axé do terreiro. Contudo, sua importância não
deriva daí, tal fato não constitui senão consequência da importância dele. É porque
o pilar representa algo simbolicamente extraordinário que foi escolhido como o
lugar onde se vai depositar o axé da consagração. Jacques Roumain (1907-1944)
cita um cântico dirigido a Lôko, isto é, à mesma divindade que nosso Irôko
brasileiro (Lôko é seu nome dahomeano), no qual se encontra o seguinte verso:
Eya I poteau-a planté Negue Atísou. O termo "poteau" não pode
designar aqui senão o Lôko, uma vez gue na cerimônia descrita não se menciona
ainda o poteau-mitan. O poteau-mitan só aparece no fim, no momento do
sacrifício ao Tambor Assoto. Cava-se então um buraco no solo e nele se finca
uma estaca, entoando: Eeh ! plantez poteau Plantez poteau (bis) Eeh I plantez
poteau Assôtô Micho planté poteau li Eeh I plantez poteau Abobo (ter) . Eeh I
plantez Ie poteau Plantez Ie poteau (bis) Eeh I plantez le poteau Assotô Micho
a planté son poteau Eeh ! plantez le poteau Abobo (ter). Pode-se perguntar
então se o poste não seria simplesmente a imagem, em pedra, da árvore Irôko.
Mas também se pode supor que Irôko é sagrado porque seu tronco venerável lembra
o poste central. Tanto mais que no Haiti a mitologia tradicional se desagregou
completamente e que o vodoun se tornou ali um culto nacional, muito mais do que
a conservação de pura sobrevivência africana. A ligação entre o poste e a
árvore pode ser válida, mas nada informa sobre seu sentido. Se vai da árvore
para o poste, ou ao contrário do poste para a árvore. Devemos, pois, reiniciar
inteiramente a busca. Sabe-se que entre os Yoruba, o casal divino primitivo é
constituído por Obatalá, o Céu, e Odudua, a Terra, e que dá união do Céu e da
Terra nascem Aganjou, o Firmamento, e Yemanjá, as Águas. Sabe-se- também que
este casal em cópula é representado por duas metades de cabaça, fechadas uma
sobre a outra, uma figurando a abóbada celeste, a outra a terra fecundada,
cabaça sagrada chamada igba. Porém algumas vezes esta cabaça é indicada como
símbolo de Oxalá, e então estamos mais próximos do Brasil. Oxalá é considerado
hermafrodita, isto é, sua metade superior é masculina, e a inferior feminina.
Frobenius comparou longamente mito e certos objetos africanos, com
representações similares de povos asiáticos. Assim como com objetos
arqueológicos, para chegar a esta conclusão geral que, por sua vez, pode
atingir a plenitude de seu significado neste trabalho: "O templum é a
imagem refletida do cosmos. O homem deve ter representado com emoção neste
palco, a peça da eclíptica, da cópula do céu com a terra, da ascensão do
céu!" E um pouco mais adiante: "O palco da peça tornou-se imagem do
mundo e formou um edifício complicado. O grande poste central serviu de suporte
para a cadeia dos antepassados, o frontispício passou a apresentar a imagem do
astro, enquanto os quatro pilares de sustentação tornaram-se os pilares do céu"
(estes quatro pilares não são mais do que o sinal dos quatro pontos cardeais. É
pena que Ferdinand Georg Frobenius (1749-1917) tenha complicado sua teoria,
mascarando assim o valor de uma intuição justa, a concepção de "desempenho
teatral". Mas pelo menos podemos reter a ligação cosmos-templum como ponto
de partida de nossa interpretação. Com efeito, nota Raimundo Nina Rodrigues,
justamente a respeito do caráter andrógino de Obatalá (o outro nome de Oxalá na
Bahia). E apesar de seus preconceitos raciais: "A representação desta
divindade (...) por duas meias cabaças cortadas em forma de prato ou de cuia
rasa e superpostas uma à outra para simbolizar o Céu, Obatalá, e a Terra,
Odudua, tocando-se no horizonte. Já pela justaposição dos dois órgãos da
geração em funcionamento (...) todas estas representações que Ellis mencionava
na Costa dos Escravos, eu encontro aqui na Bahia. Onde de ordinário as cuias ou
pratos de cabaça pintados de branco são substituídos por uma tigela de louça
branca, de tampa, contendo, como descrevi, limo da Costa, vindo da África,
cawries e um arco de metal". De fato, tudo no candomblé é símbolo ou
imagem. A adaptação às novidades ocidentais, ao tipo de construção, ou, como
neste caso, à cerâmica europeia, não impedem o respeito pelas normas míticas
que asseguram o valor religioso dos objetos utilizados. E este reflexo do
divino, em funcionamento aqui, tornamos a encontrá-lo nos menores e nos maiores
detalhes. Nos utensílios do culto, nos instrumentos de música, na construção da
ilé-orixá. A cabaça dupla continua a ser a representação de Obatalá, ainda
quando as duas metades são substituídas por uma espécie de sopeira com tampa.
Em Cuba, a mesma metamorfose tem lugar, e do mesmo modo. Todavia, a cabaça
reaparece como imagem do mundo num instrumento de música que já descrevi
brevemente noutro trabalho e que só é utilizado nas cerimônias fúnebres. Este
instrumento é encontrado também em Cuba, onde foi particularmente bem estudado
por Fernando Ortiz Fernandez (1881-1969). Ora, basta comparar este instrumento
musical com a imagem do mundo, tal qual Bernard Maupoil (1906-1944) a desenhou
em sua Geomancie à l'ancienne Côte des Esclaves. Ou com o desenho de Dennet,
para perceber a identidade entre o instrumento, a concepção do mundo e a dupla
cabaça de Obatalá. O que pode parecer curioso é que a cabaça de Obatalá, deus
da criação, seja utilizada num rito fúnebre. Mas, pode-se perguntar se o axêxê
não seria também uma criação, a criação do Egun, do mesmo modo que a iniciação,
como vimos, é considerada como uma criação. E por isso mesmo posta sob o signo
de Oxalá. Além disso, outra razão mais simples ainda seria lembrar que a água
que cerca por todos os lados a superfície da terra habitada e a separa do céu
na linha do horizonte, é considerada moradia dos mortos. O que nos interessa,
porém, é o fato de Céu e Terra se tocarem, reunidos, colados pelos bordos das
duas cuias. Efetuam uma união matrimonial e a mesma representação do mundo pode
ser feita por intermédio dos órgãos da reprodução. Os santuários africanos
muitas vezes não têm teto, é o céu que lhes forma a abóbada, mas compreendem,
entre outros elementos arquitetônicos, os postes; estes são chamados pelo povo
de bastão de Oranyan, e, pelos sacerdotes, Opa Oranyan, isto é, pênis de
Oranyam. Iniciar na página 100. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Abraço.
Davi
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