quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

O ESPAÇO E O TEMPLO SAGRADO II


Religião Afro-brasileira. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Tradução de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018). Capítulo II. O ESPAÇO E O TEMPLO SAGRADO II. A ilé-orixá é muito mais vasta, pois se estende sobre a quase totalidade do terreiro, e se decompõe num certo número de habitações ou de aposentos, tendo, cada um, função bem diferenciada. A ilé-orixá é antes de mais nada um templo, e como tal guarda todos os objetos em que as divindades se fixaram: pedras, pedaços de ferro, tambores, etc. Mas é também um convento onde são iniciadas, onde são formadas as yauô, e onde as yauô, uma vez "feitas", encarnam as divindades nas danças públicas. Finalmente, como é necessária uma certa quantidade de pessoal para vigiar, cuidar, controlar templo e convento, a ilé-orixá é ao mesmo tempo moradia. Podemos deixar de lado este último aspecto, embora certas salas da moradia não deixem de desempenhar seu papel na vida mística da ilé-orixá. A cozinha, por exemplo, onde são preparados os alimentos tanto dos deuses quanto dos homens, ou ainda a sala de visitas, que muitas vezes está cheia de clientes, à espera de um conselho ou de uma ordem do babalorixá ou da ialorixá. O convento compreende a aliaché, isto é, o aposento em que se faz a iniciação, e o salão de danças, que é naturalmente o mais espaçoso de todo o edifício. O salão está dividido em dois por uma balaustrada, que delimita a localização de dançarinos e dançarinas. Atrás dela se colocam os espectadores, os homens de um lado e as mulheres do outro. Finalmente, num canto, sobre pequeno estrado, a música. Como já indicamos, distinguem-se no templo os Orixá do ar livre e os outros Orixá. Os primeiros, Omolú, Ogun, Oxossi, têm seus santuários separados do corpo do edifício. Os outros vivem num ou em vários aposentos da casa principal; mas, esteja o quarto do Orixá no interior ou no exterior da casa, seja-lhe ou não dado um nome especial (sala do trono de Xangô, sala do tanque de Yemanjá (...), todos são pegi. Ali se encontram, em travessas ou em pratos, as pedras "feitas", com os alimentos que lhe foram oferecidos, tudo recoberto por toalhas bordadas, as insígnias das divindades, e às vezes esculturas africanas ou imagens de santos católicos. As vestes litúrgicas das yauô estão quase sempre guardadas no interior de baús ou de armários, na parte da ilé-oríxá consagrada à habitação. Os tambores, nos intervalos que separam as cerimônias, permanecem cobertos por suas ojas. Tais são os elementos indispensáveis de todos os candomblés. Mas muitos deles possuem também uma fonte sagrada onde as filhas de santo vão tomar seus banhos, de onde se tira a água para a lavagem das pedras, e que se dá a beber como um teste de "pureza do corpo" (se a pessoa manteve relações sexuais na noite anterior, a água fá-la adoecer). Estas fontes têm nomes diferentes, conforme a divindade que as protege: fonte de Oxun, água de Xangô, bica de Oxalá (...). Vê-se também muitas vezes, nas moitas emaranhadas, uma ou duas árvores cujos galhos trazem pendurados pedaços de pano branco chamados ofa, e ao pé dos quais se encontram garrafas, pratos, recipientes de toda espécie. Uma dessas árvores, gameleira branca (ficus doliaria, religiosa?) é identificada com o Irocô, a árvore sagrada dos africanos. É preparada exatamente como se prepara uma pedra ou uma filha de santo, isto é, fixando-se dentro dela a divindade; daí por diante toma-se objeto de culto, não pode mais ser tocada por ninguém, e se lhe cortassem os galhos, deles correria sangue. No Recife mais particularmente, nalgumas festas, cânticos são algumas vezes entoados em sua honra. Mas não tem filhos, não monta nenhum cavalo. Não se deve confundir estas árvores sagradas com as dos terreiros bantos, que constituem as suas ilé-saim: as almas das filhas de santo mortas vêm habitar em seus ramos (de onde talvez se desprendam para entrar no ventre de uma mulher que passa e continuar, assim, o ciclo das reencarnações, como sucede na África). O espaço sagrado é, pois, espaço fechado entre os muros ou os limites do terreiro. Todavia, fora dos candomblés existem outros lugares que os africanos também consideram sagrados. Por exemplo, no tempo de Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), a "pedra de Ogun" se encontrava num município vizinho ao da capital. De forma de paralelepípedo irregular e colocada na encosta de um vale, à margem da estrada, a pedra tem a face voltada para o sul, enterrada no solo até quase o meio, mas a face norte, com mais de dois metros de altura, está toda descoberta. A pedra tem mais de três metros de comprimento e apresenta na face norte uma escavação ou entalhe natural que se estende até à face superior. Sobre esta pedra encontram-se de contínuo vestígios ou restos de sacrifícios, sangue, penas de aves, conchas marinhas, etc. A primeira vez que fui visitá-la, fiquei surpreendido de encontrar sobre a pedra um bom punhal, dentro de uma bainha de couro (...). Os laivos de ferrugem que se começavam a formar indicavam bem que ali tinha sido deposto havia poucos dias ainda (...). O punhal pertencia a um negro casado que tentara assassinar com ele a própria esposa e fora ali colocado por ordem de Ogun. Que naqueles dias se tinha manifestado à mãe do terreiro. Na Bahia mesmo, existe ainda a pedra de Oxunmarê, perto do mar, que apresenta anfractuosidade semelhante a uma pia de água benta. As jovens mães ali vão para de certo modo batizar os filhos, a concavidade estando sempre cheia d'água de chuva e das misturadas. Sinal feliz é nesse momento aparecer no céu um arco-íris: Oxunmarê está abençoando a criança que lhe apresentam. Os cultos de Yemanjá e de Oxun, deusas água salgada e da água doce, reclamam principalmente oferendas atiradas na margem ou de uma barca em alto mar. Os presentes, - sabões, água de colônia, flores, espelhinhos, pentes. Pois ambas as divindades são igualmente vaidosas, dão lugar a procissões solenes como as organizadas por Joana de Ogun, ou a grandes festas populares, como a do "presente de Yemanjá". Neste último caso, o barco que se afasta da praia para levar o "presente" para longe, no meio do oceano, é verdadeiro candomblé marítimo, com as filhas de santo, os tambores, em torno do enorme cesto cheio de presentes doados pelos fiéis. Todavia, não é qualquer ponto da praia que pode ser utilizado para tais manifestações; há lugares privilegiados, como o Dique, Montserrat, a praia do Rio Vermelho, etc. Não há, portanto, contradição, entre o que acabamos de dizer e a afirmação anterior de que o espaço sagrado é o espaço delimitando unicamente o candomblé. Efetivamente, os lugares profanos só revestem um aspecto religioso na medida em que se tornam um prolongamento exterior do terreiro. O texto de Nina Rodrigues, citado, mostra bem que a pedra de Ogun estava ligada a um santuário vizinho e que uma ialorixá cuidava dela. A pedra de Oxunmarê está também em relação estreita com a vida das seitas africanas e, no dia 24 de agosto, é ali celebrada uma festa que Edison Carneiro chama de "festa da purificação". Quanto às festas de Oxun ou de Yemanjá, estão sempre organizadas, controladas e dirigidas por um candomblé determinado; e o mar ou o lago não se tornam sagrados senão unicamente no local por onde passa o candomblé, e apenas enquanto dura a cerimônia. Foi por isso que, por ocasião da festa dos presentes, a 2 de fevereiro, um de nossos amigos negros fez-nos tirar os sapatos para banhar os pés no vaivém das ondas. Sendo que várias pessoas tinham trazido garrafas vazias para guardar um pouco da água cortada pela esteira do barco, pois ela possuía toda a espécie de virtudes curativas e profiláticas. Mas no dia seguinte, nesse mesmo lugar, a água não era mais do que água salgada comum. Não podíamos encontrar melhor prova de que somente o espaço do candomblé é realmente o espaço sagrado, e que os outros espaços não adquirem caráter místico senão na medida em que se puserem, de uma maneira ou de outra, em participação com o primeiro. Mas este espaço sagrado será também um espaço mítico? A construção do templo lembraria a criação do mundo? Representa o presente os gestos das divindades antigas? Pode parecer que não à primeira vista. As casas dispersas no terreiro são casebres de sapé ou de tijolos, como todas as da Bahia, quadrangulares em vez de arredondadas, e que nada têm de africano. O homem se adaptou a seu novo meio geográfico e cultural; pediu emprestado ao branco as técnicas dos pedreiros, a planta das habitações. Todavia, desde nossa primeira viagem à Bahia, ficamos vivamente impressionados por um traço arquitetural que ninguém tinha ainda assinalado. A existência, no meio do salão de dança, de um poste central. Este poste não podia ter função arquitetônica, não era suporte do teto uma vez que não existia nos terreiros bantos, fosse qual fosse a dimensão das salas de dança, E pelo menos num caso, no candomblé de Oxunmarê, não ia até o teto. Por outro lado, tinha função ritual evidente; era em torno dele que giravam as filhas de santo em suas rodas extáticas, e era também a seus pés que, nas cerimônias mortuárias ou axêxê, se depositavam os pratos de oferenda, os potes de barro da morta, os pratos contendo farinha ou dinheiro miúdo. Um estudo comparativo levou-nos a encontrar este poste noutras regiões aa América, também atingidas pela civilização africana. No Brasil mesmo, é encontrado ainda no Piauí, como um dos raros traços africanos conservados no interior de uma religião que sofreu fortes influências ameríndias. No Haiti, eleva-se também um pilar, chamado poteaumitan no centro do terraço descoberto em que se desenrolam as danças, e em seu pé são desenhados os vêvê. São depostos os objetos sagrados, são saudados os deuses; em torno dele gira também a roda das vodun-si. Este poste, cercado de vasos de flores e de velas, entrou até no culto protestante de Trinidad. Para que semelhante traço de arquitetura se tenha conservado com tal força, a ponto de se introduzir em seitas tão pouco tradicionais quanto a dos "Encantados", do Piauí, ou a dos "Hurleurs" de Trinidad. É preciso que corresponda a algo de muito importante. Com efeito, é ao pé deste pilar que se enterra, na Bahia, o axé do terreiro. Contudo, sua importância não deriva daí, tal fato não constitui senão consequência da importância dele. É porque o pilar representa algo simbolicamente extraordinário que foi escolhido como o lugar onde se vai depositar o axé da consagração. Jacques Roumain (1907-1944) cita um cântico dirigido a Lôko, isto é, à mesma divindade que nosso Irôko brasileiro (Lôko é seu nome dahomeano), no qual se encontra o seguinte verso: Eya I poteau-a planté Negue Atísou. O termo "poteau" não pode designar aqui senão o Lôko, uma vez gue na cerimônia descrita não se menciona ainda o poteau-mitan. O poteau-mitan só aparece no fim, no momento do sacrifício ao Tambor Assoto. Cava-se então um buraco no solo e nele se finca uma estaca, entoando: Eeh ! plantez poteau Plantez poteau (bis) Eeh I plantez poteau Assôtô Micho planté poteau li Eeh I plantez poteau Abobo (ter) . Eeh I plantez Ie poteau Plantez Ie poteau (bis) Eeh I plantez le poteau Assotô Micho a planté son poteau Eeh ! plantez le poteau Abobo (ter). Pode-se perguntar então se o poste não seria simplesmente a imagem, em pedra, da árvore Irôko. Mas também se pode supor que Irôko é sagrado porque seu tronco venerável lembra o poste central. Tanto mais que no Haiti a mitologia tradicional se desagregou completamente e que o vodoun se tornou ali um culto nacional, muito mais do que a conservação de pura sobrevivência africana. A ligação entre o poste e a árvore pode ser válida, mas nada informa sobre seu sentido. Se vai da árvore para o poste, ou ao contrário do poste para a árvore. Devemos, pois, reiniciar inteiramente a busca. Sabe-se que entre os Yoruba, o casal divino primitivo é constituído por Obatalá, o Céu, e Odudua, a Terra, e que dá união do Céu e da Terra nascem Aganjou, o Firmamento, e Yemanjá, as Águas. Sabe-se- também que este casal em cópula é representado por duas metades de cabaça, fechadas uma sobre a outra, uma figurando a abóbada celeste, a outra a terra fecundada, cabaça sagrada chamada igba. Porém algumas vezes esta cabaça é indicada como símbolo de Oxalá, e então estamos mais próximos do Brasil. Oxalá é considerado hermafrodita, isto é, sua metade superior é masculina, e a inferior feminina. Frobenius comparou longamente mito e certos objetos africanos, com representações similares de povos asiáticos. Assim como com objetos arqueológicos, para chegar a esta conclusão geral que, por sua vez, pode atingir a plenitude de seu significado neste trabalho: "O templum é a imagem refletida do cosmos. O homem deve ter representado com emoção neste palco, a peça da eclíptica, da cópula do céu com a terra, da ascensão do céu!" E um pouco mais adiante: "O palco da peça tornou-se imagem do mundo e formou um edifício complicado. O grande poste central serviu de suporte para a cadeia dos antepassados, o frontispício passou a apresentar a imagem do astro, enquanto os quatro pilares de sustentação tornaram-se os pilares do céu" (estes quatro pilares não são mais do que o sinal dos quatro pontos cardeais. É pena que Ferdinand Georg Frobenius (1749-1917) tenha complicado sua teoria, mascarando assim o valor de uma intuição justa, a concepção de "desempenho teatral". Mas pelo menos podemos reter a ligação cosmos-templum como ponto de partida de nossa interpretação. Com efeito, nota Raimundo Nina Rodrigues, justamente a respeito do caráter andrógino de Obatalá (o outro nome de Oxalá na Bahia). E apesar de seus preconceitos raciais: "A representação desta divindade (...) por duas meias cabaças cortadas em forma de prato ou de cuia rasa e superpostas uma à outra para simbolizar o Céu, Obatalá, e a Terra, Odudua, tocando-se no horizonte. Já pela justaposição dos dois órgãos da geração em funcionamento (...) todas estas representações que Ellis mencionava na Costa dos Escravos, eu encontro aqui na Bahia. Onde de ordinário as cuias ou pratos de cabaça pintados de branco são substituídos por uma tigela de louça branca, de tampa, contendo, como descrevi, limo da Costa, vindo da África, cawries e um arco de metal". De fato, tudo no candomblé é símbolo ou imagem. A adaptação às novidades ocidentais, ao tipo de construção, ou, como neste caso, à cerâmica europeia, não impedem o respeito pelas normas míticas que asseguram o valor religioso dos objetos utilizados. E este reflexo do divino, em funcionamento aqui, tornamos a encontrá-lo nos menores e nos maiores detalhes. Nos utensílios do culto, nos instrumentos de música, na construção da ilé-orixá. A cabaça dupla continua a ser a representação de Obatalá, ainda quando as duas metades são substituídas por uma espécie de sopeira com tampa. Em Cuba, a mesma metamorfose tem lugar, e do mesmo modo. Todavia, a cabaça reaparece como imagem do mundo num instrumento de música que já descrevi brevemente noutro trabalho e que só é utilizado nas cerimônias fúnebres. Este instrumento é encontrado também em Cuba, onde foi particularmente bem estudado por Fernando Ortiz Fernandez (1881-1969). Ora, basta comparar este instrumento musical com a imagem do mundo, tal qual Bernard Maupoil (1906-1944) a desenhou em sua Geomancie à l'ancienne Côte des Esclaves. Ou com o desenho de Dennet, para perceber a identidade entre o instrumento, a concepção do mundo e a dupla cabaça de Obatalá. O que pode parecer curioso é que a cabaça de Obatalá, deus da criação, seja utilizada num rito fúnebre. Mas, pode-se perguntar se o axêxê não seria também uma criação, a criação do Egun, do mesmo modo que a iniciação, como vimos, é considerada como uma criação. E por isso mesmo posta sob o signo de Oxalá. Além disso, outra razão mais simples ainda seria lembrar que a água que cerca por todos os lados a superfície da terra habitada e a separa do céu na linha do horizonte, é considerada moradia dos mortos. O que nos interessa, porém, é o fato de Céu e Terra se tocarem, reunidos, colados pelos bordos das duas cuias. Efetuam uma união matrimonial e a mesma representação do mundo pode ser feita por intermédio dos órgãos da reprodução. Os santuários africanos muitas vezes não têm teto, é o céu que lhes forma a abóbada, mas compreendem, entre outros elementos arquitetônicos, os postes; estes são chamados pelo povo de bastão de Oranyan, e, pelos sacerdotes, Opa Oranyan, isto é, pênis de Oranyam. Iniciar na página 100. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Abraço. Davi

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