Religião
Afro-brasileira. Candomblé. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Tradução de
Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018). Capítulo II. O ESPAÇO E O TEMPLO
SAGRADOS I. Vimos, com efeito, que os ritos de entrada necessitam, como
condição prévia, a consulta ao colar de lfa ou aos búzios. Vimos que um dos
momentos mais importantes da iniciação é a lavagem da cabeça com o banho de
ervas. E finalmente que após a morte, o Egun se fixa num santuário especial, no
qual daí por diante pode ser invocado. Tudo isto escapa ao babalorixá ou à
ialorixá e é da competência de sacerdotes especiais, babalaô, colhedores de
ervas, evocadores de mortos, aos quais vários candomblés diferentes podem
apelar. Os babalaô têm sido, segundo julgamos, muito negligenciados. Neste
trabalho restituímos, pois, a eles o lugar de primeira plana que merecem.
Examinando o mundo dos candomblés unicamente através dos candomblés, corre-se
com efeito o risco de deixar escapar o que é para nós essencial: a estrutura da
civilização africana. Ora, entre as estruturas mentais e as estruturas
sociológicas, a correspondência é estreita. Os candomblés podem perfeitamente estar
separados ou serem rivais. Estão ligados entre si por uma mesma realidade de
que participam todos, a da civilização africana. É este o vínculo que nos
interessa; os babalaô, os sacerdotes dos Osain, ou dos Egun, exprimem esta
comunidade de crenças e de mentalidade por estarem, na maior parte das vezes,
sobrepostos a várias seitas. Já no capítulo inicial de apresentação, como se
pôde notar, não descrevemos o candomblé como instituição. E sim, como sistema
de participações (a instituição não constituindo, segundo pensamos, senão a
cristalização de todo um conjunto de participações entre os homens, as coisas e
os Orixá). Isto é, desde o início o encaramos em termos de civilização e de
metafísica africanas. "O negro de Cuba guarda com espantosa tenacidade a crença
na espiritualidade da floresta", escreve Lydia Cabrera (1899-1991),
iniciando seu livro El Monte Igbo Finda. E cita a propósito toda uma série de
testemunhos característicos da boca dos velhos negros daquela região: "Os
Santos estão mais na floresta do que no céu". "Os Santos nascem na
floresta e nossa religião também nasce na floresta". "Lá residem os
Orishas, Elegguá, Oggun, Ochosi, Oko, Ayé, Chantô, Alláguna. E os Eggun, - os
mortos, Eléko, Ikús, Ibbayés". Citamos estes textos porque provêm de uma região
em que, como na Bahia, o culto dos Orixá se conservou. Indicam com perfeita
nitidez a mesma oposição entre floresta selvagem e cidade civilizada, que André
Varagnac (1894-1983) descobre no folclore europeu, entre o bosque sagrado onde
vivem fadas e mortos, e os campos cultivados que se apertam em torno da aldeia.
Encontramos no Brasil, oposição análoga e teremos de voltar a ela quando
falarmos da colheita das ervas. Mas apesar de tudo uma diferença radical existe
entre Cuba e a Bahia. Aqui os Orixá não vivem no mato ou na floresta. Vivem
sempre na África, na terra longínqua de onde foram arrancados os escravos para
serem trazidos à força para as Américas. E que chamam de Itú Aigé (ou iú aô), a
"terra da vida". E de lá que vêm, atraídos pelo sangue dos
sacrifícios ou pelo toque dos tambores, seja para comer, seja para dançar
encarnados no corpo amoroso de suas filhas. Cada divindade foi sem dúvida
"fixada", como vimos, em pedras, em pedaços de ferro, na cabeça de
seus filhos, e isso por meio de ritos especiais. Mas a divindade ela mesma,
esta reside no país de seus antepassados. Encontrei até num terreiro o mito
simbólico de uma árvore cujas raízes atravessariam o oceano para unir os dois
mundos. Seria ao longo de tais raízes que viriam os Orixá, ao serem chamados.
Do mesmo modo, as almas dos mortos, embora "fixadas" também num
santuário contíguo ao candomblé, deixam o Brasil depois do enterro para se
juntarem à grande legião dos espíritos ancestrais. O suicídio de negros
escravos não tinha, muitas vezes, senão esta causa. É a hipótese formulada por
Jakob von Tschudi (1818-1889) para explicar um fato que não deixava de
espantá-lo, o número muito maior de suicídios nas fazendas dos "senhores
bons" do que nas dos senhores cruéis. O que para Tschudi não passava de
hipótese, é confirmado por d'Assier, que nos traz, neste ponto, o testemunho
oral dos próprios escravos: "para voltar o mais depressa possível à nossa
terra". Assim, a primeira oposição entre sagrado e profano é a oposição
entre África e Brasil. Por conseguinte, o sagrado não poderá existir na Bahia
como nas outras cidades brasileiras senão na medida em que a África for
previamente transportada de um para outro lado do oceano. É a primeira
consagração de que devemos nos ocupar (havendo em seguida outras, mas que
pressupõem esta primeira). A africanização da pátria de exílio, ou de
preferência, o candomblé como um pedaço da África. Vemo-nos aqui obrigados a
recorrer a outro culto que não o dos yoruba. Mas, como logo se verá, não
corremos risco de engano ao generalizar para todos os terreiros o que é verdade
principalmente nas seitas de origem dahomeana. A Casa das Minas, de São Luís do
Maranhão, se compõe de várias salas que rodeiam um pátio umbroso. Ou melhor, um
pomar de árvores frutíferas, de plantas medicinais e de flores, que se chama
gume. Entre as salas, aquela em que se encontra o pegi (ou pendomi, ou pódône)
é designada por termo semelhante, comé. As duas palavras não são mais do que
corruptelas do nome do país de onde vieram os fundadores da Casa das Minas, o
Dabomey. Lembro-me ainda da terna insistência de Mãe Andresa, corrigindo-me
cada vez que eu dizia Dahomey: "Não, meu filho, Dagomé (ou Dagumé) ".
Nunes Pereira, cuja mãe era uma das filhas de santo desse terreiro, escreve:
fosse Gume, como o pégi foi "assentado", também (...). Naquele chão
foram ocultos objetos trazidos da África, semelhantes aos que se acham no pégi,
no chão do triângulo simbólico. Assim, tanto um quanto outro dos lugares
sagrados da casa dos voduns são designados por um termo idêntico que significa
o Dahomey. Há muita razão para pensarmos que o termo de gume ou gomé ou Dagomé
não é também desconhecido na Bahia; o célebre e discutido babalorixá João da
Goméa é designado pelo nome do sítio em que se localiza seu terreiro, Goméa.
Embora o terreiro seja na realidade banto, o termo Gomea indica evidentemente a
existência anterior e no mesmo local de um Dagomé trazido da África. Os yoruba,
contudo, não dão o nome de suas localidades natais aos santuários. Mas estes
não deixam de ser, também, pedaços da África plantados em pleno coração do
Brasil. Não da África profana, mas de uma África mística. A porta de entrada é
assinalada pela casa de Exú; do mesmo modo que cada aldeia yoruba possui um
altar de Exú no limite que a separam dos campos. Os grandes templos
disseminados em toda a extensão da Nigéria, são encontrados igualmente no
candomblé, onde lhes foi dado posição equivalente à posição geográfica que
ocupam na África. Por exemplo, a casa de Oxun está situada o mais perto possível
da bica ou da fonte sagrada. Do mesmo modo que em Oshogbo o templo de Oxun está
próximo do rio que traz o nome desta divindade. A casa de Oxossi se esconde na
parte arborizada do santuário que figura uma floresta, pois é ele o deus dos
caçadores africanos. A casa de Omofú se localiza obrigatoriamente fora da
habitação principal. E assim também os templos de Buku, sua mãe, ou os
conventos de Schankanna, na Nigéria, que devem estar fora do recinto da aldeia.
A casa de Oxalá, no terreiro tradicional de Opô Afonjá, é distinta da de Xangô.
Porque, os templos nagô, destas duas divindades se encontram em cidades
diferentes embora ligadas, Ilé ifé e Oyo. Como o de Oxôssi, o santuário ele
Ogun fica mais longe, no meio das árvores, porque entre os yoruba também não se
encontra na cidade, e sim no meio dos bosques. O de I ya (a Yemanjá dos Grunci)
é uma espécie de beirada de poço incrustada de conchas, porque o poço se liga à
água, que é o elemento de Iya. Vê-se então que o candomblé é uma África em
miniatura, em que os templos se tornaram casinholas dispersas entre as moitas.
Quando as divindades pertencem ao ar livre, ou então cômodos distintos da casa
principal, se são divindades adoradas nas cidades. Quando o terreiro é muito
pequeno, todas as divindades urbanas podem se encontrar concentradas num pegí
único, mas as outras ficam de fora. De qualquer modo, o lugar do culto na Bahia
aparece sempre como um verdadeiro microcosmo da terra ancestral. O microcosmo,
todavia, não seria ainda senão simples cenário plantado em solo brasileiro, se
cerimônias particulares nele não fixassem a força os Orixá. Daí uma segunda
consagração, que se junta à primeira para lhe dar sentido completo. Não há
candomblé sem axé. Nunes Pereira nos diz que a Casa das Minas de São Luís do
Maranhão repousa em objetos trazidos da África. Não sabemos se o mesmo se dá
para os grandes candomblés tradicionais da Bahia. É muito possível, pois é
certo que no decorrer das guerras que opuseram as diversas dinastias africanas,
sacerdotes foram feitos prisioneiros e enviados como escravos para a América
(conhecemos, entre outros casos, o de duas sacerdotisas de Oxossi). Seria
extraordinário que tais sacerdotes não tivessem trazido com eles alguns de seus
objetos sagrados. Sabemos também que quando o candomblé situado na Barroquínha
se transportou para o Engenho Velho, seus axés foram desenterrados para serem
levados para o novo santuário. Pode-se interpretar esta transferência como um
sinal do valor dos antigos axé, talvez derivado de sua origem africana, embora outras
hipóteses sejam também verossímeis. Em todo o caso, e é isto que importa, o
candomblé não se torna lugar de culto senão depois de consagrado, e a
consagração consiste em enterrar os axés. É sabido que axé "designa em
nagô a força invisível, a força mágico-sagrada de toda divindade, de todo ser
animado, de todas as coisas". B. Maupoil escreve que se trata do
correspondente yoruba da baraka árabe nos países maghrebinos, do mana polinésio
e melanésio, da orenda dos iroqueses, do manitu dos algonquinos. No Brasil, o
termo se conservou para designar algo de diferente, mas que tem em comum com os
outros significados o fato de se tratar de um depositário de força sagrada.
Significa em primeiro lugar os alimentos oferecidos às divindades, em seguida
as ervas colhidas para o banho das filhas iniciadas e também para curar
doenças. Finalmente, o fundamento místico do candomblé. Um provérbio citado por
Alfred Burdon Ellis (1852-1894) diz que "o sangue é o axé de tudo quanto
respira”. Eis porque, como vimos, é através do banho de sangue que se
estabelecem, no mundo africano da Bahia, todas as relações entre os objetos, os
seres humanos e os Orixá; fazem-se todas as participações, todas as mudanças de
força. O terreiro construído nos subúrbios da cidade pode imitar a África, mas
não passaria de caricatura si também não participasse do mundo sobrenatural.
Daí a cerimônia de enterrar os axé, análoga à que se passa na África, porém com
uma diferença de que precisamos dizer algo. Não temos, é certo, senão poucas
informações sobre o rito de consagração, que não é rito público. Mas Parrinder
pôde obter de certos sacerdotes alguns dados sobre o modo pelo qual procedem
para elaborar as coisas sagradas. Vemos então, e era de esperar, que os axé
variam de acordo com os deuses. Os ingredientes que servem para o santuário de
Sakpata não são os mesmos que entram num santuário de Xangô, e estes diferem
dos que servem para um templo de Ogun. O único ponto de semelhança é que, em
todos os casos, se cava um buraco no chão e os objetos são postos no fundo. No
Brasil, porém, a novidade é que o candomblé não é templo de uma única
divindade; como dissemos, é um resumo de toda a África mística. Pode, sem
dúvida, ser votado de preferência a esta ou àquela divindade, que efetivamente
é a da "cabeça" ele seu fundador ou fundadora. Mas apesar disso;
compreende aposentos para todo o conjunto do panteão yoruba, sendo que, no
decorrer das festas, todos os Orixá são chamados a com parecer e dançar. E além
do mais, na sua confraria entram filhos e filhas pertencendo a todos os deuses
africanos que "baixam". Eis porque o axé do candomblé deve condensar
todos os axe, exatamente como o terreiro é um resumo de todo o território nagô.
Geralmente, o que será enterrado sob o poste central ou mastro litúrgico, será
então a “água os axe” , segundo a expressão de Édison Carneiro (1912-1972).
Isto é, "o líquido que contém um pouco de sangue de todos os animais
sacrificados", cada divindade tendo seus animais obrigatórios. Assim como
também um pouco de todas as ervas que pertencem aos diversos Orixás. Feito
isto, pode-se abrir o terreiro: está pronto a receber os fiéis e a se encher de
presença divina. Naturalmente, cada candomblé é obrigado a se adaptar ao sítio
em que está construído, no alto de uma colina, no flanco de uma elevação; e
também às dimensões às vezes extensas, outras vezes mais restritas, do terreno
que possui. Haverá, pois, variações em sua construção. Todavia, todos os que
pertencem às nações yoruba têm caracteres comuns. Em primeiro lugar, a existência
de pelo menos dois Exú. O primeiro se encontra situado numa casinhola perto da
porta de entrada, vela sobre o candomblé, abre e fecha-lhe as portas, é de
certo modo o porteiro do local. Não tem temperamento fácil, pelo contrário é
muito ciumento e até mesmo maldoso. Por isso, para impedi-lo de sair, sua casa
é fechada a cadeado e todo visitante, para que sua cólera não se desencadeie,
deve lhe oferecer, ao entrar, um presentinho: charuto, pedaço de fumo de rolo,
alguns níqueis. O segundo está enterrado no limiar da casa principal ou
aninha-se atrás da porta da entrada; recebe o nome de "compadre". O
que indica que, ao contrário do outro, não é mau sujeito. Protege a casa e seus
habitantes, naturalmente sob condição de receber o que lhe é devido. Tal dualidade
é tipicamente africana, mas, ao que parece, com modificações funcionais.
"Não existe conflito algum entre o Legba do portão e o do aposento,
escreve Maupoil a respeito do Dahomey. Este protege todo o terreiro contra
qualquer desgraça, principalmente contra malefícios. Aquele evita que a
desgraça ali penetre; impede as influências estranhas, enquanto o Legba do
aposento garante as pessoas da casa contra si mesmas". Ultrapassado o
portão e rendida homenagem ao Exú que o guarda, encontramo-nos diante de uma
verdadeira aldeia africana, perdida no meio das árvores, das moitas, das ervas
selvagens, formigando de gente por ocasião das festas e nunca despovoado, mesmo
em dias comuns. Uma cabra, um carneiro, erram por vêz de um lado para outro, à
espera de serem sacrificados às divindades. Deparamos imediatamente com a
dualidade dos cultos africanos, que aqui se manifesta pela oposição das duas
partes do candomblé, a ilé-Orixá ou casa das· divindades, e a ilé-saim ou casa
dos mortos. Tal dualidade, que na África corresponde ao duplo culto dos Orixá e
dos antepassados, era encontrada sob as mesmas denominações na capital do
Brasil, em começos do século XIX (1801-1900). Ainda existe hoje no Recife, mas
aí a ilé saim recebe o nome de "quarto de Balé". Esta parte do santuário
parece ter desaparecido em Porto Alegre, talvez devido ao caráter mais
proletário da religião. O que impede o sacerdote de comprar terreno
suficientemente vasto para compreender mais de uma habitação. A casa dos mortos
está, mais afastada possível, da dos Orixá. Efetivamente, como vimos, estes
últimos temem a morte, com exceção de Yansan que a venceu e que, por esta
razão, é algumas vezes chamada a deusa dos cemitérios. A ilé-saim compreende
dois aposentos: uma sala onde estão pendurados os retratos dos antigos membros
mortos. E um quarto que constitui o verdadeiro santuário e em que se encontram,
encerrados em potes, os Eguns ali "assentados" sete anos depois de
sua morte. Só este último é que existe no Recife, e sua porta é guardada por um
Exú. Preside-o uma imagem de Yansan de Balé, guardiã divina das almas dos
mortos. Um dos caracteres destas ilé-saim é a ausência de qualquer abertura, à
parte a porta de entrada, tanto se teme que os mortos venham perturbar os vivos
ou importunar seus vizinhos, os Orixá. Página 88 final - os Orixá. Livro O
Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Abraço. Davi
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