Budismo. www.budavirtual.com.br. Texto de Padma
Dorje. O CONCEITO DE MÉRITO NO BUDISMO I. Algumas pessoas ouvem o termo
“mérito” no contexto budista e se sentem incomodadas com possíveis conotações
de “meritocracia” e outras noções ideológicas, bem como com questões tais como
o elitismo espiritual. Embora estas problemáticas talvez se devam mais a uma
escolha infeliz na tradução de punya com
esta palavra, o conceito de fato é tradicionalmente sujeito a várias armadilhas
conceituais. A noção de carma – mérito sendo efetivamente apenas “carma
positivo” – não é exclusividade budista. Estando presente em outras tradições
espirituais e com vários sentidos, acabou integrada na cultura moderna com
aspectos que muitas vezes criam obstáculos a um entendimento apropriado do
ensinamento do Buda. Considerando que carma é originalmente tido como o assunto
mais complexo em toda a imensidão do ensinamento budista, isso torna as coisas
um tanto mais difíceis. Na tentativa de esclarecer estas complexidades – ou ao
menos liberar conceitos errôneos arraigados num estado de abertura ou
perplexidade – preparei o seguinte texto. O extraordinário professor Traleg Kyabgom Rinpoche
(1955-2012) deixou uma verdadeira joia para publicação póstuma: Karma: What It Is, What It Isn’t, Why It Matters (Carma,
o que é, o que não é, e porque importa – ainda não traduzido ao
português, mas aspiramos que em breve o seja). Nessa curta obra Rinpoche
examina o conceito de carma no budismo, bem como os diversos entendimentos
sobre o assunto que vêm de outras tradições e de popularizações modernas do
termo. Ao ler o livro de Traleg Rinpoche,
percebi meu próprio histórico de relacionamento com o conceito de carma. Antes
de conhecer o budismo passei por várias visões extremas, do ceticismo
materialista mais ferrenho até o esquizoterismo nova era. Hoje, tendo iniciado
algum pequeno entendimento do darma, reconheço que o padrão comum a tudo isso
que chamo de “visão extrema”, e que conheço direta e pessoalmente, é uma
espécie de tendência a absolutizar as coisas. Por exemplo,
conceitos físicos como matéria, energia, tempo e espaço. Eu os tentava
contemplar como que dentro de uma “caixa”, procurando entender relações entre
eles a partir de uma perspectiva transcendente – não espiritualmente
transcendente, mas como uma abstração localizada “à frente”, em alguma totalidade
no espaço mental. É claro, eu não reconhecia essa perspectiva, nem o fato que
era transcendente. Esse é o realismo usual no modo científico de pensar. Quando
eu vislumbrava coisas como relatividade e mecânica quântica, mesmo assim esse
objeto total que eu hipostasiava externamente mantinha uma solidez absolutista.
Estava lá aquele “universo”, que através de uma série de hipóteses eu tentava
entender e prever. Localmente podia haver “curvatura no espaço”, outras
geometrias, e o tempo podia ser vislumbrado como um tecido igualmente maleável
– mas a projeção de uma totalidade naturalmente “dada” permanecia. A própria
noção de leis, e universalidade de leis físicas é um tipo de absolutização: e
que se propõe sem justificativa alguma – na verdade, sem exame algum, por que
sem isso simplesmente se presume a impossibilidade da ciência. (Lido com alguns
aspectos dessa problemática, para quem quiser aprofundá-la, em dois
textos: As premissas injustificadas da ciência e Budismo e mistificação quântica). Para todos os efeitos, o mundo um pouco mais
surrealista ou “maleável” da relatividade ou da física quântica não era tão
diverso – em suas versões mais populares nos anos 80 em diante – do realismo
deísta da era moderna: o mundo funciona basicamente como um relógio. As
engrenagens podem agora apresentar sofisticações adicionais (como a troca da
geometria euclidiana por outra, ou o uso de estatística), mas a teia causal é
reduzível a equações, o que dá na mesma. Em termos metafísicos, alguém até pode
ter estabelecido as regras e “dado corda” para as coisas no início de tudo, mas
certamente se há algo desse tipo, não interfere nos acontecimentos naturais
depois disso. (E não que a noção de intervenção divina do teísmo faça mais
sentido, particularmente no contexto de superar esses entendimentos realistas
que estou tentando traçar – mas essas duas noções de realidade hipostasiada são
tendências comuns ao realismo, proponha ele um criador ou não, haja intervenção
ou não. Uma coisa é projetada como uma totalidade, chamada de “universo”, e, na
visão científica, se trata de uma totalidade que opera internamente com algum
tipo de padrão ou regularidade.
Essa dimensão absoluta em termos mecânicos – um ou outro tipo de
determinismo ou “ultra determinismo” – também ganhava um microcosmo humano na
dimensão do esoterismo barato, a manifestação popular do entendimento
espiritualista não tradicional prevalente. Em outras palavras, pensar o mundo
assim tem efeitos psicológicos. Dessa forma, algumas vezes surgia uma
desconfiança quase patológica de que a realidade cotidiana se dispunha tal qual
um “Show de Truman” particular, quer benévolo ou malévolo, mas sob alguma
espécie de direção externa. Isto é, externa ao tempo – havendo algum tipo de
“planejamento” ou ordem transcendente. De fato, mais do que palavras como
compaixão e regozijo, a espiritualidade não tradicional nos é dada geralmente
por essas noções de um outro enorme, assimétrico – anjos,
deuses, demônios, conspirações, sincronicidade, planejadores cósmicos,
testadores divinos, construtores de realidade, mensageiros. E no seu limite
patológico também com ideias de referência – um sintoma de doença mental: a
noção de que as coisas e eventos idiossincráticos do mundo estão comunicando
algo pessoal. Estas duas perspectivas absolutistas (que
hipostasiam um “grande irmão” ou um mundo mecânico) enfim reduzem a agência a
quase nada. Porém, também há o outro extremo, o de supervalorizar a agência,
quase ao ponto de achar que o controle das coisas possa ser obtido meramente
através de algum tipo de pensamento positivo ou pensamento mágico, ou de algum
tipo de um esforço consciente e sistemático. Nesse caso mais patológico, o eu,
se estende sobre todas as coisas, ele mesmo o objeto absolutizado. Para o budismo, estas são doenças espirituais (ainda que, em casos
específicos e raros, elementos de cada um desses hábitos mentais possam ser
usados, expedientemente, de forma positiva, caso não presumam a tal
absolutização). Portanto, se torna crucial reconhecer o que é essa tendência de
reificar as coisas, e não reconhecê-las como são e jogar sobre elas, um tipo de
solidez que não lhes é própria – e não só reconhecer, mas eliminar esse hábito.
Esse é um dos objetivos centrais da prática budista. Mais do que refutar outras
religiões ou a ciência, reconhecer o impacto patológico, e muitas vezes
automatizado em nosso modo de pensar, de alguns dos pressupostos cotidianos com
que operamos, tenham que fonte tiverem. A maioria das pessoas, não
tendo ouvido ensinamentos budistas e que não dispondo ao treinamento
sistemático da mente para ativamente evitar essas visões extremas através da
mudança de hábitos mentais, recai nelas constantemente, cotidianamente. Isso é
fonte de extremo sofrimento e atrito no mundo. É de fato a coisa mais comum.
Certas ideologias de consenso dominantes efetivamente promovem estas visões
extremas. É algo valorizado em nossa cultura, e nosso hábito usual é considerar
o mundo dessa forma. Aqui não há uma grande diferença entre as várias versões
espirituais e tradicionais do teísmo, as formas mais populares e adaptadas, e a
perspectiva materialista prevalente. A tendência de absolutizar é prevalente no
modo não educado de perceber o mundo, e é ademais incentivada pela educação
formal, e pelas ideologias de todo tipo. É possível dizer que é quase uma
exclusividade budista chegar a reconhecer essa tendência como um problema.
O budismo é famoso por suas ideias de vazio e de não existência do
eu, porém o que é necessariamente subentendido a partir desses ensinamentos é ainda
grande novidade em nossa cultura. Não só essas coisas são muitas vezes
mal-entendidas como o que não são (por exemplo, pessimismo ou niilismo, um nada
ou absurdo existencialista de algum tipo), também suas implicações radicais são
escamoteadas. A maioria das pessoas não desconfia que o budismo entenda tanto o
teísmo quanto o realismo – mesmo em suas acepções não tradicionais, ou mais
cotidianas – como ideologias errôneas e fontes de sofrimento. Particularmente, é impossível entender corretamente o conceito de
carma no budismo com um mundo mecânico, ou com um mundo planejado por alguém. E
o conceito de carma é uma das coisas mais úteis que se pode ter nas atividades
convencionais da vida – tanto para naturalmente prover ética, quanto para nos
colocar na capacidade de gerar condições boas que permitam encontrar
professores, fazer a prática e o obter entendimento e realização no darma.
CARMA E
LIVRE-ARBÍTRIO. Foram certos tipos
de teísmo, que tornaram necessário, o remendo filosófico que se chama
“livre-arbítrio”. Isso foi feito para escapar do “problema do mal”, que ocorre
dentro de uma perspectiva que postula uma divindade absolutamente benévola ao
mesmo tempo transcendente e manifesta. O budismo não tem nenhuma entidade
absolutizada – nem mesmo o Buda, que é visto ele mesmo como uma ilusão. (Porém, aqui é preciso frisar
que o budismo não dá valor moral negativo para o conceito de “ilusão”. Ilusão é
visto como algo neutro, até positivo: apenas como uma manifestação qualquer;
isto é, como qualquer outra, já que todas são “sonho” – que parece surgir para
nos revelar a nós mesmos como seres ilusórios. Buda também não criou nada disso
que vemos ou que vivemos, e não é nem um pouco responsável pelo que nos
acontece – nem mesmo indiretamente. Não foi o Buda que inventou o carma ou o
colocou em funcionamento, de fato, segundo o budismo, ninguém pode ser culpado
disso. Esta afirmação é muito importante para a não absolutização do
carma. Como não há nenhum outro responsável pelo carma senão nós mesmos, isso é
bastante diferente das ações morais num mundo criado, por mais que se tente
postular agentes livres num mundo desse tipo. Como no budismo o mundo nunca foi
criado por ninguém (sendo apenas uma “confusão” adventícia, sem que isso
implique valoração negativa), a noção budista de mundo e agente é extremamente
diferente em princípio. Portanto, como o budismo não
tem compromisso com nenhuma visão absolutista das aparências (todas essas
coisas que vivenciamos), ele simplesmente não lida com o problema do mal, e não
precisa de uma noção de arbítrio como dom divino. O conceito de
autodeterminação no budismo é diferente, e é entendido com base no entendimento
do carma. Somos simplesmente agentes relativamente (isto é, potencialmente)
livres, que podem, seguindo o ensinamento do Buda, que se coaduna com a
realidade, ser ainda mais livres ao se livrar de concepções errôneas e hábitos
perceptuais arraigados. A liberdade é um potencial que podemos usufruir, ou
não, em meio a essas aparências não criadas. Isso não é só uma vasta distinção
entre as visões teístas ocidentais e o budismo, também no oriente – na própria
tradição de onde o budismo tomou emprestada a noção de carma – as coisas são
bem diferentes. O carma no hinduísmo – uma tradição
essencialmente teísta – de modo geral (o hinduísmo é uma tradição riquíssima e
com grande diversidade doutrinária), tem um forte componente determinista que
não está presente no budismo. Algumas vezes há uma semelhança com o estoicismo
em como se trabalha com a boa e a má fortuna própria e dos outros. Porém,
soma-se a isso um componente social e de cultura familiar mais forte. Numa
sociedade de estóicos não há porque ter inveja daquele que está numa classe
superior. E isso não porque ele e a família fizeram por merecer (ao longo de
vidas incontáveis) – ainda que o tenham feito por merecer –, mas porque essa é
a ordem natural das coisas. Como no hinduísmo o mundo é criado
(ao contrário de no budismo), as coisas já estão, de uma forma ou de outra,
configuradas. O objetivo de carma aqui é produzir uma aceitação que alguns
diriam passiva, e que parece um tanto incompatível com a nossa perspectiva
engajada e moderna de transformação do mundo. Algumas vezes o budismo recebe
também essa crítica, embora as raízes de seu pensamento sejam extremamente críticas
à absolutização hindu. Essa “ordem natural” de um
mundo criado e que existe como uma totalidade no espaço e no tempo é também o
cerne do conservadorismo, que é um status quo absolutizado como o espaço
newtoniano munido de geometria euclidiana já um dia foi. O teísmo tem
implicações muito arraigadas sobre nossa concepção de mundo, especialmente com
relação ao que é considerado “natural”. E não é muito óbvio, mesmo quando
refutamos o teísmo, desfazer os hábitos que nos fazem pensar o mundo como essa
estrutura criada. O teísmo naturalmente projetou, por exemplo, a organização
social que chamamos de “monarquia”, que é uma representação humana da ordem
“celestial”. Como uma etapa complicadora acima dessa, temos
também no hinduísmo, bem como no cristianismo e em outras tradições (como o
kardecismo, tão popular no Brasil), uma comunicação mais dinâmica com o “mais
alto”, que demanda um determinismo qualificado, ou relativizado. Para evitar o
problema do mal, e se é que o livre-arbítrio resolve esse problema, o mundo
vira uma espécie de “escola moral” – o que é bem exemplificado pela história de
Jó na Bíblia. Somos criados à imagem e semelhança, porque também, assim como
Deus, temos agência. Um deus transcendente nos concedeu essa agência como dom –
ou um deus imanente é ele mesmo a fagulha de independência autônoma presente em
cada um. Assim, pela benevolência de Deus, esse mundo surge como uma espécie de
teste e aprendizado, onde a pessoa descobre, através de um processo talvez
doloroso, o que realmente é diante do dom divino. Caso usemos nosso dom divino,
por nossa própria vontade, encontraremos o aspecto final e o sentido de tudo,
descansando ao lado do Senhor. Claro que isso tem todo tipo de
furo, o que nos leva a postular as intenções divinas como invariavelmente
misteriosas. De uma combinação disso com a visão
materialista – via darwinismo social – surgiram todas as noções utópicas.
Ansiamos fazer da terra o céu, seja pela revolução social ou pela tecnologia.
Que consideremos a melhoria possível é um rompimento com a absolutização
primitiva do status quo para uma absolutização do mundo natural, ou do próprio
empreendimento humano, como ferramenta para a melhoria humana. O budismo é algumas vezes culpado de não colaborar com esses
planos, e estar do lado da religião tradicional e do conservadorismo, numa
espécie de manutenção do status quo. Porém o budismo não é contra a melhoria
das condições, seja por que meio – ela só não é a prioridade,
porque o budismo não absolutiza condições, que necessariamente são temporárias.
Algumas pessoas podem dizer que a atitude budista seria, mais do que
pessimismo, de um cinismo completo. Porém, manter esperança quanto a solucionar
as coisas no mundo e se decepcionar é que normalmente produz uma visão cínica –
essa expectativa Poliana é que produz seu oposto. Trabalhar pela melhoria sem
expectativa de resultado, e sem um plano ulterior – que sempre pode estar
equivocado, e por isso não deve ser absolutizado – é o que permite manter uma
atitude positiva mesmo quando as circunstâncias parecem ficar muito ruins.
Ironicamente, o naturalismo teísta evolui até a transformação de
Deus ele mesmo num mecanismo impessoal, matemático. “Imagem e semelhança” se
tornaram a onipresença das leis e forças físicas, em seus processos observáveis
e teorizáveis, e a consciência vira um processo de emergência, um mero
epifenômeno da massa biológica dentro do crânio. Algum reflexo de nossa noção
de agência é vislumbrado com atraso ocorrendo nessa massa, e concluímos que,
como nossa ideia de sermos antes de tudo consciências corporificadas, a agência
(como ideias religiosas) também é algo com que simplesmente nos
enganamos – afinal, o que os aparelhos nos mostram é que, se somos
esses fenômenos eletroquímicos (e o que mais poderíamos ser?), somos como todo
o resto, poeira de estrelas a que cultuamos, iludidos, ou que, mais
apropriadamente, reconhecemos como mera matéria. Ou somos
a fagulha divina transcendente, ou somos o tecido da própria criação que, do
absolutamente amorfo, fez brotar o divino, como conceito. E então no
cristianismo a comunhão se torna comer a carne de Cristo e beber seu sangue, e
em paralelo a isso, a indústria farmacêutica nos vende felicidade e sentido
através das drogas. O “grande irmão” precisa ser fagocitado, e então a união é
realizada novamente. “Religare”, e assim por diante. A visão materialista também se torna ironicamente “espiritual” ao
tentar explicar de onde surgiu esse “engano” – ainda não artificialmente
replicável ou mesmo compreendido – que é a consciência. O mundo natural é a
ioga do cientista – ele busca o profundo em meio ao que se apresenta, seja o
criado pela mente divina (que pensa apenas matemática pura!) ou tudo que há (o
que é novamente uma forma de absolutização – e deificação – das coisas).
EVITANDO UM MUNDO “PRONTO”.
A visão budista é um tanto
diferente disso tudo. A primeira etapa para tentar entender o que há de tão
diferente na perspectiva budista, é compreender essa questão da
“absolutização”. Isso ocorre quando transformamos um objeto (abstrato,
concreto) numa totalidade. Objetos que comumente totalizamos dessa forma são o
“eu” (o fazemos constantemente), o que chamamos de universo (cosmos,
totalidade), Deus, tempo, espaço, matéria, e assim por diante. Esses conceitos
podem ou não “existir”, ou ser úteis em um e outro sentido, mas nossa tendência
a absolutizá-los não permite sequer que os entendamos sem
contradições. Todos eles recaem numa ou outra antinomia, ou são o que Gallie
chamou de “conceitos essencialmente contestáveis”. O budismo considera o teísmo e o realismo impossibilidades lógicas.
A absolutização de fato impede o raciocínio. Mas entende que nossos hábitos
arraigados produzem versões dessas ideologias, sendo as menos educadas e mais
“orgânicas”, e por isso mesmo um tanto mais arraigadas, nosso próprio aparato
perceptual (que é realista) e a crença em um eu. Isso de fato se coaduna com a
visão científica atual, que vê nossa percepção como resultado de um processo
evolutivo, que facilita a perpetuação de genes, e não a compreensão da natureza
das coisas. Como linguagem e percepção surgem de um processo evolucionário,
elas não são suficientes para revelar coisas profundas. Mas como não absolutizar conceitos como Deus ou o eu? Eles são
praticamente sinônimos de absoluto – ainda que, estritamente falando, várias
tradições teístas reconheçam que a linguagem fica naturalmente esquisita e
inadequada quando o absoluto é nomeado. Aqui é preciso parar e afirmar
que a tradição budista não vê problema com o uso do termo “absoluto”, e
exatamente porque ela reconhece que o absoluto de que se pode falar não pode
ser absoluto. Até mesmo o absoluto de que o budista fala é relativo: ele surge
em relação, ora justamente, ao relativo. É como uma medida absoluta ou relativa
em um design feito por computador – uma se dá é com relação à margem, outra com
relação a um ou outro objeto. A visão em que relativo e absoluto coalescem até
pode ser subentendida, ou indicada poeticamente, mas não é exprimível.
“Absoluto” pode acabar sinônimo de extremo: isto é, muitas vezes usa-se o termo
para explicitar uma crítica, não para falar de um existente. De fato, o budismo (ou pelo menos a maioria das tradições
budistas) é claro em reconhecer que falar em “existência de um absoluto” não dá
certo. No budismo, existência é definida como necessariamente relacional: nada
existe num espaço absoluto solto num nada, tudo que existe, existe apenas
perante outras coisas, ou pelo menos perante uma outra coisa. A noção de uma
existência absolutista é autocontraditória, ainda que, devido a nossa
ignorância arraigada, quase invariavelmente usemos o termo existência num
contexto absoluto. Por isso se diz “vazio” no budismo: é exatamente vazio
de absoluto, vazio desse palco eterno com um observador necessário, mas não
reconhecido. A absolutização acaba justamente com esse resultado irônico de
ocultar o transcendente. Mas o absoluto pode em certo sentido
ser “afirmado”, caso isso não implique uma absolutização. É uma “afirmação” que
destrói o uso da linguagem, no âmbito específico em que a linguagem não serve
mais para nada. No entanto, normalmente queremos mais do que poesia sem eira
nem beira: portanto afirmar o absoluto, e ainda assim ficar com a linguagem
intacta, não é possível. É realmente de se espantar que
com toda nossa tendência a absolutizar ainda assim alguma comunicação aconteça!
E isso nos mostra algo sobre o problema do mérito. Estamos por aí
com essas tendências absurdas de absolutizar tudo o tempo todo – e absurdas não
só porque nos fazem não reconhecer a realidade, e nos fazem sofrer, mas também
porque são irracionais, e acabam com nosso poder de comunicação (e compaixão).
Precisamos de mérito para usar bem a linguagem e depois, também para abandonar
qualquer absolutização na linguagem em si. E é basicamente isso que o Buda
ensinou nos Sutras Prajnaparamita. Para não absolutizar, treinamos
no hábito de não absolutizar. Fazemos isso deliberadamente, conceitualmente, e
também através de ações virtuosas, que geram mérito. A combinação necessária do
reconhecimento e da vontade de não absolutizar com o empenho na virtude é o que
permite abandonar esse hábito. VIRTUDE NATURAL. Devido a nossas tendências arraigadas, é difícil
perceber a implicação de abandonar as perspectivas absolutistas. Embora a
metafísica absolutista (teísta, realista) nunca seja efetivamente resolvível,
quando a desafiamos, desafiamos tradição, hábito e uso ordinário do pensamento. O exemplo com relação à questão
do mérito é particularmente dramático. Para o budismo, não praticamos
virtude para agradar um ser supremo, ou passar em seus testes, ou para nos
coadunarmos a expectativas sociais ou estarmos de acordo com alguma ordem
suprema ou natural. Praticamos virtudes por dois simples motivos: vivenciar
melhores experiências e entender e praticar melhor o darma, que é o que nos
leva a reconhecer a realidade de nossa própria natureza e das experiências, além
de prover sentido a elas. Ambas as coisas requerem uma
visão cada vez menos absolutizadora do mundo e de nossa circunstância. Em certo
sentido, isso significa reconhecer continuamente que as condições mudam, e que
há como tomar as rédeas e produzir circunstâncias melhores de um jeito
pré-estabelecido, com base não só em nossa vontade, mas no engajamento com
nossos próprios hábitos. Não há como tomar as rédeas absolutamente, ou produzir
circunstâncias melhores absolutamente: mas sim, é possível produzir melhoria.
Essa visão não se coaduna com determinismo estrito, e tampouco com a noção de
livre-arbítrio. É uma liberdade potencial se revelando aos poucos num mundo que
surge constantemente (é “criado” incessantemente) determinado por nossas ações
passadas. Essa perspectiva é tremendamente diferente de nossa tendência
usual a projetar solidez sobre a situação atual, ou sobre nossa idealização do
passado ou do futuro. A perspectiva congelada das coisas, nosso modo usual de
ver, projeta uma linha de tempo a partir de uma perspectiva eterna, em que o
sentido, se existe, já foi dado. A ideia existencialista do
sentido ser construído na experiência pode ter algo a ver com a visão budista
em que o darma é um processo de integração da realidade com nossa própria
natureza. Porém, é claro, o existencialismo não possui nenhum método além do
engajamento no discurso, bem como é cheio de muitas outras visões errôneas
variadas, de acordo com o filósofo. O outro extremo usual é o que
no budismo se chama “niilismo”, mas que ganha um sentido um pouco diferente da
perspectiva filosófica ocidental usual de “desespero”. Para o budismo, niilismo
é uma crença arraigada na ausência de sentido, e na ausência de controle sobre
a própria experiência. As coisas acontecem sem motivo algum. É uma
absolutização da desistência ou do “absurdo”. A inexorabilidade da conexão
entre virtude e felicidade, e desvirtude e infelicidade não é embasada numa
estrutura pré-existente da realidade, mas na observação empírica continuada. Um
pós-modernista que se diga além da absolutização dos conceitos, e que coma
salada de maionese estragada, segue passando mal independente do que acha sobre
conceitos, e independentemente se isso foi deliberado ou inadvertido. O budismo
não é “desconstrução” do absoluto nesse sentido, de forma alguma um salto
mágico para um mundo de faz de conta onde sacrifício humano ou escrever
qualquer coisa sem sentido num papel produza felicidade. Caso a coerência entre
virtude e felicidade e assim por diante sejam absolutizadas, se tornando
características ou estruturas do que é projetado externa ou internamente,
perdemos a possibilidade de ir além disso. E o budismo diz que carma, embora
importante, não é absoluto ou real num sentido definitivo. Usamos o mérito para
poder usufruir dos métodos budistas que nos levam além do carma (o que inclui
tanto o mau carma quanto o mérito). O entendimento budista de carma
é não absolutizador, e, portanto, não recai nos extremos da
determinação atemporal (o “está escrito”) e da ausência de determinação, e
particularmente não recai na ausência de autodeterminação. Nossa dificuldade de
entender carma está no fato de que nossa tendência, inclusive nosso uso dos
sentidos e da linguagem, é simplesmente absolutizar tudo. Algumas pessoas
consideram que carma e vacuidade não poderiam ser compatíveis, já que a tomam
vacuidade como uma espécie de liberdade perante a própria coerência ou
congruência – uma quebra da causalidade. No entanto, Nagarjuna afirmou que
vacuidade e interdependência são exatamente a mesma coisa. Dessa forma, o
sentido profundo de carma como interdependência é a própria não absolutização.
Virtude, portanto, é coadunar com a realidade, que é naturalmente
positiva e não absolutizável, porque não criada. Coadunar com a
realidade como ela é, positiva, é encontrar as possibilidades positivas na
convencionalidade. Isso enquanto tendência: não é um estalar de dedos que
produz uma circunstância perfeitamente esplendorosa, dotada de todas as
qualidades extraordinárias, prazeres e sentido. É reconhecer os hábitos de
solidificar as aparências e os remover que revela, pouco a pouco, essa natureza
de virtude. Isso é completamente diferente de absolutizar
a virtude e se tornar um moralista, por exemplo. E isso é diferente de
sustentar o status quo ou buscar melhorar o mundo por transformação externa,
seja melhorando condições sociais ou aplicando mais tecnologia. O mundo é
melhorado porque os hábitos daninhos são revelados, e métodos para dirimir
hábitos daninhos são exemplificados e ensinados – todo o benefício que não
esteja ligado a isso é secundário – positivo, mas não prioritário. www.budavirtual.com.br. Abraço. Davi
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