terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

O CONCEITO DE MÉRITO NO BUDISMO I


Budismo. www.budavirtual.com.br. Texto de Padma Dorje. O CONCEITO DE MÉRITO NO BUDISMO I. Algumas pessoas ouvem o termo “mérito” no contexto budista e se sentem incomodadas com possíveis conotações de “meritocracia” e outras noções ideológicas, bem como com questões tais como o elitismo espiritual. Embora estas problemáticas talvez se devam mais a uma escolha infeliz na tradução de punya com esta palavra, o conceito de fato é tradicionalmente sujeito a várias armadilhas conceituais. A noção de carma – mérito sendo efetivamente apenas “carma positivo” – não é exclusividade budista. Estando presente em outras tradições espirituais e com vários sentidos, acabou integrada na cultura moderna com aspectos que muitas vezes criam obstáculos a um entendimento apropriado do ensinamento do Buda. Considerando que carma é originalmente tido como o assunto mais complexo em toda a imensidão do ensinamento budista, isso torna as coisas um tanto mais difíceis. Na tentativa de esclarecer estas complexidades – ou ao menos liberar conceitos errôneos arraigados num estado de abertura ou perplexidade – preparei o seguinte texto. O extraordinário professor Traleg Kyabgom Rinpoche (1955-2012) deixou uma verdadeira joia para publicação póstuma: Karma: What It Is, What It Isn’t, Why It Matters  (Carma, o que é, o que não é, e porque importa – ainda não traduzido ao português, mas aspiramos que em breve o seja). Nessa curta obra Rinpoche examina o conceito de carma no budismo, bem como os diversos entendimentos sobre o assunto que vêm de outras tradições e de popularizações modernas do termo. Ao ler o livro de Traleg Rinpoche, percebi meu próprio histórico de relacionamento com o conceito de carma. Antes de conhecer o budismo passei por várias visões extremas, do ceticismo materialista mais ferrenho até o esquizoterismo nova era. Hoje, tendo iniciado algum pequeno entendimento do darma, reconheço que o padrão comum a tudo isso que chamo de “visão extrema”, e que conheço direta e pessoalmente, é uma espécie de tendência a absolutizar as coisas. Por exemplo, conceitos físicos como matéria, energia, tempo e espaço. Eu os tentava contemplar como que dentro de uma “caixa”, procurando entender relações entre eles a partir de uma perspectiva transcendente – não espiritualmente transcendente, mas como uma abstração localizada “à frente”, em alguma totalidade no espaço mental. É claro, eu não reconhecia essa perspectiva, nem o fato que era transcendente. Esse é o realismo usual no modo científico de pensar. Quando eu vislumbrava coisas como relatividade e mecânica quântica, mesmo assim esse objeto total que eu hipostasiava externamente mantinha uma solidez absolutista. Estava lá aquele “universo”, que através de uma série de hipóteses eu tentava entender e prever. Localmente podia haver “curvatura no espaço”, outras geometrias, e o tempo podia ser vislumbrado como um tecido igualmente maleável – mas a projeção de uma totalidade naturalmente “dada” permanecia. A própria noção de leis, e universalidade de leis físicas é um tipo de absolutização: e que se propõe sem justificativa alguma – na verdade, sem exame algum, por que sem isso simplesmente se presume a impossibilidade da ciência. (Lido com alguns aspectos dessa problemática, para quem quiser aprofundá-la, em dois textos: As premissas injustificadas da ciência Budismo e mistificação quântica). Para todos os efeitos, o mundo um pouco mais surrealista ou “maleável” da relatividade ou da física quântica não era tão diverso – em suas versões mais populares nos anos 80 em diante – do realismo deísta da era moderna: o mundo funciona basicamente como um relógio. As engrenagens podem agora apresentar sofisticações adicionais (como a troca da geometria euclidiana por outra, ou o uso de estatística), mas a teia causal é reduzível a equações, o que dá na mesma. Em termos metafísicos, alguém até pode ter estabelecido as regras e “dado corda” para as coisas no início de tudo, mas certamente se há algo desse tipo, não interfere nos acontecimentos naturais depois disso. (E não que a noção de intervenção divina do teísmo faça mais sentido, particularmente no contexto de superar esses entendimentos realistas que estou tentando traçar – mas essas duas noções de realidade hipostasiada são tendências comuns ao realismo, proponha ele um criador ou não, haja intervenção ou não. Uma coisa é projetada como uma totalidade, chamada de “universo”, e, na visão científica, se trata de uma totalidade que opera internamente com algum tipo de padrão ou regularidade. Essa dimensão absoluta em termos mecânicos – um ou outro tipo de determinismo ou “ultra determinismo” – também ganhava um microcosmo humano na dimensão do esoterismo barato, a manifestação popular do entendimento espiritualista não tradicional prevalente. Em outras palavras, pensar o mundo assim tem efeitos psicológicos. Dessa forma, algumas vezes surgia uma desconfiança quase patológica de que a realidade cotidiana se dispunha tal qual um “Show de Truman” particular, quer benévolo ou malévolo, mas sob alguma espécie de direção externa. Isto é, externa ao tempo – havendo algum tipo de “planejamento” ou ordem transcendente. De fato, mais do que palavras como compaixão e regozijo, a espiritualidade não tradicional nos é dada geralmente por essas noções de um outro enorme, assimétrico – anjos, deuses, demônios, conspirações, sincronicidade, planejadores cósmicos, testadores divinos, construtores de realidade, mensageiros. E no seu limite patológico também com ideias de referência – um sintoma de doença mental: a noção de que as coisas e eventos idiossincráticos do mundo estão comunicando algo pessoal. Estas duas perspectivas absolutistas (que hipostasiam um “grande irmão” ou um mundo mecânico) enfim reduzem a agência a quase nada. Porém, também há o outro extremo, o de supervalorizar a agência, quase ao ponto de achar que o controle das coisas possa ser obtido meramente através de algum tipo de pensamento positivo ou pensamento mágico, ou de algum tipo de um esforço consciente e sistemático. Nesse caso mais patológico, o eu, se estende sobre todas as coisas, ele mesmo o objeto absolutizado. Para o budismo, estas são doenças espirituais (ainda que, em casos específicos e raros, elementos de cada um desses hábitos mentais possam ser usados, expedientemente, de forma positiva, caso não presumam a tal absolutização). Portanto, se torna crucial reconhecer o que é essa tendência de reificar as coisas, e não reconhecê-las como são e jogar sobre elas, um tipo de solidez que não lhes é própria – e não só reconhecer, mas eliminar esse hábito. Esse é um dos objetivos centrais da prática budista. Mais do que refutar outras religiões ou a ciência, reconhecer o impacto patológico, e muitas vezes automatizado em nosso modo de pensar, de alguns dos pressupostos cotidianos com que operamos, tenham que fonte tiverem. A maioria das pessoas, não tendo ouvido ensinamentos budistas e que não dispondo ao treinamento sistemático da mente para ativamente evitar essas visões extremas através da mudança de hábitos mentais, recai nelas constantemente, cotidianamente. Isso é fonte de extremo sofrimento e atrito no mundo. É de fato a coisa mais comum. Certas ideologias de consenso dominantes efetivamente promovem estas visões extremas. É algo valorizado em nossa cultura, e nosso hábito usual é considerar o mundo dessa forma. Aqui não há uma grande diferença entre as várias versões espirituais e tradicionais do teísmo, as formas mais populares e adaptadas, e a perspectiva materialista prevalente. A tendência de absolutizar é prevalente no modo não educado de perceber o mundo, e é ademais incentivada pela educação formal, e pelas ideologias de todo tipo. É possível dizer que é quase uma exclusividade budista chegar a reconhecer essa tendência como um problema. O budismo é famoso por suas ideias de vazio e de não existência do eu, porém o que é necessariamente subentendido a partir desses ensinamentos é ainda grande novidade em nossa cultura. Não só essas coisas são muitas vezes mal-entendidas como o que não são (por exemplo, pessimismo ou niilismo, um nada ou absurdo existencialista de algum tipo), também suas implicações radicais são escamoteadas. A maioria das pessoas não desconfia que o budismo entenda tanto o teísmo quanto o realismo – mesmo em suas acepções não tradicionais, ou mais cotidianas – como ideologias errôneas e fontes de sofrimento. Particularmente, é impossível entender corretamente o conceito de carma no budismo com um mundo mecânico, ou com um mundo planejado por alguém. E o conceito de carma é uma das coisas mais úteis que se pode ter nas atividades convencionais da vida – tanto para naturalmente prover ética, quanto para nos colocar na capacidade de gerar condições boas que permitam encontrar professores, fazer a prática e o obter entendimento e realização no darma. CARMA E LIVRE-ARBÍTRIO. Foram certos tipos de teísmo, que tornaram necessário, o remendo filosófico que se chama “livre-arbítrio”. Isso foi feito para escapar do “problema do mal”, que ocorre dentro de uma perspectiva que postula uma divindade absolutamente benévola ao mesmo tempo transcendente e manifesta. O budismo não tem nenhuma entidade absolutizada – nem mesmo o Buda, que é visto ele mesmo como uma ilusão. (Porém, aqui é preciso frisar que o budismo não dá valor moral negativo para o conceito de “ilusão”. Ilusão é visto como algo neutro, até positivo: apenas como uma manifestação qualquer; isto é, como qualquer outra, já que todas são “sonho” – que parece surgir para nos revelar a nós mesmos como seres ilusórios. Buda também não criou nada disso que vemos ou que vivemos, e não é nem um pouco responsável pelo que nos acontece – nem mesmo indiretamente. Não foi o Buda que inventou o carma ou o colocou em funcionamento, de fato, segundo o budismo, ninguém pode ser culpado disso. Esta afirmação é muito importante para a não absolutização do carma. Como não há nenhum outro responsável pelo carma senão nós mesmos, isso é bastante diferente das ações morais num mundo criado, por mais que se tente postular agentes livres num mundo desse tipo. Como no budismo o mundo nunca foi criado por ninguém (sendo apenas uma “confusão” adventícia, sem que isso implique valoração negativa), a noção budista de mundo e agente é extremamente diferente em princípio. Portanto, como o budismo não tem compromisso com nenhuma visão absolutista das aparências (todas essas coisas que vivenciamos), ele simplesmente não lida com o problema do mal, e não precisa de uma noção de arbítrio como dom divino. O conceito de autodeterminação no budismo é diferente, e é entendido com base no entendimento do carma. Somos simplesmente agentes relativamente (isto é, potencialmente) livres, que podem, seguindo o ensinamento do Buda, que se coaduna com a realidade, ser ainda mais livres ao se livrar de concepções errôneas e hábitos perceptuais arraigados. A liberdade é um potencial que podemos usufruir, ou não, em meio a essas aparências não criadas. Isso não é só uma vasta distinção entre as visões teístas ocidentais e o budismo, também no oriente – na própria tradição de onde o budismo tomou emprestada a noção de carma – as coisas são bem diferentes. O carma no hinduísmo – uma tradição essencialmente teísta – de modo geral (o hinduísmo é uma tradição riquíssima e com grande diversidade doutrinária), tem um forte componente determinista que não está presente no budismo. Algumas vezes há uma semelhança com o estoicismo em como se trabalha com a boa e a má fortuna própria e dos outros. Porém, soma-se a isso um componente social e de cultura familiar mais forte. Numa sociedade de estóicos não há porque ter inveja daquele que está numa classe superior. E isso não porque ele e a família fizeram por merecer (ao longo de vidas incontáveis) – ainda que o tenham feito por merecer –, mas porque essa é a ordem natural das coisas. Como no hinduísmo o mundo é criado (ao contrário de no budismo), as coisas já estão, de uma forma ou de outra, configuradas. O objetivo de carma aqui é produzir uma aceitação que alguns diriam passiva, e que parece um tanto incompatível com a nossa perspectiva engajada e moderna de transformação do mundo. Algumas vezes o budismo recebe também essa crítica, embora as raízes de seu pensamento sejam extremamente críticas à absolutização hindu. Essa “ordem natural” de um mundo criado e que existe como uma totalidade no espaço e no tempo é também o cerne do conservadorismo, que é um status quo absolutizado como o espaço newtoniano munido de geometria euclidiana já um dia foi. O teísmo tem implicações muito arraigadas sobre nossa concepção de mundo, especialmente com relação ao que é considerado “natural”. E não é muito óbvio, mesmo quando refutamos o teísmo, desfazer os hábitos que nos fazem pensar o mundo como essa estrutura criada. O teísmo naturalmente projetou, por exemplo, a organização social que chamamos de “monarquia”, que é uma representação humana da ordem “celestial”. Como uma etapa complicadora acima dessa, temos também no hinduísmo, bem como no cristianismo e em outras tradições (como o kardecismo, tão popular no Brasil), uma comunicação mais dinâmica com o “mais alto”, que demanda um determinismo qualificado, ou relativizado. Para evitar o problema do mal, e se é que o livre-arbítrio resolve esse problema, o mundo vira uma espécie de “escola moral” – o que é bem exemplificado pela história de Jó na Bíblia. Somos criados à imagem e semelhança, porque também, assim como Deus, temos agência. Um deus transcendente nos concedeu essa agência como dom – ou um deus imanente é ele mesmo a fagulha de independência autônoma presente em cada um. Assim, pela benevolência de Deus, esse mundo surge como uma espécie de teste e aprendizado, onde a pessoa descobre, através de um processo talvez doloroso, o que realmente é diante do dom divino. Caso usemos nosso dom divino, por nossa própria vontade, encontraremos o aspecto final e o sentido de tudo, descansando ao lado do Senhor. Claro que isso tem todo tipo de furo, o que nos leva a postular as intenções divinas como invariavelmente misteriosas. De uma combinação disso com a visão materialista – via darwinismo social – surgiram todas as noções utópicas. Ansiamos fazer da terra o céu, seja pela revolução social ou pela tecnologia. Que consideremos a melhoria possível é um rompimento com a absolutização primitiva do status quo para uma absolutização do mundo natural, ou do próprio empreendimento humano, como ferramenta para a melhoria humana. O budismo é algumas vezes culpado de não colaborar com esses planos, e estar do lado da religião tradicional e do conservadorismo, numa espécie de manutenção do status quo. Porém o budismo não é contra a melhoria das condições, seja por que meio – ela só não é a prioridade, porque o budismo não absolutiza condições, que necessariamente são temporárias. Algumas pessoas podem dizer que a atitude budista seria, mais do que pessimismo, de um cinismo completo. Porém, manter esperança quanto a solucionar as coisas no mundo e se decepcionar é que normalmente produz uma visão cínica – essa expectativa Poliana é que produz seu oposto. Trabalhar pela melhoria sem expectativa de resultado, e sem um plano ulterior – que sempre pode estar equivocado, e por isso não deve ser absolutizado – é o que permite manter uma atitude positiva mesmo quando as circunstâncias parecem ficar muito ruins. Ironicamente, o naturalismo teísta evolui até a transformação de Deus ele mesmo num mecanismo impessoal, matemático. “Imagem e semelhança” se tornaram a onipresença das leis e forças físicas, em seus processos observáveis e teorizáveis, e a consciência vira um processo de emergência, um mero epifenômeno da massa biológica dentro do crânio. Algum reflexo de nossa noção de agência é vislumbrado com atraso ocorrendo nessa massa, e concluímos que, como nossa ideia de sermos antes de tudo consciências corporificadas, a agência (como ideias religiosas) também é algo com que simplesmente nos enganamos – afinal, o que os aparelhos nos mostram é que, se somos esses fenômenos eletroquímicos (e o que mais poderíamos ser?), somos como todo o resto, poeira de estrelas a que cultuamos, iludidos, ou que, mais apropriadamente, reconhecemos como mera matéria. Ou somos a fagulha divina transcendente, ou somos o tecido da própria criação que, do absolutamente amorfo, fez brotar o divino, como conceito. E então no cristianismo a comunhão se torna comer a carne de Cristo e beber seu sangue, e em paralelo a isso, a indústria farmacêutica nos vende felicidade e sentido através das drogas. O “grande irmão” precisa ser fagocitado, e então a união é realizada novamente. “Religare”, e assim por diante. A visão materialista também se torna ironicamente “espiritual” ao tentar explicar de onde surgiu esse “engano” – ainda não artificialmente replicável ou mesmo compreendido – que é a consciência. O mundo natural é a ioga do cientista – ele busca o profundo em meio ao que se apresenta, seja o criado pela mente divina (que pensa apenas matemática pura!) ou tudo que há (o que é novamente uma forma de absolutização – e deificação – das coisas). EVITANDO UM MUNDO “PRONTO”.  A visão budista é um tanto diferente disso tudo. A primeira etapa para tentar entender o que há de tão diferente na perspectiva budista, é compreender essa questão da “absolutização”. Isso ocorre quando transformamos um objeto (abstrato, concreto) numa totalidade. Objetos que comumente totalizamos dessa forma são o “eu” (o fazemos constantemente), o que chamamos de universo (cosmos, totalidade), Deus, tempo, espaço, matéria, e assim por diante. Esses conceitos podem ou não “existir”, ou ser úteis em um e outro sentido, mas nossa tendência a absolutizá-los não permite sequer que os entendamos sem contradições. Todos eles recaem numa ou outra antinomia, ou são o que Gallie chamou de “conceitos essencialmente contestáveis”. O budismo considera o teísmo e o realismo impossibilidades lógicas. A absolutização de fato impede o raciocínio. Mas entende que nossos hábitos arraigados produzem versões dessas ideologias, sendo as menos educadas e mais “orgânicas”, e por isso mesmo um tanto mais arraigadas, nosso próprio aparato perceptual (que é realista) e a crença em um eu. Isso de fato se coaduna com a visão científica atual, que vê nossa percepção como resultado de um processo evolutivo, que facilita a perpetuação de genes, e não a compreensão da natureza das coisas. Como linguagem e percepção surgem de um processo evolucionário, elas não são suficientes para revelar coisas profundas. Mas como não absolutizar conceitos como Deus ou o eu? Eles são praticamente sinônimos de absoluto – ainda que, estritamente falando, várias tradições teístas reconheçam que a linguagem fica naturalmente esquisita e inadequada quando o absoluto é nomeado. Aqui é preciso parar e afirmar que a tradição budista não vê problema com o uso do termo “absoluto”, e exatamente porque ela reconhece que o absoluto de que se pode falar não pode ser absoluto. Até mesmo o absoluto de que o budista fala é relativo: ele surge em relação, ora justamente, ao relativo. É como uma medida absoluta ou relativa em um design feito por computador – uma se dá é com relação à margem, outra com relação a um ou outro objeto. A visão em que relativo e absoluto coalescem até pode ser subentendida, ou indicada poeticamente, mas não é exprimível. “Absoluto” pode acabar sinônimo de extremo: isto é, muitas vezes usa-se o termo para explicitar uma crítica, não para falar de um existente. De fato, o budismo (ou pelo menos a maioria das tradições budistas) é claro em reconhecer que falar em “existência de um absoluto” não dá certo. No budismo, existência é definida como necessariamente relacional: nada existe num espaço absoluto solto num nada, tudo que existe, existe apenas perante outras coisas, ou pelo menos perante uma outra coisa. A noção de uma existência absolutista é autocontraditória, ainda que, devido a nossa ignorância arraigada, quase invariavelmente usemos o termo existência num contexto absoluto. Por isso se diz “vazio” no budismo: é exatamente vazio de absoluto, vazio desse palco eterno com um observador necessário, mas não reconhecido. A absolutização acaba justamente com esse resultado irônico de ocultar o transcendente. Mas o absoluto pode em certo sentido ser “afirmado”, caso isso não implique uma absolutização. É uma “afirmação” que destrói o uso da linguagem, no âmbito específico em que a linguagem não serve mais para nada. No entanto, normalmente queremos mais do que poesia sem eira nem beira: portanto afirmar o absoluto, e ainda assim ficar com a linguagem intacta, não é possível. É realmente de se espantar que com toda nossa tendência a absolutizar ainda assim alguma comunicação aconteça! E isso nos mostra algo sobre o problema do mérito. Estamos por aí com essas tendências absurdas de absolutizar tudo o tempo todo – e absurdas não só porque nos fazem não reconhecer a realidade, e nos fazem sofrer, mas também porque são irracionais, e acabam com nosso poder de comunicação (e compaixão). Precisamos de mérito para usar bem a linguagem e depois, também para abandonar qualquer absolutização na linguagem em si. E é basicamente isso que o Buda ensinou nos Sutras Prajnaparamita. Para não absolutizar, treinamos no hábito de não absolutizar. Fazemos isso deliberadamente, conceitualmente, e também através de ações virtuosas, que geram mérito. A combinação necessária do reconhecimento e da vontade de não absolutizar com o empenho na virtude é o que permite abandonar esse hábito. VIRTUDE NATURAL. Devido a nossas tendências arraigadas, é difícil perceber a implicação de abandonar as perspectivas absolutistas. Embora a metafísica absolutista (teísta, realista) nunca seja efetivamente resolvível, quando a desafiamos, desafiamos tradição, hábito e uso ordinário do pensamento. O exemplo com relação à questão do mérito é particularmente dramático. Para o budismo, não praticamos virtude para agradar um ser supremo, ou passar em seus testes, ou para nos coadunarmos a expectativas sociais ou estarmos de acordo com alguma ordem suprema ou natural. Praticamos virtudes por dois simples motivos: vivenciar melhores experiências e entender e praticar melhor o darma, que é o que nos leva a reconhecer a realidade de nossa própria natureza e das experiências, além de prover sentido a elas. Ambas as coisas requerem uma visão cada vez menos absolutizadora do mundo e de nossa circunstância. Em certo sentido, isso significa reconhecer continuamente que as condições mudam, e que há como tomar as rédeas e produzir circunstâncias melhores de um jeito pré-estabelecido, com base não só em nossa vontade, mas no engajamento com nossos próprios hábitos. Não há como tomar as rédeas absolutamente, ou produzir circunstâncias melhores absolutamente: mas sim, é possível produzir melhoria. Essa visão não se coaduna com determinismo estrito, e tampouco com a noção de livre-arbítrio. É uma liberdade potencial se revelando aos poucos num mundo que surge constantemente (é “criado” incessantemente) determinado por nossas ações passadas. Essa perspectiva é tremendamente diferente de nossa tendência usual a projetar solidez sobre a situação atual, ou sobre nossa idealização do passado ou do futuro. A perspectiva congelada das coisas, nosso modo usual de ver, projeta uma linha de tempo a partir de uma perspectiva eterna, em que o sentido, se existe, já foi dado. A ideia existencialista do sentido ser construído na experiência pode ter algo a ver com a visão budista em que o darma é um processo de integração da realidade com nossa própria natureza. Porém, é claro, o existencialismo não possui nenhum método além do engajamento no discurso, bem como é cheio de muitas outras visões errôneas variadas, de acordo com o filósofo. O outro extremo usual é o que no budismo se chama “niilismo”, mas que ganha um sentido um pouco diferente da perspectiva filosófica ocidental usual de “desespero”. Para o budismo, niilismo é uma crença arraigada na ausência de sentido, e na ausência de controle sobre a própria experiência. As coisas acontecem sem motivo algum. É uma absolutização da desistência ou do “absurdo”. A inexorabilidade da conexão entre virtude e felicidade, e desvirtude e infelicidade não é embasada numa estrutura pré-existente da realidade, mas na observação empírica continuada. Um pós-modernista que se diga além da absolutização dos conceitos, e que coma salada de maionese estragada, segue passando mal independente do que acha sobre conceitos, e independentemente se isso foi deliberado ou inadvertido. O budismo não é “desconstrução” do absoluto nesse sentido, de forma alguma um salto mágico para um mundo de faz de conta onde sacrifício humano ou escrever qualquer coisa sem sentido num papel produza felicidade. Caso a coerência entre virtude e felicidade e assim por diante sejam absolutizadas, se tornando características ou estruturas do que é projetado externa ou internamente, perdemos a possibilidade de ir além disso. E o budismo diz que carma, embora importante, não é absoluto ou real num sentido definitivo. Usamos o mérito para poder usufruir dos métodos budistas que nos levam além do carma (o que inclui tanto o mau carma quanto o mérito). O entendimento budista de carma é não absolutizador, e, portanto, não recai nos extremos da determinação atemporal (o “está escrito”) e da ausência de determinação, e particularmente não recai na ausência de autodeterminação. Nossa dificuldade de entender carma está no fato de que nossa tendência, inclusive nosso uso dos sentidos e da linguagem, é simplesmente absolutizar tudo. Algumas pessoas consideram que carma e vacuidade não poderiam ser compatíveis, já que a tomam vacuidade como uma espécie de liberdade perante a própria coerência ou congruência – uma quebra da causalidade. No entanto, Nagarjuna afirmou que vacuidade e interdependência são exatamente a mesma coisa. Dessa forma, o sentido profundo de carma como interdependência é a própria não absolutização. Virtude, portanto, é coadunar com a realidade, que é naturalmente positiva e não absolutizável, porque não criada. Coadunar com a realidade como ela é, positiva, é encontrar as possibilidades positivas na convencionalidade. Isso enquanto tendência: não é um estalar de dedos que produz uma circunstância perfeitamente esplendorosa, dotada de todas as qualidades extraordinárias, prazeres e sentido. É reconhecer os hábitos de solidificar as aparências e os remover que revela, pouco a pouco, essa natureza de virtude. Isso é completamente diferente de absolutizar a virtude e se tornar um moralista, por exemplo. E isso é diferente de sustentar o status quo ou buscar melhorar o mundo por transformação externa, seja melhorando condições sociais ou aplicando mais tecnologia. O mundo é melhorado porque os hábitos daninhos são revelados, e métodos para dirimir hábitos daninhos são exemplificados e ensinados – todo o benefício que não esteja ligado a isso é secundário – positivo, mas não prioritário. www.budavirtual.com.br. Abraço. Davi


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