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O CONCEITO DE MÉRITO NO BUDISMO II. RIQUEZAS SEM LIMITES. Uma das implicações
importantes da realidade convencional não absolutizada é que podemos perceber a
impermanência como uma riqueza. O fato de não necessariamente sermos o que nos
consideramos, e podermos nos transformar, e nos revelar estranhos para nós
mesmos, é um dos aspectos dessa compreensão. A imersão no ser natural, não
absolutizador, é um contentamento sem limites. (E nenhum modo de reconhecer
isto é melhor do que conviver com um professor que nunca se desvia desse
reconhecimento. Esse é o método e mérito supremos). A segunda compreensão,
talvez mais importante, é que o mundo externo e as outras pessoas também podem
operar dessa forma, embora raramente operem: por um lado, a tendência é congelar
as aparências, e reconhecer coisas como tempo e espaço como uma ou outra caixa
onde uma totalidade de coisas ou eventos se dá (se deu; está, esteve, estará; e
assim por diante). Por outro lado, as coisas e pessoas, são inerentemente
livres dessas tentativas de aprisionamento, ou de nossas expectativas de
danação ou salvação. Essa liberdade não
absolutizadora é algumas vezes também chamada de “espaço” no budismo, e inclui
um aspecto atemporal. O espaço de todas as possibilidades é não absolutizador
por sua própria natureza. Mérito seria, portanto, o
hábito mental ou circunstância que nos permite usufruir mais possibilidades.
Esse também é o sentido de prosperidade. Da mesma forma que o dinheiro no mundo
convencional nos permite uma série de liberdades convencionais, tais como
viajar, tempo livre, objetos e prazeres, educação, influência, poder, saúde,
beleza, longevidade e assim por diante – no sentido profundo, o mérito é o que
nos permite a liberdade de efetivamente praticar o darma e transformar os hábitos
mentais, é o que nos dá sentido, bem como todo tipo de outras liberdades
menores. Numa perspectiva particular e restrita, facilidades materiais também
são, de modo geral, resultado de mérito. Num sentido mais amplo, no entanto, o
mérito vai muito além de meras facilidades materiais. O budismo preconiza um método fácil, ainda que não imediato, para
a riqueza. É a simples prática da generosidade. Tudo que vemos, oferecemos
mentalmente ao Buda. Também fazemos oferendas simbólicas e efetivas. E
oferecemos também aos seres sencientes. Objetos materiais e dinheiro, atenção,
trabalho, darma. E não só oferecemos, mas regozijamos com a generosidade dos
outros. A liberdade perante a mente mesquinha é o contentamento, que é maior
que qualquer riqueza material. Embora também se acredite, no budismo, que
absolutamente toda riqueza material advém dessa mentalidade. Isso não quer dizer que as pessoas ricas sejam generosas –
significa que elas já foram generosas, e agora usufruem de certa abundância
relativa e facilidades porque ampliaram suas mentes e foram além da mesquinhez
de forma consistente no passado. Elas podem ou não continuar sendo generosas,
uma vez que não há nada absoluto. Aqui o budismo vai diretamente
contra a noção de meritocracia: as pessoas não ficam ricas por trabalho duro ou
grandes ideias! Elas ficam ricas por causa de punya, que é
extremamente diferente do mérito pessoal de “ser melhor que os outros em algo”.
Ter facilidades nessa vida veio da prática de virtude em algum momento do
passado, e essas pessoas agora encontram essas boas condições relativas,
inclusive a possibilidade de “trabalhar duro” (ou, melhor ainda, nem
trabalhar!) e se dar bem com isso – mas que também é algo elas podem ou não
aproveitar bem. E, para quem não tem punya, isto é, para quem não
gerou virtude e causas de felicidade, toda a esperteza e esforço do mundo não
produzirão um centavo sequer. Isso é absolutamente diferente
de meritocracia. Embora, se você misturar esses entendimentos com tendências
absolutizadoras, vá inevitavelmente surgir algo com os mesmos problemas.
E, de fato, esse entendimento também não se coaduna com as noções
de classe. Todo mundo já esteve em todas as classes zilhões de vezes, e isso
não adiantou nada. Não é competindo por recursos ou competindo umas com as
outras que as pessoas encontram facilidades, mas sim, abrindo mão de hábitos
mentais arraigados. Assim, mesmo uma pessoa que encontre pouquíssimas
facilidades externas pode usufruir de contentamento internamente, enquanto
outra que tem todas as facilidades, pode ter a mente cheia de ansiedade e
confusão, e não conseguir usufruir de nada. O vinho caro e as paisagens
paradisíacas surgem apenas como uma forma de inferno interior produzido por
descontentamento profundo com tudo. Em outras palavras, mérito mesmo, no
sentido budista, é impossível medir ou averiguar – não é a conta bancária com
muitos dígitos ou quão poucas drogas psiquiátricas alguém precisa usar. Ainda assim, as circunstâncias atuais das pessoas também não devem
ser absolutizadas. E isso não significa que exploração não exista. A exploração
é uma realidade, e as pessoas que usam o trabalho dos outros efetivamente as
estão roubando, o que produz sofrimento e congela a pessoa na situação de
credor cármico. Evitar uma cultura de exploração, e não se deixar ser
explorado, é, portanto, essencial. O melhor que se pode fazer, no
entanto, não é voltar pessoas umas contra as outras, na perspectiva de que mais
denúncias sobre a não virtude alheia vá melhorar tudo. O melhor é dar exemplos
de generosidade, e sentir compaixão por aquelas pessoas que estão destruindo o
mundo e suas próprias vidas internas com ganância e ideologias estapafúrdias de
crescimento econômico. COMO AS AFLIÇÕES MENTAIS SURGEM DA ABSOLUTIZAÇÃO. A palavra “mérito” parece ter por si só
uma conotação absolutizadora em nossa cultura. Isso significa que, ao vermos
uma pessoa com facilidades materiais, tendemos a reconhecer isso como mérito.
Até aí, não haveria grande problema. Usufruir qualquer tipo de facilidade é um
sinal de ter gerado mérito no passado. No entanto, projetamos essa
circunstância positiva como um elemento necessário num tempo e espaço
absolutizados. De uma forma grosseira, projetamos essa boa fortuna para o
passado e para o futuro indefinidos, mas num sentido sutil, mesmo um momento
pontual de bom mérito nos parece absoluto, porque parece existir num tempo de
possibilidades congeladas – num mundo pré-existente e “criado”. Em outras palavras, temos uma
tendência forte de não reconhecer a impermanência, e, num sentido profundo, a
natureza insatisfatória de todas as coisas temporárias. Uma das consequências disso é que quando vemos alguém usufruindo
de algo bom, sentimos inveja, e quando vemos alguém cometendo uma ação
negativa, em vez de sentir compaixão, sentimos raiva. Isso se deve ao fato de
que, como somos ignorantes e não reconhecemos a realidade da vacuidade de todas
as coisas e pessoas, absolutizamos os agentes e as circunstâncias. Os prendemos
num concreto de eternidade, no qual também estamos presos – e em outra posição,
onde olhamos aquilo “de fora”. Isso só redunda na proliferação
de sofrimento por todos os lados e principalmente para si próprio. Algumas pessoas ouvem ensinamentos budistas sobre “ficar no
presente”, e se desapegar do passado e do futuro, mas transformam esse
“presente” numa outra forma de absoluto. Qualquer presente temporal ou
atemporal também é igualmente foco do mesmo desapego de passado e futuro; este
seria o ensinamento mais amplo. O que significa “desapego”? Significa não absolutizar,
isto é, não congelar aquilo como algo que existe de forma pontual e separada
num espaço e tempo objetificados externamente (externos ainda que nos sintamos
“dentro” em nossa percepção sensorial, ou “fora” em nossa abstração mental:
isto é, separados de algum modo). Porém, caso geremos alguma
empatia pelo ser que usufrui algo bom ou comete uma ação negativa, nos tornamos
capazes de regozijar com aquele homem feio e sua namorada tão bonita, ou sentir
compaixão pelo estuprador ou pelo genocida. Isso é similar a transformar aquele
concreto espaço-temporal numa substância um tanto mais viscosa, onde há alguma
possibilidade de movimento. Nessa analogia com estados físicos, estamos mais
próximos da realidade, mas ainda vivenciamos bastante atrito. Caso tenhamos um mérito muito extraordinário, e sejamos capazes de
desenvolver profunda compaixão ou regozijo pelos seres em quaisquer
circunstâncias, isso é como um líquido leve, ou mesmo um gás – onde há menos
atrito no movimento. Maior facilidade. Na completa união de sabedoria e mérito,
há um espaço sem limitações. Algumas vezes quando budistas falam de poderes
mágicos como atravessar paredes ou flutuar, é provavelmente a essa experiência
que estão se referindo – é uma capacidade de não absolutizar nenhum sonho, e,
portanto, total liberdade além de pontos de referência. MÉRITO É O PRÓPRIO HÁBITO DE NÃO
ABSOLUTIZAR. Estritamente falando, para praticar o darma precisamos de duas
coisas. Acumular mérito e desenvolver sabedoria. Prosaicamente, acumular mérito
é realizado através de prática formal e informal, e particularmente por
virtudes como a generosidade; e, em contraponto, desenvolver sabedoria
significa ouvir o darma, fazer perguntas para dirimir dúvidas, fazer
contemplação analítica dos ensinamentos, e verificar empiricamente seus
aspectos cruciais através da meditação. Mérito é essa capacidade de
movimento ou liberdade – essa prosperidade de possibilidades infinitas, e
particularmente, de usar a vida para seu melhor propósito – se tornar um Buda,
que vê a realidade como ela é, apenas existe para ajudar os outros a fazer o
mesmo, e vive num estado de bem-aventurança sem referenciais por exemplificar
mérito e sabedoria absolutos. Como uma virtude como a generosidade causa esse
espaço/liberdade/facilidade/êxtase? Uma das formas mais próximas e óbvias em
que somos congelados/solidificados é através das coisas que tomamos como
justificativas de nossa experiência de felicidade – e que não são suas fontes
verdadeiras. Por exemplo, apego a objetos materiais, e a nosso sentido de
espaço pessoal. Quando somos capazes de abrir mão da crença de que essas coisas
nos são garantias (de qualquer coisa, felicidade, segurança, senso de
identidade), quando conseguimos ver que elas são apenas lastros que nos prendem
a uma visão absolutizadora, então as oferecemos alegremente. Mesmo com todo nosso passado cristão – que é focado em virtudes
tais como caridade –, uma das felizes descobertas de muitos praticantes
budistas no ocidente é que oferecer abertamente nos faz mais felizes do que
acumular. Esse hábito mental pode começar com uma coisa muito pequena, como
grãos para um pássaro ou alguns reais para um mendigo, e acabar com a
capacidade de oferecer a própria vida para salvar a dos outros – algo que
algumas vezes vemos até pessoas “comuns” (isto é, pessoas supostamente não
espirituais) e até animais sendo capazes de fazer. Por outro lado, também vemos a miséria causada por uma mente que
solidifica tudo e a todos. Reconhecer a realidade significa abandonar a
absolutização, e é isso que torna tudo que é positivo mais fácil. CARMA É “INJUSTO”. O problema em geral com a noção de
carma é o descompasso temporal. Vemos aquela pessoa aparentemente próspera e
feliz, mas que comete muitas não virtudes – ou ao menos acreditamos haver tal
pessoa, e acreditamos em sua prosperidade e felicidade. E então carma parece
uma impossibilidade, ou pelo menos algo “injusto”. O fato é que esses seres
facínoras que automaticamente odiamos ao ver no noticiário, porque cometem
crimes hediondos, e assim por diante, já estão imersos em grande sofrimento. Se
eles nos fazem sentir asco porque projetam uma aparência poderosa ou ao menos
pretensiosa, precisamos evitar absolutizar novamente e reconhecer que a base
toda dessa aparente soberba é muito frágil. O sofrimento deles sem dúvida já é
enorme, e tende a aumentar – e esse não é motivo para regozijo vingativo. A
perspectiva budista não admite esse tipo de solidificação. E quem mais tem a
ganhar com ser inteligente dessa forma, e reconhecer o algoz como um sofredor
infeliz, é você mesmo – não só você está de acordo com a
realidade, mas você fica imune aos mesmos defeitos, e só tende a ganhar mais
espaços positivos e possibilidades. A compaixão verdadeira, por quem quer que
seja, não tem defeitos. Em contraposição, se você
sustenta o ódio, que é uma forma de regozijo negativo, você simplesmente se
fragiliza e não beneficia nem a si mesmo, pelo contrário. Nossa indignação é
apenas um hábito absolutizador. Muito ativismo político moderno
consiste em solidificar um inimigo, desenvolver asco por ele, e considerá-lo
culpado de todos nossos problemas. Isso acontece com a direita, que culpa
imigrantes, outros países e terroristas; e acontece com a esquerda, que culpa
corporações e o 1%. Todos culpam os políticos, e uns aos outros. No entanto,
embora haja responsáveis por ações negativas, não há culpados verdadeiros. Caso
as pessoas reconhecessem dentro de si o sofrimento que causam, elas não o
causariam – elas só são capazes de agir como agem porque congelam algum tipo de
separação, e absolutizam extremamente coisas em vários sentidos. Elas
infelizmente vão quebrar a cara vez após vez, como sentir raiva por elas?
Dzongsar Jamyang Khyentse Rinpoche ao ensinar sobre o Caminho
do Bodisatva de Shantideva no Brasil deu o exemplo de uma pessoa que
cai sobre a outra no ônibus. A vítima dessa queda leva, digamos, uma pancada no
rosto. Caso essa vítima seja muito estúpida, ela culpa a pessoa que caiu. Caso
ela seja um pouco menos estúpida, mas ainda um bocado, ela culpa o motorista.
Se ela for muito esperta, ela culpa o trânsito. Mas se ela for realmente sábia,
ela culpa seu carma. Embora nós queiramos saber onde está o cerne do problema –
ah, mas aquela pessoa não estava se segurando com força e mantendo atenção, ou
o motorista viu uma moça bonita, ou o trânsito está ruim por causa de uma obra,
assim por diante – o cerne do problema é evidente: temos essa fragilidade, e
estamos sujeitos a esse tipo de sofrimento, porque nos colocamos nessa situação
através de nossas situações passadas. No fundo, nem mesmo devemos nos culpar a
nós mesmos: se nós soubéssemos, não o teríamos feito. As pessoas têm todo tipo de ideia errônea com relação ao carma.
Por exemplo, elas acham que se uma pessoa faz a outra sofrer, já que a outra só
sofre por seu próprio carma (o que é verdade), quem faz o outro sofrer estaria
certo, sendo uma espécie de “agente do carma”. Isso é completamente uma visão
absolutizadora e terrivelmente errônea da ação cármica. Quem faz o outro sofrer,
causa sofrimento para si próprio. Embora seja verdade que o outro só possa
sofrer com essa ação porque ele mesmo criou essa fragilidade para si, ele não é
culpado ou responsável pela ou expiador da ação do outro – de forma alguma.
Quando dizemos que a vítima está melhor que o agressor, isso não quer dizer que
o agressor beneficiou a vítima. Enquanto um esgota um pouco de sua fragilidade,
o outro cria ainda mais fragilidade para si. No total, os dois são vítimas,
nenhum é algoz. O único jeito de quebrar esse ciclo vicioso é recuperando o
espaço de possibilidades, o que inclui não revidar, inclusive em pensamento.
Não ver inimigos em lugar algum é o único pacifismo possível.
E isso de modo algum significa também não impedir a ação negativa
dos outros. Se um gato se prepara para comer uma barata, caso você seja um
praticante budista, você não cai na falácia naturalista de achar que “ora, é um
animal, ele sabe o que faz enquanto animal, não me meterei”. Não, você
trabalhar ativamente para evitar a ação negativa do gato – ele vai ficar
chateado, porque queria caçar, mas você fez sua parte. O Buda não projetou nada do que acontece, ele não é responsável
pelo carma, muito menos pelas ações dos seres. Tudo que o Buda pode fazer é
avisar para que prestemos atenção em onde estão as raízes de felicidade, e onde
estão as raízes do sofrimento – o hábito de absolutizar, que cria as emoções
aflitivas tais como inveja e raiva, e produz as ações desvirtuosas, e todos os
sofrimentos vivenciados no mundo. Num mundo em que as visões errôneas do
materialismo, do realismo teísta, e do niilismo são as mais comuns, o que o
Buda ensinou pode parecer difícil de entender – mas isso se deve apenas ao fato
de que não prestamos atenção devida às contradições de nossas crenças habituais.
Um breve exame sobre tudo que as pessoas costumam acreditar mostra que as
contradições permeiam quase tudo – e se o darma é estudado com cuidado e
motivação correta, o ensinamento do Buda está perfeitamente imaculado de
qualquer tendência absolutizadora, a raiz de todo tipo de erro e contradição.
Em meio a isso, é óbvio que o carma não é justo – nem nunca
ninguém disse que ele seria, ou porque seria, uma vez que o Buda não é
responsável pelas coisas serem como são. Porém, o Buda sempre ensinou que o
carma é uma coisa com que podemos lidar, assumindo responsabilidade por nossas
ações, e entendendo que não há culpados no mundo, e também, eventualmente
superar de forma definitiva. ELITISMO ESPIRITUAL. Outro aspecto difícil com
relação ao mérito é a noção de “acumulação”. Muitos iniciantes no budismo se
consideram operando alguma falsidade ao fazer aspirações elevadas, ou mesmo ao
praticar virtude. Até quando ao fixar a motivação (de trazer benefício a todos
os seres, algo que se faz ao início de cada prática formal ou cotidiana)
algumas pessoas se sentem farsantes. Por um lado, isso é bom. Ficar
insatisfeito com a própria prática – sabendo que podia fazer melhor – é um bom
sinal de que não está havendo materialismo espiritual ou soberba. Porém, se há
uma absolutização também aí, no sentido de falta de autoestima, e isso cria um
obstáculo para a prática, o melhor a fazer é lembrar-se de evitar o
perfeccionismo, que é um idealismo de si próprio que a pessoa nunca conseguirá
efetivar. A pessoa transforma o Buda (que é no fundo sua própria natureza!) num
absoluto inatingível, e assim esquece que ele ia ao banheiro, tinha dor de
cabeça, foi casado, e morreu de diarreia. Isso não quer dizer que haja
problema em idealizar até certo ponto. Louvar as incompreensíveis qualidades do
Buda é meritório, desde que isso não crie obstáculos – e estes só surgem quando
há absolutização. Reconhecer as qualidades do Buda é parte essencial da geração
de méritos. Da mesma forma, é perfeitamente adequado
sentir orgulho de ser budista. E não estamos falando aqui do uso dos venenos no
caminho, ou o orgulho da deidade, que são coisas específicas do vajrayana.
Existe um aspecto do termo orgulho que não é ligado à emoção aflitiva
autocentrada como descrita no budismo, que ocorre quando você não faz
comparação, nem coloca os outros abaixo de si mesmo. De fato, esse orgulho
positivo com relação ao caminho espiritual que se escolheu é essencial. Sem
esse regozijo em ser um seguidor do Buda será muito difícil ter gosto na
prática. Porém, nossa tendência comparativa é muito forte. O que se pode
fazer quando, em meio a esse orgulho de ser budista? Caso surja uma tendência
de diminuir as outras tradições ou as pessoas não budistas, é preciso
desenvolver compaixão e regozijo. Na verdade, isso vale também para os outros
budistas que estão no nosso mesmo caminho, mas que vemos avançar mais
lentamente – ou até para aqueles que vemos avançar mais rapidamente que nós, e
que algumas vezes são condescendentes ou frívolos com relação a nossos esforços
e tropeços. Vamos agora sentir inveja do próprio Buda, ou de nosso professor?
Caso isso ocorra, pode bem ser um lembrete de regozijar com suas qualidades! É
só mudar um pouco o ângulo, absolutizar um pouco menos. Isto é, quando quer que surja a mente comparativa, geramos
compaixão e regozijo, um ou o outro, ou ambos simultaneamente. Com relação ao ser que você vê como “inferior”, você gera
compaixão ao reconhecer que, embora o ser tenha todo o potencial que de fato
tem, tendo como todos os outros seres natureza de Buda, ele infelizmente não
consegue usufruir ou revelar esse potencial. Então você lembra que, embora
possa haver diferenças quantitativas, qualitativamente somos todos iguais. E o
que é quantitativo é absolutamente incerto e impermanente! Absolutamente irrelevante!
Além do mais, você também tem um potencial que não revelou completamente. Os
méritos de cada um são extremamente variáveis, e nunca sabemos em que posição
cada ser estará no próximo momento – esta é uma consideração absolutamente
inútil. Agora me parece inferior? Opa, boa oportunidade para lembrar-se de sua
verdadeira natureza e desenvolver compaixão. Não é uma oportunidade para o
regozijo torpe com a comparação, que não ajuda nem você nem a ninguém. Os grandes mestres do passado então nos dão uma dica para
aperfeiçoarmos nossa própria prática: focamos apenas o potencial do outro, e ao
mesmo tempo, focamos apenas o que não revelamos em nós mesmos. Ao servir o ser
dessa forma, ocasionalmente surgimos, em um pequeno sentido, temporariamente,
como professores dele – mas apenas seguimos nos reconhecendo como servos dessa
natureza pura, que é mútua, ou mais do que isso, a mesma em cada um. Podemos
também surgir como alunos, que diferença faz? Somos todos alunos do mesmo
professor, o Buda, da mesma natureza, que é igual em todos! A pessoa pode
pensar que o melhor seria praticar de forma não dual, e isso é verdade, mas
enquanto isso, você faz uma bondade para consigo mesmo e força um treinamento
contra seus hábitos. Assim, porque você reconhece essa tendência ao auto
centramento, de início você treina no oposto: você foca os seus defeitos e as
qualidades do outro. Se o outro está envolvido em
comparação, não diga “azar o dele”. Faça sua parte e dê exemplo. Quando você se sentir desencorajado ao focar os próprios defeitos,
regozije nas qualidades do Buda, ou dos praticantes bons que você conhece. Se
mesmo assim você se sentir deslocado, inferiorizado ou superiorizado,
absolutizando algo em algum lugar, pense que é possível melhorar, não interessa
onde você esteja. Então você vê um defeito, gera compaixão, e
então vê o potencial e as qualidades que invariavelmente aquele ser tem ou pode
ter, e gera regozijo. Essa prática, no entanto, você
reconhece como a própria raiz dos seres elevados. E não, você não é, necessariamente,
um ser elevado. Você apenas regozija com a prática. Você regozija por ter
alguma conexão com a prática, e ser capaz de aplicá-la em algum pequeno
sentido. E você aspira praticar melhor. Esses valores positivos você pode até
chamar de orgulho ou elitismo, mas isso não é necessário. De fato, são esses
valores que promovem a profunda equanimidade. O que ocorre algumas vezes é
uma apropriação dos valores mundanos pela perspectiva espiritual. Eu sou aluno
do professor tal, portanto sou o máximo. Minhas credenciais e currículo
budistas são impecáveis! Isso é absolutamente natural, embora seja realmente um
problema e deva ser combativo. Na verdade, logo que avançamos um pouco no
caminho nosso orgulho fica bem mais sofisticado e difícil de lidar do que isso:
e assim é preciso gerar muito mérito e ser muito honesto consigo mesmo. Mas
nesse nível de iniciante grosseiramente arrogante ele ainda está exposto para
receber porradas da prática, e aí o importante é só não fugir quando tudo ficar
difícil devido a nossa própria impostura. Se toleramos o darma nos purificando,
descobrimos nosso lugar especial na mandala do Buda, igual ao de todos os
outros seres-mães. Quando vemos alguém usando a espiritualidade
para autopromoção ou auto justificação, novamente, geramos compaixão. Aquele
ser está simplesmente desperdiçando a oportunidade tão rara de praticar o darma
de forma pura. Quando quer que um sentido de indignação
moralista, inferioridade ou superioridade surgir, lembramo-nos da natureza não
absoluta do mérito – regozijamos com o que temos, e sabemos que isso não é
garantia de nada. Caso percamos tempo nos comparando com outros seres, pior
para nós. Melhor regozijar com os méritos, onde quer que eles estejam, e gerar
compaixão pelos seres com obstáculos, sejam quem eles forem. Considerar o Buda é algo inconcebível. Não conseguimos entender
nem os méritos de Sidarta, com sua era nobre e exaltada, e seus palácios
requintados e milhares de esposas. Nem mesmo o aspecto convencional daquele que
um dia viria a ser o Buda é fácil de contemplar, tal a radiância fulgurante
dessa liberdade. Que dirá então as práticas de austeridade e os estados
meditativos? E o ato de levantar e ensinar o darma por 42 anos? Ao examinar a
mente do Buda, somos como um pássaro tentando chegar à estratosfera. Onde esse
brilho e esse espaço vão terminar? O pássaro cansa, nossa mente conceitual
desiste – mas não vê o fim do espaço. Não vê nem um indício de que pode haver
um fim para tal mérito.
Esta reflexão marginalmente toca o excelente livro
citado no início, Karma: What It Is, What It Isn’t, Why It Matters (Carma, o que
é, o que não é, e porque importa) de Traleg Kyabgom Rinpoche. Este é o
tema mais complexo do darma, e aqui eu apenas tentei lidar com alguns
obstáculos comuns ao entendimento (teísmo, materialismo, niilismo) e visões
comuns problemáticas em termos de aspectos sociais e políticos. Já falei sobre
assuntos conexos nos seguintes textos: Respostas sobre carma, Acumulando
méritos, Eternalismo, niilismo e outros extremos e O treinamento da mente e o esplendor. Um instante de raiva destrói a
positividade de ações virtuosas realizadas por milhares de vidas. O que fazer?
Entregamos qualquer raiz de virtude para os seres que nos sustentaram com seu
corpo – dos insetos que morreram nos campos alagados para produção de arroz até
nossa mãe; de quem nos ensinou a caminhar, ler e escrever até nosso precioso
professor do darma. Qualquer boa coisa que fizemos se deve, no fundo, a todos
eles, por vidas incontáveis. Assim, na medida em que reconhecemos isso, nosso
momento de raiva se torna incapaz de destruir algo que nunca foi nosso para
começo de conversa. Caso pessoalizemos nossas conquistas – nossa tendência
natural – podemos produzir uma visão inflada, que não só cria obstáculos, mas é
muito mais frágil. Que a virtude desta preguiçosa reciclagem confusa do pouco
de darma com que tive o imenso privilégio de entrar em contato nessa vida
atinja os seres. Que todos tenham o mérito de reconhecer valor até mesmo no que
não passa de um croqui infantil do reflexo fosco do lampejo momentâneo de um
raio fugidio do brilho adamantino e fulgurante do método sublime e liberador do
Buda. E que isso produza uma profusão de contentamento e boas condições. Que o
mérito aumente, nunca se esgote, e que seja unido à sabedoria, revelando o que
realmente há como perfeitamente bom. www.budavirtual.com.br.
Abraço. Davi
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