sexta-feira, 20 de setembro de 2019

II. A ÉTICA SEXUAL BUDISTA - AS PRINCIPAIS QUESTÕES


Budismo. Texto de Alexander Berzin. II. A ÉTICA SEXUAL BUDISTA – AS PRINCIPAIS QUESTÕES. Comportamentos Sexuais Impróprios para Mulheres. Se nos interrogamos sobre a possível necessidade de adicionais retificação à lista dos tipos de comportamento sexual impróprio, para irmos de encontro ao Ocidente moderno, podemos aprender outra lição a partir da história textual budista. De acordo com os textos vinaya sobre a disciplina monástica, não é permitido aos monásticos agirem como intermediários para o arranjo de casamentos com certo tipo de mulheres. As listas dessas mulheres correspondem às listas de parceiras sexuais impróprias para as pessoas leigas. Entre os textos vinaya que examinei, em cinco das dezoito escolas Hinayana, duas das suas listas são exclusivamente elaboradas sob o ponto de vista masculino, indicando apenas mulheres impróprias. Estes vinayas pertencem a duas das três tradições Hinayana que ainda hoje existem – Theravada (seguida no Sri Lanka e no Sudeste Asiático) e Sarvastivada (a filial de Mulasarvastivada, seguida pelos tibetanos e pelos mongóis). Ora, esta omissão não significa que, de acordo com estas duas tradições, apenas haja mulheres impróprias para homens, e que não haja homens impróprios para as mulheres. Significa apenas que os códigos éticos foram escritos nestas duas tradições apenas sob o ponto de vista dos homens. Contudo, as outras três tradições do vinaya especificam listas de homens impróprios que correspondem às suas listas de mulheres impróprias. Isto implica que a ética sexual é relativa consoante as pessoas envolvidas – homens, mulheres e assim por diante – e que precisa de ser especificada em termos de cada tipo de pessoa. Assim, com base nesta evidência textual, acredito que seria muito razoável adicionar a qualquer lista de parceiros sexuais impróprios aqueles que seriam impróprios sob o ponto de vista das mulheres. A Homossexualidade. Seguindo a mesma linha de raciocínio, os textos em todas estas tradições foram escritos sob o ponto de vista do homem heterossexual. Assim, se um homem heterossexual já tiver uma parceira, mas devido à insatisfação e ao desejo obsessivo, for explorar e fazer sexo não só com todo o tipo de mulheres alheias, como também com homens, vacas e quem sabe o que mais, então, é obvio que isso é destrutivo. Mas, além disso, penso que também podemos rever todo o sistema e incluir o que seria comportamento sexual destrutivo ou construtivo para os homens e mulheres homossexuais e também bissexuais, porque fazer sexo com o parceiro de outra pessoa, e assim por diante, também seria destrutivo para este tipo de pessoas. Afirmar que qualquer recomendação ética precisa de ser formulada relativamente a cada grupo a que diz respeito, me parece estar totalmente de acordo com o espírito dos ensinamentos budistas sobre o surgimento dependente. É interessante que, durante suas viagens, Sua Santidade o Dalai Lama se tivesse encontrado às vezes com grupos homossexuais, particularmente em São Francisco e Nova Iorque nos Estados Unidos. Estes grupos estavam extremamente perturbados pela usual apresentação budista da homossexualidade como comportamento sexual impróprio. Sua Santidade respondeu que ele, por si próprio, não podia reescrever os textos mas pensava que este era o tipo de questão que precisava de ser discutida por um Concílio de Budistas. Só um tal concílio poderia alterar questões a respeito do vinaya e da ética. Sua Santidade recomendou o mesmo procedimento a respeito da questão da igualdade das mulheres, particularmente em rituais e cerimónias monásticas. Isto também precisa ser reconsiderado e revisado. Com efeito, parece que Sua Santidade também pensa que pode haver algo problemático e aberto à discussão no âmbito da tradicional apresentação budista sobre a ética sexual. Orifícios Impróprios para Sexo. A inclusão da boca e do ânus como orifícios impróprios para o intercurso sexual também foi feita indubitavelmente com os homens heterossexuais que já tinham uma parceira feminina em mente. Sob o ponto de vista budista, tais pessoas seriam impelidas a dar rédea solta ao sexo oral ou anal por causa do enfadamento e da insatisfação com o sexo vaginal. Podiam sentir que o sexo vaginal era uma forma deficiente de obter ou dar prazer, ou um modo inepto de demonstrar amor e afeição. Em ambos os casos, a conduta é motivada pela insatisfação que, por sua vez, é uma atitude que inevitavelmente traz problemas. Contudo, isto torna-se uma questão muito mais complicada se considerarmos estas formas de comportamento sexual no contexto de casais homossexuais. A questão é a seguinte: estes orifícios são impróprios por natureza ou são apenas especificados como impróprios para determinadas pessoas, em determinadas situações? Se disséssemos que o problema com a boca e o ânus, como orifícios sexuais, existe porque estes não são limpos, então essa objeção também pertenceria igualmente à vagina. Não é um tópico assim tão simples. E o sexo para alguém paralisado (tetraplégico) do pescoço para baixo? A única forma de comportamento sexual que essa pessoa pode fazer é a oral. Assim, uma vez mais, penso que precisamos de fazer a distinção entre o que é próprio e impróprio em relação a grupos específicos de pessoas. Não penso que poderíamos dizer que fazer sexo oral seria obsessivo para alguém paralisado do pescoço para baixo. Masturbação. Penso que um argumento semelhante pode ser feito a respeito da masturbação. Temos de examinar a tradicional posição budista a respeito disto, no seu contexto social original. Na Índia antiga, na época em que estas questões sobre a ética foram formuladas, as pessoas casavam durante a puberdade ou até antes. Assim, se formos casados mas estivermos tão obcecado pelo sexo de tal forma que o sexo com o nosso parceiro não é suficiente e também precisamos de nos masturbar, isso seria considerado obsessivo. No entanto, hoje em dia, as pessoas no Ocidente não casam no início da puberdade e algumas pessoas permanecem solteiras até bem tarde ou até durante toda sua vida. Precisamos de pensar acerca da questão da masturbação sob a perspectiva das pessoas que não têm parceiros ou que não têm um sério relacionamento sexual com ninguém. Se as alternativas forem a promiscuidade, o uso de prostitutas ou o celibato total, então a masturbação para as pessoas sem parceiros é completamente diferente do que para as pessoas casadas. O mesmo é verdade a respeito da pessoa casada, cujo parceiro esteja muito doente ou num hospital há meses. O que devem elas fazer, ir a uma prostituta? Não. Então, acredito que é consistente com os ensinamentos budistas que tudo deve ser considerado dentro do seu contexto, porque o que torna um ato samsárico eticamente neutro (como a prática sexual) num ato destrutivo é ele ser motivado por uma emoção perturbadora – insatisfação, obsessão sexual e assim por diante. Isso é que irá causar problemas. O comportamento sexual não influenciado pelas perturbadoras emoções obsessivas não irá causar o mesmo tipo de problemas. Causará apenas o problema generalizado de nunca estarmos completamente satisfeitos e de querermos sem dúvida fazê-lo repetidamente. E nunca poderemos garantir como iremos sentir após o ato sexual. Prostituição. Um dos pontos mais interessantes sobre a tradicional apresentação budista acerca da conduta sexual imprópria, se a analisarmos tendo em vista a sua alteração para o Ocidente moderno, diz respeito ao que não está incluído e como isso pode ser culturalmente influenciado. Considerem, por exemplo, a discussão sobre a prática sexual com prostitutas. Nos textos indianos e tibetanos, o sexo com prostitutas é perfeitamente aprovado, mesmo para homens casados, desde que paguem à prostituta. Uma prostituta é uma parceira imprópria apenas se ela pertencer a outra pessoa e se você não pagar por ela. Mais perplexo ainda é que se os pais não derem permissão à sua filha para fazer sexo com alguém, então a filha é uma pessoa imprópria para a prática sexual. Mas se os pais derem permissão – como acontece às vezes na Ásia quando pais pobres vendem suas filhas para a prostituição – nem uma palavra é mencionada. Ademais, como já disse, as traduções chinesas adicionaram as concubinas alheias como parceiras impróprias. Isto implica que é perfeitamente aceitável que um homem casado tenha sexo com as suas próprias concubinas. E entre os tibetanos, é perfeitamente aceitável ter-se mais que uma esposa ou que um marido. De fato, parece ser perfeitamente aceitável que qualquer homem casado tenha sexo com quaisquer mulheres – tal como mulheres independentes e solteiras desde que não sejam noivas nem monjas – e que não sejam abrangidas na categoria de parceiras impróprias. Para nós, é difícil compreender a mentalidade que está por trás disto. Das duas, uma: ou tudo isto é perfeitamente aceitável nestas sociedades e todas as mulheres se sentem bem com seus maridos fazendo sexo com outras mulheres, ou as mulheres casadas não se sentem bem com isso mas ficam caladas acerca de tal. No mundo moderno, hoje em dia, não é certamente esse o caso. E assim me parece que, uma vez mais, a lista de comportamentos sexuais impróprios precisa de ser aumentada em vez de ser diminuída, de maneira a incluir todas estas formas diferentes de relacionamentos sexuais problemáticos, destrutivos e baseados na obsessão. Insatisfação Sexual e Desejo de Variar. Então, as questões acerca do comportamento sexual impróprio não são apenas a consideração incorreta e a confusão, tal como considerámos em relação a determinados orifícios do corpo, mas são mais sobre a insatisfação e a avidez. Queremos explorar e experienciar mais e mais. Assim, a questão é a obsessão: o descontentamento e a obsessão. Por causa disto, penso que precisamos de aumentar a lista de comportamentos impróprios para incluirmos coisas como as práticas sexuais de alto risco, em que podemos transmitir ou contrair doenças sexualmente transmissíveis e assim por diante. Quando falamos sobre a questão do descontentamento sexual, precisamos de ter em mente o contexto cultural. Por exemplo, se analisarmos os indianos ou os tibetanos tradicionais, regra geral a maioria deles se sente perfeitamente satisfeita comendo exatamente a mesma coisa, todos os dias das suas vidas – tal como arroz e sopa de lentilhas ou de massa. Os ocidentais modernos não estão inclinados para tal. As pessoas ocidentais gostam da individualidade e da variedade. Fazem parte da nossa cultura. Assim, é o mesmo tanto em relação à sexualidade como em relação à comida. Se fosse normal, na nossa sociedade, comer a mesma coisa todos os dias, então se quiséssemos comer outra coisa isso seria considerado um exemplo de avidez e obsessão pela comida. Então, é compreensível que tal sociedade tenha a mesma atitude em relação à sexualidade. Suponhamos que temos uma certa forma de comportamento sexual com um parceiro, de mútuo acordo. É óbvio que a podíamos expandir, tendo em vista a relatividade que já discutimos antes. Temos uma certa maneira de fazer sexo com o nosso parceiro, quer o parceiro seja do sexo oposto ou do mesmo sexo, quer estejamos paralisados, nós ou o nosso parceiro, ou até se estivermos sem parceiro e a nossa forma de comportamento sexual for a da masturbação. Se tivermos uma certa preferência quanto à prática sexual, então, sob o ponto de vista da cultura asiática tradicional, querermos algo diferente seria apenas devido ao desejo exagerado e à obsessão sexual. É claro, se a nossa preferência sexual for uma que nos traga muita dor e que venha a magoar a outra pessoa, ou se for qualquer tipo de prática sadismo masoquista – os textos relatam práticas sexuais em terra fria e molhada, sobre rochas; mas o Ocidente é mais imaginativo com o sadomasoquismo (perversão sexual) – então, não é obviamente uma forma sexual saudável; é uma forma destrutiva. Mas, embora possamos ter uma maneira preferida de praticar o ato sexual que não seja tão prejudicial como tal, nós ocidentais, contudo, gostaríamos de alguma variedade na nossa vida sexual. Isso não significa necessariamente uma variedade de parceiros, mas uma variedade de maneiras de expressar nosso amor e afeição e ter prazer com outra pessoa. Assim, me parece que precisamos de tomar isso em consideração quando falamos sobre o que é destrutivo sob o ponto de vista ocidental. Penso que precisamos de diferenciar entre o nosso normal desejo cultural pela variedade e o desejo obsessivo de experimentarmos tudo e qualquer coisa devido ao descontentamento e ao fastio. Embora o conjunto de práticas sexuais deva ser decidido mutuamente dentro do relacionamento de cada casal, a pergunta é: “Quais são os limites?” O conjunto de práticas sexuais pode incluir sexo nos chamados “orifícios impróprios”? Mas, em qualquer caso, quaisquer que sejam esses limites, quando nos sentimos completamente descontentes e obsessivos e vamos para além deles, então começamos a entrar em áreas problemáticas e em comportamentos sexuais destrutivos. Essa é a minha ideia pessoal. As Recomendações de Thich Nhat Hanh sobre o Comportamento Sexual Impróprio. Thich Nhat Hanh (1926 - ), um atual mestre budista vietnamita, nos deu uma recomendação muito interessante, e penso que útil, a respeito da ética sexual budista nos dias de hoje. Ele disse que um parceiro impróprio seria alguém com quem não estaríamos dispostos a passar o resto das nossas vidas, considerando que os nossos casamentos não são arranjados pelos nossos pais, como ainda acontece com a maioria das pessoas na Ásia tradicional, e considerando também que escolhemos os nossos próprios maridos e mulheres, e que a maioria de nós tem relações sexuais antes do casamento. Ou seja, se vamos ter relações sexuais com alguém, esse alguém deveria ser uma pessoa com a qual estaríamos dispostos a passar o resto da nossa vida se fosse necessário, digamos, se ela ficasse grávida e assim por diante. E que seríamos felizes de o fazer e não apenas devido a um sentimento de dever. Isso não significa que tenhamos de passar o resto da nossa vida com esta pessoa. O exemplo da gravidez é meramente um exemplo, porque há obviamente pessoas mais velhas e livres que já não podem ter filhos mas que têm atividade sexual com parceiros. A mesma recomendação seria aplicável neste caso. Embora eu não conheça nenhuma referência escrita na qual está recomendação tenha sua base, penso que ela é muito útil para os nossos tempos modernos. Significa que precisamos de evitar o sexo ocasional motivado pela nossa obsessão de praticar sexo com qualquer pessoa encontrada por acaso, sem nos importarmos nem estarmos interessados em ter um relacionamento mais profundo com ela. Na maioria dos casos, esta recomendação lida com a questão de se fazer sexo com uma prostituta. Embora, é claro, possa haver casos em que se desenvolva um relacionamento sério e de amor com uma prostituta. Não Sobrestimar o Sexo. É importante não sobrestimarmos o sexo. Por exemplo, suponhamos que a nossa motivação é dar prazer e felicidade temporária a alguém, como uma expressão de amor, e não apenas à outra pessoa como também a nós próprios. Assim, desde que não neguemos ingenuamente os desconfortos que o acompanham e a realidade do que está dentro do corpo de alguém – ou seja, se tivermos uma visão realista das limitações do sexo – e, repito, desde que nos mantenhamos dentro de certos limites mutuamente acordados com essa pessoa – então, penso que este não é um ato brutalmente destrutivo, à exceção dele perpetuar o nosso samsara. De fato, este tipo saudável de relacionamento sexual pode ser um estágio positivo no desenvolvimento de alguém, relativamente ao cultivo de uma atitude de generosidade, afeição e interesse. Mesmo a respeito da masturbação, muitos psicólogos ocidentais dizem que isso faz parte do desenvolvimento saudável da criança. Se um adolescente entrar em contato com a sua própria sexualidade e puder demonstrar afeição a si mesmo de um modo descontraído e apreciativo, isso ajudará o adolescente a apreciar e a ser capaz de se relacionar sexualmente com os outros de uma maneira mais saudável. Esta é, naturalmente, uma perspectiva ocidental, mas penso que tem uma certa validade, especialmente se tivermos em consideração a nossa maneira de criar as crianças. Os bebês ocidentais não têm o contato corporal quase constante que tradicionalmente os bebês asiáticos têm. Por tradição, a maioria das mães asiáticas mantém os seus bebês nas costas durante o dia, e dormindo com eles durante a noite. Por outro lado, como os bebês ocidentais são normalmente deixados sozinhos no berço ou numa cadeirinha, muitos de nós nos sentimos alienados dos nossos corpos. A masturbação, então, é possivelmente um passo para superar essa alienação. Mas, repito, o importante é não sobrestimarmos toda esta área da sexualidade. Medo do Sexo. Agora, uma pergunta pode ser feita: e se formos obsessivamente contra o sexo? Ou seja: e se a pessoa tiver medo do sexo ou se for frígida? Esta atitude também é doentia, penso eu. Também causa problemas. Mas aqui precisamos de fazer uma distinção: ter medo de matar e ter medo do sexo não é a mesma coisa. Se, por exemplo, alguém estiver com medo de matar, isso não implicaria que matar fosse mais saudável para essa pessoa. Assim, penso que precisamos de fazer uma distinção entre o medo obsessivo do desejo sexual biológico e o medo da compulsão sexual. O medo do impulso biológico é que é doentio, penso eu. Este é um tópico importante para as pessoas que decidem fazer votos de celibato total, como os monges e monjas. Se abandonarmos o sexo por acharmos que qualquer forma de sexo é destrutiva e por termos medo dele, então isto sem dúvida produzirá muitos problemas. Penso que podemos observar isto. Esta atitude, não só quanto aos monges e monjas da tradição budista como também das nossas tradições cristãs, frequentemente os torna muito, muito tensos, cheios de sentimentos de culpa e de todo esse tipo de coisas. Ficam com sentimentos de culpa devido aos seus desejos sexuais biológicos. Mas, sob o ponto de vista budista, o mais adequado seria o medo da própria obsessão sexual. Aqui, “medo” não é a palavra correta. O medo também não é a motivação mais saudável, dado que implicaria fazermos da obsessão um grande drama e algo sólido. “Receio” é uma palavra melhor porque implica simplesmente um forte desejo de não se ter essa obsessão. Se quisermos superar essa obsessão pelo sexo e se decidirmos subsequentemente nos tornarmos monges ou monjas, isso é algo completamente diferente. Essa é uma atitude mais saudável. Tais pessoas se tornam monges e monjas porque não querem ser desviadas por obrigações familiares, e assim por diante, e querem estar numa situação em que seu desejo sexual seja minimizado. Não querem à sua volta circunstâncias externas que sexualmente os estimulem. Aborto. Agora ainda queria falar um pouco sobre outros tópicos relacionados com o sexo: a contracepção e o aborto. Quando falamos sobre o aborto a partir de um ponto de vista budista, o aborto estaria na categoria da ação destrutiva de matar. Não há que negar isso; é terminar a vida de um outro ser. No entanto, poderá haver várias motivações para terminar essa vida. Se a motivação for a preocupação egoísta, como a de não querermos ter a obrigação de tomar conta de um bebê ou a de não querermos perder a nossa aparência física ou qualquer coisa assim, ela torna este ato num pesado ato destrutivo de matar, porque tanto a motivação como o próprio ato são destrutivos. Assim, precisamos de examinar a motivação causal. Que motivo nos levaria a abortar? A nossa motivação pode ser de ingenuidade, pensando que não podemos dar ao bebê uma boa vida ou que não temos recursos para ter mais um bebê. Mas talvez os nossos pais ou outros familiares possam dar ao bebê um bom lar, ou poderíamos dar o bebê para adoção. Por outro lado, a nossa motivação pode ser positiva e compassiva. Se o bebê for grandemente deformado ou mentalmente deficiente, então, desejando que a criança evite todos os problemas e sofrimentos futuros, podemos pensar no aborto. Afinal, há o voto secundário de bodhisattva de se não evitar cometer uma ação destrutiva quando a motivação é o amor e a compaixão. No entanto, nestes casos, precisamos de estar totalmente dispostos a aceitar quaisquer consequências a nível de sofrimento que possamos vir a experienciar nas nossas futuras vidas, a fim de salvar do seu sofrimento a criança ainda não nascida. Com tal atitude, as consequências negativas dessa ação destrutiva, de terminar uma vida, serão menos intensas. Contudo, isto é complicado, dado que não sabemos se a criança será feliz ou não, nem fazemos ideia do quanto a criança poderia vir a ser capaz de superar as suas dificuldades. Ademais, é muito difícil termos unicamente a compaixão e o amor como motivação; eles podem estar facilmente misturados com o desejo egoísta de evitarmos todos os problemas e sofrimentos que teríamos como pais de uma criança tão deficiente. Outra situação muito difícil se verifica quando temos de escolher, enquanto mulher grávida, entre salvar nossa própria vida ou a do feto. Se a opinião médica for a de que a continuação da gravidez, ou o próprio processo de dar à luz, irá resultar na nossa própria morte, a motivação causal para fazer um aborto pode ser a de salvar a nossa própria vida. Embora, por definição, tal motivação seja de auto preocupação e não de interesse pela criança não nascida, cada caso é ligeiramente diferente. Muitos fatores e circunstâncias afetariam a decisão e o peso das consequências cármicas subsequentes. Embora várias motivações causais possam estar envolvidas, os ensinamentos budistas dizem que o que realmente afeta o peso das consequências cármicas é a nossa motivação contemporânea. Consequentemente, se por qualquer razão decidirmos fazer um aborto, precisamos de ter cuidado com o que se está passando na nossa mente e coração durante o início da operação. Isto é mais crucial do que aquilo que nos motivou a ida à clínica. Considerem, por exemplo, o caso de uma menina de 13 anos que ficou grávida por ter sido abusada sexualmente pelo seu pai. A menina e a família podem decidir, por vários motivos, interromper a gravidez. O que estou tentando salientar é a atitude da família, e especialmente a da menina, na altura do aborto. É muito importante que não seja uma atitude de ódio ou hostilidade, especialmente para o bebê que está sendo abortado. A culpa não é dele. Deste modo, é muito importante que no momento do aborto tenhamos pensamentos afetuosos para com o bebê que está sendo abortado. Precisamos de desejar o bem para as suas vidas futuras e, num certo sentido, pedirmos desculpa por esta situação. Isto não torna o aborto num ato construtivo. Afinal, matar é matar. Mas certamente minimiza as consequências negativas subsequentes. No mínimo, penso que é quase impossível para as mulheres que fazem abortos não virem a sofrer mais tarde por quererem saber “como teria sido esse bebê? Se estivesse vivo teria agora quantos anos?” Penso que quase todas as mulheres que fizeram abortos têm esse tipo de sofrimento. Assim, mesmo nesta vida, podemos ver que o aborto é um ato destrutivo porque causa sofrimento. Afinal, a definição de uma ação destrutiva é uma ação que amadurece em sofrimento para a pessoa que a cometeu. Algumas tradições budistas realizam cerimónias para o feto abortado, numa espécie de serviço funerário. Isto é extremamente útil para a mãe, para a restante família e certamente para a criança abortada. É baseado no respeito para com este ser, enquanto ser senciente. Dá-se-lhe um nome e são rezadas preces para seu bem em suas vidas futuras. Mulheres que assistiram a este tipo de serviço funerário acharam-no muito terapêutico e muito útil. Contracepção. A questão do aborto está relacionada com a questão da contracepção. Aqui, a pergunta importante é: “quando é que a vida começa?” Sob o ponto de vista científico ocidental, só quando o embrião tem cerca de vinte e um dias é que a sua matéria física está suficientemente desenvolvida para a transmissão de informação neural. Poderíamos argumentar que este é o começo da vida porque, em certo sentido, é o começo da atividade mental. Por outro lado, sob o ponto de vista budista, depois do continuum mental mais sutil, de alguém que morreu, ter passado pelo período intermédio (bardo), sua vida seguinte se inicia quando se conecta com a substância física do seu corpo seguinte. A pergunta seguinte é: “de acordo com o conceito budista, quando é que acontece essa conexão?” Segundo a tradição budista, a consciência do ser bárdico, antes de renascer, entra pela boca do futuro pai, segue para baixo pelo corpo do pai, entra no esperma e com ele passa para o corpo da futura mãe. Agora, isto é algo que obviamente precisa de ser analisado. Esta explanação deriva do Tantra Guhyasamaja e é dada para que o processo de gerar a mandala das deidades no útero da consorte visualizada seja análogo ao processo do renascimento. Mas será que esta descrição deva ser literalmente interpretada como a explanação de como começa a vida? Como Sua Santidade o Dalai Lama, Tenzin Gyatso (1935 -  ) tem dito muitas vezes, se os cientistas conseguirem provar que certas explanações budistas estão erradas, ele não terá quaisquer problemas em as abandonar e em adotar a explanação científica. Deste modo, precisamos de examinar com lógica a apresentação budista tradicional de como e quando começa a vida. A forma como decidirmos estas questões terá implicações éticas de vasto alcance. Obviamente, se a consciência da futura criança já estiver no esperma antes mesmo da concepção, então seria aborto qualquer forma de contracepção. Mas, então, e no caso do óvulo não vir a fertilizar? E mesmo se fertilizasse, poderia não se implantar na parede uterina. Será que de algum modo a consciência já sabe o que irá acontecer antes de entrar na boca do pai? Ou será que há uma espécie de mecanismo cármico através do qual a consciência não entraria na boca do pai, a menos que houvesse uma certeza cármica de que iria ocorrer uma concepção bem sucedida? E a inseminação artificial, os bebês do tubo de ensaio e a clonagem? Estes, com a teoria budista, são difíceis de explicar a menos que os classifiquemos sob as categorias do nascimento através do calor e da água. Quanto mais investigamos quando começa a vida, mais complicado se torna. De acordo com a explanação budista dos doze elos do surgimento dependente, quando a consciência do futuro-ser entra na base física do seu futuro corpo, ela apenas detém o potencial para a atividade mental. Essa atividade ainda não está funcionando. Só com o elo seguinte, o das faculdades nomeáveis com ou sem forma, é que as potencialidades da consciência começam, passo a passo, se ativando e funcionando. Isto quer dizer que todos os óvulos fertilizados têm o potencial de se tornarem crianças, ou só alguns? Se apenas alguns, então, sob um ponto de vista científico, o que será preciso estar presente para diferenciarmos entre aqueles que têm o potencial de se transformarem em crianças e aqueles que não o têm – por exemplo, aqueles que não se implantam na parede uterina? Podemos assim ver que é muito difícil responder à pergunta: “quando é que a consciência entra realmente na substância física do renascimento seguinte, de modo a que, se você terminasse o renascimento depois desse momento, isso seria matar?” E sob o ponto de vista budista, se a contracepção ocorresse de forma a não permitir que a consciência entre na substância física do seu renascimento seguinte, então não seria uma questão de matar. A questão ética de matar, então, não teria nada a ver com a contracepção. Só precisaríamos de ter cuidado com o comportamento sexual impróprio. Em termos de comportamento sexual impróprio também precisamos de evitar a possibilidade de transmitir ou contrair doenças sexualmente transmissíveis. Isto significa que todas as pessoas portadoras dessas doenças devam permanecer celibatárias para o resto das suas vidas, mesmo pessoas com herpes? Se o uso de preservativos fosse não-ético, mesmo para tais pessoas, então a única alternativa seria a de permanecerem celibatárias. Como Sua Santidade o Dalai Lama disse, estas questões sobre o aborto e a contracepção requerem, antes da tomada de qualquer decisão, uma vasta investigação adicional. Assim, quer usemos contraceptivos ou não, voltamos à mesma questão de antes. Qual é a motivação? Estamos usando a contracepção para darmos rédea solta à nossa obsessão pelo sexo? Então, certamente, o nosso comportamento sexual é destrutivo. Mas, nesse caso, é destrutivo por causa da obsessão e não por causa da contracepção. A Ilegalidade do Aborto. Aqui no México, o aborto é proibido por lei de igual modo no Brasil. Contudo, milhares e milhares de abortos são feitos diariamente, e várias dezenas de milhar de mulheres morrem todos os anos por causa da má prática durante o aborto. Assim, aqui, o aborto não é apenas uma questão ética, é também uma questão legal. Como podemos lidar com isso? Como tentei explicar, sob um ponto de vista budista, se alguém decidir por qualquer razão fazer um aborto, a principal coisa a fazer é tentar minimizar o nível de destrutibilidade da ação como um todo, trabalhando com a motivação. Por exemplo, tentando fazer com que a motivação na altura do aborto não seja de hostilidade para com o feto e, depois do aborto, lhe dar um nome e um funeral adequado. Isto ajudará a minimizar o sofrimento causado pelo término dessa vida. Se decidirmos fazer um aborto, o mesmo princípio é verdadeiro em relação ao modo como fazemos o aborto. Obviamente, precisamos de tentar fazê-lo de uma maneira que minimize perigos de saúde e consequências legais à mãe. Precisamos de investigar muito bem qual a maneira mais segura, em termos de saúde, de se fazer o aborto, e dentro do nosso orçamento. Naturalmente, em casos de extrema pobreza, métodos científicos e higiênicos podem não estar disponíveis, mas certamente alguns métodos são mais seguros do que outros. A questão legal é um assunto diferente e bastante complexo. Precisamos de diferenciar entre o nível de destrutibilidade do ato do aborto em si e o nível de destrutibilidade ao se quebrar a lei de um país. Aqui há dois casos a considerar: um, quando a ação ilegal é destrutiva sob o ponto de vista budista; outro, quando a ação ilegal é construtiva ou éticamente neutra. O aborto não só é ilegal como também é eticamente destrutivo, enquanto que ensinar o budismo numa ditadura comunista ou estacionar nosso carro numa zona de estacionamento proibido podem ser atos ilegais mas não são eticamente destrutivos. Em ambos os casos a pergunta é: ao quebrarmos uma lei civil, acumulamos tendências e hábitos negativos nos nossos continuums mentais que amadurecem em sofrimento nas vidas futuras? Quebrar uma lei civil pode nos trazer sofrimento nesta vida se formos apanhados, presos e punidos. Isto é chamado o “resultado artificial”. Mas podemos não ser apanhados e, assim, não é certo que iremos experienciar quaisquer problemas legais ou penais. E como qualquer ação, pode criar um hábito que nos fará quebrar repetidamente uma lei em particular, embora também não haja certeza quanto a isso. Podemos quebrar certa lei apenas uma vez. Não obstante, quebrar uma lei civil não cria o tipo de tendência e de hábito que amadurece em vidas futuras como experiência de infelicidade. No exemplo do ato ilegal eticamente construtivo, não é assim tão difícil a escolha entre o possível castigo nesta vida e a experiência de felicidade nas vidas futuras. Nos casos de atos eticamente neutros, podemos pensar no voto secundário de bodhisattva de não se evitar as preferências dos outros, desde que suas preferências não sejam destrutivas. Se uma sociedade fizer as coisas de uma determinada maneira, não há necessidade de se causar perturbação insistindo em se fazer as coisas à nossa própria maneira, especialmente quando motivada pelo auto-interesse e pela falta de consideração pelos outros. Agora, no caso de se fazer um aborto, que não só é uma ação destrutiva como também ilegal neste país, repito, penso que a recomendação tem de ser a de evitarmos a ingenuidade e tentarmos minimizar as consequências negativas. A decisão de se fazer ou não um aborto cabe basicamente à mulher grávida, embora o pai e a família do feto possam desempenhar um papel na decisão. Se a decisão for a de se fazer um aborto, então, sem se ser ingénuo sobre as possíveis consequências legais, tentem fazê-lo de tal maneira que os riscos de infelicidade e sofrimento sejam minimizados em todas as áreas – médicas, legais e éticas. Depois, se desejarmos, podemos trabalhar para mudar as leis se elas nos parecerem excessivas. Contudo, quando uma lei é influenciada por um outro sistema religioso, então é muito delicado. Castidade. Qual é a sua opinião pessoal sobre os votos monásticos de castidade? Manter a castidade não vai contra a natureza? Não devíamos ter já ultrapassado isso como uma sociedade? Mantermos a castidade é certamente irmos contra o samsara. Mas, quanto ao irmos contra a natureza, precisamos de examinar mais detalhadamente o que é “natural sob o ponto de vista budista”. Embora fazendo parte do que no Ocidente chamaríamos de “natural”, os impulsos biológicos, na perspectiva budista, fazem parte do mecanismo do samsara. No budismo, o que pretendemos fazer é superar o controlo destes impulsos instintivos que perpetuam o sofrimento e os problemas da nossa existência samsárica incontrolavelmente recorrente. Ao longo do caminho em direção à liberação destes impulsos biológicos, queremos nos tornar cada vez menos deles dependentes e não ser governados por eles. Apesar dos nossos impulsos biológicos, podemos ser prestáveis aos outros desde que não sejamos governados por eles. No Ocidente, muitas pessoas não pensam em Deus como sagrado mas, em vez disso, consideram a natureza como sagrada. Isso significa que consideram a biologia como sagrada. Pensam que o que é natural é automaticamente bom. Por outro lado, o budismo questiona o que surge naturalmente, visto que muitas emoções e atitudes perturbadoras surgem automaticamente, tal como os impulsos que nos levam a agirmos destrutivamente. Precisamos de distinguir com cuidado. Geralmente, os que se tornam monges e monjas ou são pessoas com baixo desejo sexual que o celibato não é para elas nada de especial, ou são pessoas obcecadas pelo sexo que desejam superar o sofrimento que a sua obsessão lhes tem causado. Mas, mesmo no último caso, não querem apenas suprimir os impulsos biológicos, tal como o sexo. Ao tentarem fazê-lo, existe sempre o perigo de que em qualquer momento possam explodir descontroladamente. Esses monásticos trabalham com o apego e a ânsia do desejo que tornam seus impulsos sexuais compulsivos e obsessivos. Com os métodos tântricos de transformação das energias sutis, pode-se transformar essa energia sexual e canalizá-la para algo mais construtivo; para a promoção do caminho espiritual. No entanto, isso não é assim tão fácil de se fazer. Penso também que precisamos de ter em mente que os tibetanos e os indianos, por exemplo, demonstram afeição física por pessoas do mesmo sexo sem que isso tenha qualquer conotação sexual. Como os monges e as monjas normalmente se abraçam e andam de mãos dadas, este tipo de contato físico ajuda-lhes a satisfazer as suas necessidades de afeição e de contato físico. O celibato total não lhes coibe de todo o contato físico nem de demonstrações afetivas. Quando decidimos ter contato sexual com alguém, isso gera karma. Assim, na perspectiva budista, depois de termos tomado essa decisão, que consequências surgem na corrente de eventos cármicos? Quais são as vantagens do celibato? Se decidirmos ter sexo com alguém e manter depois relações sexuais com essa pessoa, estabelecemos uma ligação forte com ela que continuará em vidas futuras. Mas o tipo de ligação e de relacionamento que seguirá depende do tipo de relacionamento sexual que temos com essa pessoa, das nossas próprias motivações e atitudes, da motivação e das atitudes dos nossos parceiros e assim por diante. Muitos fatores irão afetá-lo. E lá por sermos celibatários isso não significa que evitamos todo o tipo de consequências cármicas no que diz respeito à sexualidade. Um celibatário pode perder uma enorme quantidade de tempo e energia pensando em sexo com grande desejo e apego. Tal celibatário pode pensar em fazer sexo com alguém mas não realizar o ato. Isto não cria as mesmas consequências cármicas que o ato físico, mas cria as consequências cármicas do ato mental. Tudo depende do estado mental; do nível de emoções e atitudes perturbantes que a pessoa tem, ou do nível de liberdades que delas a pessoa tem. Dedicação.  Vamos acabar com uma dedicação. Pensemos que qualquer compreensão ou entendimento, que possamos ter obtido e que qualquer força positiva resultante de termos escutado esta palestra e pensado sobre ela, possa crescer cada vez mais de modo a que possamos superar a nossa confusão sobre o sexo. Que possamos usar a nossa sexualidade de uma maneira saudável, sem fazermos do sexo a coisa mais importante da vida, mas apenas parte dela. Que possamos superar quaisquer eventuais obsessões pelo sexo, por forma a usarmos os nossos potenciais e talentos mais inteiramente e evitarmos problemas desnecessários e de modo a melhor ajudarmos a nós próprios e aos outros. Obrigado. Conclusão. Toda discussão sobre sexualidade no budismo gira em torno de atitudes e motivações, e de quais são destrutivas, e trazem infelicidade e problemas. Se queremos evitar os problemas, precisamos evitar essas atitudes destrutivas. Algo que pode ajudar bastante é ter uma atitude realista sobre sexo e não dar uma importância demasiada ao assunto. Fazer sexo não é a mesma coisa que se alimentar. Existe algo mais do que simplesmente uma necessidade biológica. É uma forma de mostrarmos afeto, amor, preocupação, conforto e assim por diante. Mas, novamente, é ingenuidade acharmos que uma boa vida sexual é a solução de todos os problemas. Por outro lado, também é ingenuidade acharmos que existe algo inerentemente “mal” sobre o sexo. Apenas seja realista. www.studybuddhism.com. Abraço. Davi.

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