Texto de Ayya Khema
(1923-1997). É um fenômeno estranho a dificuldade que as pessoas têm de amar a
si mesmas. Alguém pensaria que é a coisa mais fácil do mundo porque estamos
constantemente preocupados conosco. Estamos sempre interessados em quanto podemos
ganhar, quão bem poderemos desempenhar algo, quão confortável algo pode ser. O
Budha mencionou num discurso que "Ele não encontra em nenhum lugar alguém
mais querido do que ele mesmo." Então, com base nisso, porque na verdade é
tão difícil amar a si mesmo? Amar a si mesmo com certeza não significa se
entregar ao desejo. Amar de verdade é uma atitude em relação a si próprio, que
a maioria das pessoas não possui, porque elas conhecem uma quantidade razoável
de coisas sobre si mesmas que não são atraentes. Todas as pessoas têm inúmeras
atitudes, reações, gostos e desgostos sem os quais elas estariam em melhor
situação. Uma opinião é formada a respeito das atitudes de alguém e enquanto as
positivas são apreciadas, as outras causam antipatia. Com base nisso, surge a
supressão daqueles aspectos de si mesmo com os quais não existe satisfação. A
pessoa não quer saber deles e também não os reconhece. Essa é uma das formas de
lidar consigo mesmo, que é prejudicial ao crescimento. Um outro jeito inábil é
desgostar daquela parte de si mesmo que se mostra negativa e cada vez que ela
surge a pessoa critica a si mesma, o que faz com que a situação fique ainda
pior do que antes. Com isso, surge o temor e com frequência a agressão. Se
alguém quiser lidar consigo mesmo de uma forma equilibrada, não traz nenhum
benefício fazer de conta que a parte desagradável não existe, aquelas
tendências agressivas, irritantes, sensuais e presunçosas, fazendo de conta que
está distante da realidade, colocando uma fenda dentro de si. Muito embora uma
pessoa assim possa estar mentalmente sã, a impressão que ela transmite é de não
ser totalmente verdadeira. Todos nós já topamos com pessoas assim, que são
demasiado doces para serem verdadeiras, como resultado da fantasia e da
supressão. Criticar a si mesmo também não funciona. Em ambos os exemplos a
pessoa transfere as suas próprias reações para outras pessoas. A pessoa critica
os outros por suas deficiências, reais ou imaginárias, ou a pessoa não os vê
como seres humanos comuns. Todos vivemos num mundo irreal, devido à delusão
(engano) do ego, mas neste caso é particularmente irreal, porque tudo é
considerado ou como perfeitamente maravilhoso, ou como absolutamente terrível.
A única coisa real é que temos dentro de nós seis raízes. Três raízes benéficas,
(hábeis), e três raízes prejudiciais, (inábeis). As últimas três são a cobiça,
a raiva e a delusão, mas nós também possuímos os seus opostos: generosidade,
amor bondade e sabedoria. Desenvolva o interesse por este assunto. Se você
fizer uma investigação a respeito disto e não ficar ansioso, então poderá com
facilidade aceitar as seis raízes em todas as pessoas, sem nenhuma dificuldade,
desde que você tenha visto essas raízes em si mesmo. São raízes subjacentes ao
comportamento de todos. Só então poderemos olhar para nós mesmos de uma forma
um pouco mais realista, isto é, sem nos criticarmos devido às raízes inábeis,
nem nos elogiarmos devido às raízes hábeis, ao invés disso, aceitar a
existência delas dentro de nós. Poderemos também aceitar os outros com uma
visão mais clara e ter uma maior facilidade nos nossos relacionamentos. Não
sofreremos devido aos desapontamentos e não faremos críticas, porque não
viveremos num mundo onde só exista o branco ou o negro, ou as três raízes
daquilo que é inábil, ou os seus opostos. Tal mundo não existe em lugar nenhum
e a única pessoa que é assim é um Arahant
(santo, iluminado). Para as
demais pessoas é em grande parte uma questão de grau. Os graus de benéfico e
prejudicial são ajustados com tamanha precisão, existindo muito pouca diferença
de graduação em cada um de nós, de forma que isso acaba por não ter
importância. Todos possuem a mesma tarefa, cultivar as tendências hábeis e
extirpar as tendências inábeis. Aparentemente somos todos muito distintos. Isso
também é uma ilusão. Todos enfrentamos os mesmos problemas e também possuímos
as mesmas faculdades para lidar com eles. A única diferença é o tempo de
treinamento que tenhamos tido. Um treinamento que tenha ocorrido ao longo de
muitas vidas terá resultado em um pouco mais de lucidez, isso é tudo. A lucidez
do pensamento provém da purificação das próprias emoções, que é uma tarefa
difícil que precisa ser feita. Mas ela só será realizada com êxito quando não
for uma comoção emocional, mas um trabalho claro e honesto que a pessoa realiza
consigo mesmo. Quando for considerado como nada mais do que isso, o tormento
será eliminado. A imputação "Eu sou tão maravilhoso" ou "Eu sou
terrível" será neutralizada. Nós não somos nem maravilhosos, nem
terríveis. Todos somos seres humanos com todo o potencial e todas as
obstruções. Se alguém puder amar este ser humano, que é este "eu" com
todas as suas faculdades e tendências, então poderá amar aos outros de forma
realista, benéfica e auxiliadora. Mas se alguém fizer uma pausa no meio e amar
aquela parte que seja agradável e tiver antipatia por aquela parte que não é
muito agradável, ele nunca irá se confrontar honestamente com a realidade.
Algum dia ele terá que vê-la, tal como ela é. Essa é uma "área de
trabalho," uma kammatthana. É um assunto simples e interessante
que diz respeito ao coração de cada um. Se olharmos para nós mesmos dessa
maneira, aprenderemos a nos amar de uma forma benéfica. "Tal qual uma mãe,
colocando em risco a própria vida, ama e protege o seu filho, o seu único filho
(...)." Torne-se a sua própria mãe! Se quisermos ter um relacionamento
conosco que seja realista e que conduza ao crescimento, então precisamos nos
tornar nossa própria mãe. Uma mãe sensata sabe distinguir entre aquilo que é
benéfico para o seu filho e aquilo que é prejudicial. Mas ela não deixa de amar
o seu filho quando ele se comporta de modo prejudicial. Esse pode ser o aspecto
mais importante a ser observado em nós mesmos. Todos nós, em uma ocasião ou
outra, nos comportamos de modo prejudicial com o pensamento ou com a linguagem,
ou com a ação. Mais frequentemente com o pensamento, com frequência razoável com
a linguagem e não tão frequentemente com a ação. Então o que fazer com relação
a isso? O que uma mãe faria? Ela diria ao seu filho para não fazer mais aquilo,
continuaria amando a criança tanto quanto sempre amou e daria seguimento à
tarefa de criar o seu filho. Talvez possamos começar a criar a nós mesmos. A
totalidade deste treinamento é uma questão de amadurecimento. Amadurecer é
sabedoria, que infelizmente não está ligada à idade. Se estivesse, seria muito
fácil. A pessoa teria uma certeza. Como não existe isso, a tarefa é árdua, um
trabalho a ser feito. Primeiro vem o reconhecimento, depois aprender a não
condenar, mas compreender: "Assim é como são as coisas." O terceiro
passo é a mudança. O reconhecimento pode ser a parte mais difícil para a maioria
das pessoas, não é fácil ver aquilo que ocorre no nosso interior. Essa é a
parte mais importante e o aspecto mais interessante da contemplação. Levamos
uma vida contemplativa, mas isso não significa sentarmos em meditação durante o
dia todo. Uma vida contemplativa significa que a pessoa considera cada aspecto
daquilo que ocorre como parte do aprendizado. A pessoa permanece introspectiva
em todas as circunstâncias. Quando a pessoa se torna extrovertida, com aquilo
que o Budha chamava de "exuberância da juventude," a pessoa se dirige
ao mundo com os próprios pensamentos, linguagem e ação. A pessoa precisa
controlar-se e regressar para o seu íntimo. Uma vida contemplativa em algumas
ordens religiosas é uma vida de orações. No nosso caminho é uma combinação de
meditação e estilo de vida. A vida contemplativa prossegue no nosso íntimo. A
pessoa pode realizar a mesma tarefa com ou sem a recordação disso. A
contemplação é o aspecto mais importante da introspecção. Não é necessário
ficar sentado durante o dia todo observando a própria respiração. Cada
movimento, cada pensamento, cada palavra pode fazer surgir a compreensão de si
mesmo. Este tipo de trabalho consigo mesmo irá resultar numa profunda segurança
interna, que estará enraizada na realidade. A maioria das pessoas deseja e
anseia por esse tipo de segurança, mas não é nem mesmo capaz de expressar o seu
desejo. Vivendo num mito, desejando ou temendo constantemente, é o oposto de
ter força interior. A sensação de segurança surge quando a pessoa vê a
realidade dentro de si mesma, e por causa disso, a realidade em todos os
demais, passando a aceitá-la. Aceitemos o fato de que o Budha conhecia a
verdade ao afirmar que todos possuímos sete tendências latentes ou obsessões:
desejo sensual, má vontade, ideias especulativas, dúvida, presunção, desejo por
ser e existir, ignorância. Encontre-as em você mesmo. Sorria para elas, não
desate a chorar por causa delas. Sorria e diga: "Bem, aí estão. Vou tomar
uma atitude em relação a vocês”. A vida contemplativa é vivida com frequência
de forma opressiva. Uma certa falta de alegria pode ser compensada pela
extroversão. Mas isso não funciona. A pessoa deveria cultivar um certo
contentamento, mas manter-se introspectivo. Não há nada com o que se preocupar
ou temer, nada que seja tão difícil. Dhamma significa a lei da natureza e essa
lei está manifestada em nós todo o tempo. De que devemos escapar? Não podemos
fugir da lei da natureza. Onde quer
que estejamos, somos o Dhamma, somos impermanentes, (Anicca), insatisfeitos, (Dukkha), sem uma essência, (Anatta). Não importa se estamos sentados aqui
ou na lua. É sempre a mesma coisa. Então precisamos ter uma abordagem serena em
relação às nossas próprias dificuldades e às dos demais, mas sem exuberância e
efusão. Preferivelmente, uma constante introspecção que contenha um tanto de
alegria. Isso é o mais eficaz. Se alguém tiver senso de humor em relação a si
mesmo, será mais fácil amar a si mesmo de forma apropriada. Também será muito
mais fácil amar a todos os demais. Havia um programa na televisão americana
chamado "As Pessoas são Engraçadas." Nós realmente temos as mais
estranhas reações que ao serem observadas e analisadas muitas vezes parecem
absurdas. Nós temos desejos e anseios bem estranhos e imagens irreais de nós mesmos.
É bem verdade que "as pessoas são engraçadas," então porque não ver
esse lado em nós mesmos? Isso facilita aceitar aquilo que nos parece ser tão
inaceitável em nós mesmos e nos outros. Existe um aspecto da existência humana
que não podemos mudar, isto é, que continua ocorrendo a cada momento. Nós já
estamos meditando aqui faz algum tempo. O mundo se preocupa com isso? Ele
continua o seu caminho. O único que se importa, que fica perturbado, é o nosso
próprio coração e mente. Quando há perturbação, agitação, irrealismo e
absurdidade, então existe também a infelicidade. Isso é na verdade
desnecessário. Tudo apenas é. Se aprendermos a abordar todas as ocorrências com
mais equanimidade (imparcialidade), com aceitação, então a tarefa de
purificação será muito mais fácil. Essa é a nossa tarefa, nossa própria
purificação, e só pode ser realizada por nós mesmos. Um dos melhores aspectos
com respeito a isso é que se alguém tiver atenção naquilo que estiver fazendo,
se insistir nisso dia após dia sem esquecimento e continuar meditando sem
esperar grandes resultados, pouco a pouco eles surgirão. Isso, também, é assim.
Enquanto o empenho nessa tarefa persistir, ocorrerá um constante desgaste das
impurezas e dos pensamentos irreais, pois não existe felicidade neles e poucos
vão querer ficar agarrados à infelicidade. Finalmente, a pessoa esgota aquelas
coisas por fazer que estão fora de si mesma. Os livros, dizem todos as mesmas
coisas, as cartas, foram todas escritas, as flores, foram todas aguadas, não
resta mais nada por fazer, exceto olhar para dentro de si. E com a frequente
repetição disso, uma mudança ocorre. Ela poderá ser lenta, mas já que estivemos
aqui por tantas vidas, o que é um dia, um mês, um ano, dez anos? Eles estão
todos transcorrendo, de qualquer maneira. Não há mais nada por fazer e nenhum
outro lugar para ir. A terra se move num círculo, a vida se move do nascimento
para a morte sem que tenhamos, sequer, que nos mover. Tudo acontece sem a nossa
interferência. A única coisa que precisamos fazer é estar conectados com a
realidade. E quando fizermos isso, descobriremos que amar-nos e amar os outros
é uma consequência natural; porque estamos interessados na realidade e essa é a
verdadeira tarefa do coração, amar. Mas só se também tivermos visto o outro
lado da moeda em nós mesmos, e se tivermos feito o trabalho de purificação.
Neste caso, não será mais um esforço ou um empreendimento deliberado, mas se
tornará uma função natural dos nossos sentimentos mais íntimos, dirigido para
dentro, mas luminoso no exterior. A direção para dentro é um aspecto importante
da nossa vida contemplativa. Qualquer coisa que ocorra no nosso íntimo tem
repercussões diretas naquilo que ocorre no exterior. A luminosidade e pureza
interior não podem ser disfarçadas, nem as impurezas. Algumas vezes pensamos
que podemos representar algo que não somos. Isso não é possível. O Budha disse
que apenas conhecemos uma pessoa depois de tê-la ouvido falar muitas vezes e de
ter vivido com ela durante muito tempo. As pessoas em geral tentam vender uma
imagem melhor do que aquilo que elas na verdade são. Assim, é claro, elas ficam
desapontadas consigo mesmas ao fracassarem e igualmente desapontadas com os
outros. Conhecer a si mesmo de forma realista possibilita o amor verdadeiro.
Esse tipo de emoção proporciona o contentamento necessário para esta tarefa na
qual estamos engajados. Ao aceitarmos a nós mesmos como na verdade somos e aos
outros, nossa tarefa de purificação, de ir desgastando as impurezas, será muito
mais fácil. Budismo Theravada. hppt://www.nossacasa.net/shunya/. Abraço. Davi.
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