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AGOSTINHO E A SANTÍSSIMA TRINDADE. Estimulados pelos escritos de Karl Barth
(1886-1968), o teólogo que mais explorou o mistério trinitário no século XX,1 várias
obras importantes sobre a doutrina da Trindade foram escritas. Nas duas décadas
finais do século XX Karl Rahner (1904-1984), Jürgen Moltmann (1926- ),
Leonardo Boff (1938- ), Wolfhart Pannenberg (1928-2014, Colin Gunton
(1941-2003) e Millard Erickson (1932- ), buscaram refletir e reaplicar a
doutrina trinitária, produzindo um grande número de estudos dogmáticos,
bíblicos e históricos.2 O alvo
deste ensaio é expor a compreensão da doutrina trinitariana como formulada por
Santo Agostinho (354-430) de Hipona, que produziu uma obra seminal sobre este
tema, A Trindade, com a qual todos estes escritores
interagem.
Santo Agostinho e A Trindade.
Foi Santo Agostinho
quem deu à tradição ocidental a sua expressão madura e final acerca da
Trindade. Não obstante ser Agostinho mais conhecido através de obras como
as Confissões (sua autobiografia, publicada em 400)
ou A Cidade de Deus (publicada em 426), provavelmente
sua obra prima é o tratado conhecido por A Trindade, que ele
demorou dezesseis anos para redigir – entre 400 e 416. Esta obra está dividida
em duas partes, bem distintas. A primeira, com uma ênfase bíblica, vai do livro
I ao VII. É a seção teológica propriamente dita. A segunda parte, do livro VIII
ao XV apresenta um caráter especulativo psicológico e filosófico, no gênero
analógico. Conforme suas palavras: “Sendo ainda muito jovem, iniciei a
elaboração destes meus livros sobre a Trindade, que é o Deus sumo e verdadeiro.
Agora, entrado em anos, trago-os a público”.3 De
fato, A Trindade é a obra de sua
maturidade. Agostinho pressupôs como uma verdade bíblica que existe um só
Deus que é Trindade, e que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são
simultaneamente distintos e co-essenciais, numericamente um quanto à
substância: O Pai, o Filho e o Espírito Santo, isto é, a própria Trindade, una
e suprema realidade, é a única Coisa a ser fruída [una quaedam summa res],
bem comum de todos. Se é que pode ser chamada Coisa e não, de preferência, a
causa de todas as coisas – se também puder ser chamada causa. Não é fácil
encontrar um nome que possa convir a tanta grandeza e servir para denominar de
maneira adequada a Trindade. A não ser que se diga que é um só Deus, de quem,
por quem e para quem existem todas as coisas (Rm 11,36). Assim, o Pai, o Filho
e o Espírito Santo são, cada um deles, Deus. E os três são um só Deus. Para si
próprio, cada um deles é substância completa e, os três juntos, uma só
substância. O Pai não é o Filho, nem o Espírito Santo. O Filho não é o Pai, nem
o Espírito Santo. E o Espírito Santo não é o Pai nem o Filho. O Pai é só Pai, o
Filho unicamente Filho, e o Espírito Santo unicamente Espírito Santo. Os três
possuem a mesma eternidade, a mesma imutabilidade, a mesma majestade, o mesmo
poder. No Pai está a unidade, no Filho a igualdade e no Espírito Santo a
harmonia entre a unidade e a igualdade. Esses três atributos todos são um só,
por causa do Pai, todos são iguais por causa do Filho e todos são conexos por
causa do Espírito Santo.4 Em nenhum
lugar Agostinho tentou demonstrar biblicamente estas afirmações. “Trata-se de
um dado da revelação que, para ele, as Escrituras proclamam quase a cada
página, e que a ‘fé católica’ (fides catholica)
transmite aos fiéis”.5 Em seu
entendimento, Deus é incompreensível, mas não incognoscível, havendo duas vias
de conhecimento de Deus: a via da eliminação, ou negação (apofática), que consiste em suprimir de Deus todos os
defeitos das criaturas, e a eminência (catafática), que consiste em atribuir a Deus,
elevando-as ao infinito, todas as perfeições: “Todo aquele que refletir sobre
Deus desse modo, embora não chegue a conhecer plenamente o que ele é, contudo –
enquanto pode – como homem piedoso, evitará pensar dele, o que ele não é”.6 Como delineia
John Norman Davidson Kelly (1909-1997), seu “imenso esforço teológico é uma
tentativa de compreensão, sendo esse o exemplo supremo de seu princípio de que
a fé deve preceder a compreensão (praecedit fides, sequitur
intellectus)”. A fé busca, o entendimento encontra; por isso diz o
profeta: Se não crerdes, não entendereis (Is 7.9). Doutro lado, o
entendimento prossegue buscando aquele que a fé encontrou, pois, Deus olha do céu para os filhos dos homens, como é
cantado no salmo sagrado: para ver se alguém que tenha
inteligência e busque a Deus (Sl 13.2). Logo, é para isto que o
homem deve ser inteligente: para buscar a Deus. 7Portanto, nesta
obra, Agostinho, pressupondo a veracidade do testemunho bíblico sobre o ensino
acerca do Deus trino e baseando-se nas decisões conciliares estabelecidas em
Nicéia e Constantinopla, construiu o primeiro tratado verdadeiramente
sistemático da doutrina da Trindade. São contínuas as orações cheias de amor e
confiança que Agostinho dirige a Deus, no correr de sua tarefa de investigar o
mistério da Trindade. E são um testemunho da dependência e ardente súplica, tão
características da oração agostiniana. Constata-se assim estar toda obra
teológica de Agostinho elaborada em clima de oração. Nele está unido a sapientia (“a sabedoria refere-se à contemplação”)
e a scientia (“a ciência diz respeito à ação”), o
esforço na busca de sabedoria espiritual.8
1. A Santíssima
Trindade
Seguiremos aqui os
pontos básicos do resumo que John Norman Davidson Kelly fez da exposição da
doutrina trinitária em Agostinho.9 Esta é
inteiramente fundamentada nas Escrituras, porém, em contraste com a tradição
oriental, que fez da pessoa do Pai o seu ponto de partida, Agostinho principia
com a natureza divina em si mesma. É esta simples e imutável natureza ou
essência que é Trindade.10 A unidade da
Trindade é assim claramente asseverada, eliminando-se rigorosamente “o
arianismo e o subordinacionismo da sua doutrina da Trindade”.11 Portanto,
tudo o que é afirmado de Deus é afirmado igualmente de cada uma das três
pessoas da deidade: “O Deus único e verdadeiro não é somente o Pai, mas o Pai,
o Filho e o Espírito Santo”.12 Como Kelly
nota, diversas consequências se seguem desta ênfase na unidade da natureza
divina. Primeiro, as pessoas da Trindade não são três indivíduos separados,
antes “cada uma das pessoas divinas é idêntica às demais ou à própria
substância divina”, e deve-se afirmar “que cada uma das pessoas habita nas
outras ou é inerente às outras”. Como Agostinho escreveu: Creia o homem no Pai,
no Filho e no Espírito Santo, como um só Deus, grande, onipotente, bom, justo,
misericordioso, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, e tudo o mais
que dele se possa dizer digna e verdadeiramente, conforme a capacidade da
inteligência humana. E quando ouvir dizer que o Pai é um só Deus, não separe o
Filho e o Espírito Santo, porque com ele são um só Deus. Quando ouvir dizer que
o Filho é um só Deus é mister entender assim, mas sem separá-lo do Pai e do
Espírito Santo. E de tal modo diga que existe uma só essência, e não considere
a essência de um ser maior ou melhor do que a do outro e diferente em algum
aspecto. Contudo, não pense que o Pai é o Filho ou Espírito Santo ou qualquer
coisa que uma pessoa em separado diga relação às outras, como por exemplo, o
termo ‘Verbo’ aplica-se somente ao Filho, e Dom afirma-se somente a respeito do
Espírito Santo.13 Segundo,
“tudo o que pertence à natureza divina como tal” deve, numa linguagem exata,
“ser expresso no singular, já que esta natureza é única”. Portanto, embora cada
uma das três pessoas seja incriada, infinita, onipotente, eterna, não há três
incriados, infinitos, onipotentes e eternos, mas apenas um. Os diferentes nomes
aplicados a cada uma das três pessoas na Trindade, traduzem relação recíproca,
tais como: Pai e Filho, e o Dom de ambos, o Espírito Santo. Com efeito, não se
pode dizer que o Pai é a Trindade, ou que o Filho é a Trindade, nem o Dom ser a
Trindade. O que é dito, porém, de cada um dos três em relação a si mesmo, é
dito não no plural, mas no singular, pois referente a uma única realidade: a
própria Trindade.14 Terceiro, “a
Trindade possui uma única e indivisível ação e uma única vontade”. Em outras
palavras, sua operação é “inseparável”,15 isto é, em
relação à ordem contingente as três pessoas atuam como “um único princípio (unum principium)”16 e como as
pessoas são inseparáveis, “assim também operam inseparavelmente”.17 Como exemplo
disto, de acordo com Kelly, Agostinho argumenta que as teofanias, manifestações
de Deus registradas no Antigo Testamento, não devem ser consideradas como
manifestações exclusivamente do Filho. Algumas vezes as teofanias podem ser
atribuídas ao Filho, ou ao Espírito Santo, algumas vezes ao Pai, outras vezes a
todas as três pessoas da deidade. Outras vezes ainda é impossível decidir a
qual das três pessoas atribui-las.18 A dificuldade
que esta teoria sugere é que ela parece ignorar os diversos papéis das três
pessoas. A isto Agostinho responde que, embora seja verdade que o Filho, embora
distinto do Pai, nasceu, sofreu e ressuscitou, “é igualmente verdade que o Pai
cooperou com o Filho” na realização da encarnação, paixão e ressurreição. Era
conveniente para o Filho, entretanto, “em virtude de sua relação com o Pai,
manifestar-se e fazer-se visível”.19 Logo, já que
cada uma das pessoas possui a natureza divina de uma maneira particular, é
apropriado “atribuir a cada uma delas, na operação externa da Divindade, o
papel que lhe é próprio em virtude de Sua origem”.20
2. A distinção das
pessoas
Segundo Agostinho,
a distinção das pessoas se fundamenta nas “suas relações mútuas dentro da
Divindade”. Embora consideradas enquanto substância divina, as pessoas sejam
idênticas, o Pai se distingue enquanto Pai por gerar o Filho, e o Filho se
distingue enquanto Filho por ser gerado. Com respeito às relações mútuas na
Trindade, se aquele que gerou é principio do gerado, o Pai é principio em
referência ao Filho, porque o gerou. Entretanto não é uma investigação de pouca
importância inquirir se o Pai é também principio com relação ao Espírito Santo,
pois está escrito: procede do Pai. Se
assim for, é principio não somente do que gera ou faz (o Filho), mas também da
pessoa que ele dá (o Espírito). Isso lançaria uma possível luz sobre a questão
que a muitos preocupa, sobre a possibilidade de dizer-se que o Espírito Santo
também seja Filho, já que sai do Pai, como se lê no Evangelho (Jo 15.26). Saiu
do Pai, sim, mas não como nascido, mas como Dom, e por isso, não se pode dizer
filho, já que não nasceu como o Unigênito e nem foi criado como nós, que
nascemos para a adoção filial pela graça de Deus.21 O Espírito
Santo, semelhantemente, distingue-se do Pai e do Filho enquanto “outorgado” por
eles, sendo o “dom comum” (donum) de ambos,
“uma espécie de comunhão de Pai e Filho (quaedam patris et filii
communiio), ou, então, o amor que, juntos, Eles derramam em nossos
corações”.22 Surge então a
questão: “o que são, na verdade, os três”? Agostinho reconhece que
tradicionalmente eles são designados como pessoas, mas ele fica descontente com
o termo. Provavelmente a expressão lhe trazia a conotação de indivíduos
separados. Mas ele consente em usar a expressão, por causa da necessidade de
afirmar a distinção dos três contra o modalismo, e com um profundo sentido da
inadequação da linguagem humana.23 Sua teoria
positiva, original e muito importante para a história subsequente da doutrina
da Trindade no ocidente, foi a de que “os três são relações reais ou
subsistentes”. Em outras palavras, toda distinção nas pessoas divinas consiste
numa relação subsistente, mútua, entre elas. O motivo que levou Agostinho a
esta colocação foi o dilema colocado pelos arianos.24 Estes,
baseando-se no esquema aristotélico das categorias, afirmaram que as distinções
na Divindade, se elas existissem, teriam que “ser classificadas sob a categoria
de substância ou de acaso”.25 Na categoria
do acaso não poderia sê-lo, porque em Deus não há nada acidental; se o fossem,
porém, na categoria da substância, então a conclusão seria que existem três
deuses. Agostinho nega ambas as alternativas, explicando que a categoria da
relação é uma alternativa possível. Os três, ele passa a afirmar, são relações
tão reais e eternas como o “gerar, ser gerado e proceder (ou ser outorgado)”,
que fundamentam as relações dentro da Divindade. Não há, pois, senão um bem
simples e, consequentemente, senão um bem imutável – Deus. E este bem criou
todos os bens que, não sendo simples, são, portanto, mutáveis. Digo,
precisamente, criou, isto é, fez, e não gerou. É que o que é gerado de um ser
simples é simples como ele e é o mesmo que aquele que o gerou. A estes dois
seres chamamos Pai e Filho e um e outro com o seu Santo Espírito são um só
Deus. A este Espírito do Pai e do Filho se chama nas Sagradas Escrituras
Espírito Santo por uma espécie de apropriação deste nome. É, porém, distinto do
Pai e do Filho, pois não é nem o Pai nem o Filho. Disse que é distinto mas não é outra
coisa, porque também Ele é igualmente simples, igualmente imutável e
co-eterno. E esta Trindade é um só Deus e não deixa de ser simples por ser
Trindade. (…) É por isso que se chama simples a natureza que nada tem que possa
perder; ou é simples a natureza em que aquele que tem se
identifica com aquilo que tem. [Portanto] chama-se
simples as perfeições que, por excelência e na verdade, constituem a natureza
divina: porque nelas não é a substância uma coisa e a qualidade outra
coisa. 26 O Pai, o
Filho e o Espírito Santo são assim relações, “no sentido de que tudo aquilo que
cada um é, Ele é em relação a um dEles ou a ambos”.27
3. A processão do
Espírito Santo
Agostinho também
procurou explicar o que é a processão do Espírito Santo, ou “em que ela difere
da geração do Filho”.28 Ele
considerou como certo que o Espírito Santo é o amor mútuo do Pai e do Filho (communem qua invicem se diligunt pater et filius caritatem),
o amor comum pelo qual o Pai e o Filho se amam mutuamente.29 Assim,
Agostinho afirma que “o Espírito Santo não é o Pai nem o Filho, mas somente o
Espírito Santo do Pai e do Filho, igual ao Pai e ao Filho e pertencente à
unidade da Trindade”.30Desta maneira, em
relação ao Espírito Santo, o Pai e o Filho formam um único princípio, o que é
inevitável, “pois a relação de ambos” para com o Espírito Santo “é idêntica e
onde não há diferença de relação, a operação dEles é inseparável”. Agostinho,
portanto, ensinou a doutrina da dupla processão do Espírito Santo do Pai e do
Filho (filioque).31 Então, de
acordo com Agostinho, o Pai é autor da processão do Espírito Santo porque Ele
gerou o Filho, e ao gerá-lo tornou-o também fonte a partir do qual o Espírito
procede e já que tudo o que o Filho tem, o tem do Pai, do Pai tem também que
dEle proceda o Espírito Santo. Daqui, porém, não se deve concluir, ele nos
adverte, que o Espírito Santo tenha duas fontes ou princípios.32 Pelo
contrário, “a ação do Pai e do Filho” na processão do Espírito “é comum, assim
como é a ação de todas as três pessoas na criação”. Além disso, não obstante a
dupla processão, o Pai permanece “a fonte primordial”, na medida em que é dEle
que deriva a capacidade do Espírito Santo de proceder do Filho.33 Entenda
também que, assim como o Pai tem a vida em si mesmo, para que dele proceda o
Espírito Santo, assim deu ao Filho para que dele também proceda o mesmo
Espírito Santo; o qual procedeu de ambos, fora do tempo. E pelo fato de
dizer-se que o Espírito Santo procede do Pai, deve-se entender que o Filho
recebe-o do Pai, e então, o Espírito Santo procede também do Filho. Pois o que
o Filho tem, recebe-o do Pai, e assim recebe do Pai para que dele proceda, o
mesmo Espírito Santo.34
Portanto, o
Espírito Santo é algo comum ao Pai e ao Filho. “O Pai é apenas o Pai do Filho,
e o Filho apenas o Filho do Pai; o Espírito, entretanto, é o Espírito tanto do
Pai como do Filho, unindo-os em um vínculo de amor”. Portanto, o Espírito Santo
é o “elo que une, por um lado, o Pai e o Filho, e, por outro lado, Deus e os cristãos.
O Espírito é um dom, dado por Deus, o qual une os cristãos a Deus e aos demais
cristãos. O Espírito Santo forma os elos de união entre os cristãos, dos quais
depende fundamentalmente a unidade da igreja. A igreja é o ‘templo do Espírito
Santo’, e em seu interior o Espírito Santo habita. O mesmo Espírito que une o
Pai e o Filho, tornando-os um, também une os cristãos em uma só igreja”.35
4. A formulação das
“analogias psicológicas”
De acordo com John
Norman D. Kelly, “o uso de analogias tiradas da estrutura da alma humana”,
ainda que afirmada timidamente, é, provavelmente, “a contribuição mais original
de Agostinho à teologia trinitária”.36 A função
destas analogias não é demonstrar que Deus é Trindade, já afirmada nas
Escrituras, mas aprofundar nosso entendimento do mistério da absoluta unidade e
também da distinção real dos três. No sentido estrito, de acordo com Agostinho,
há vestígios da Trindade em todo o lugar, porque as criaturas, na medida em que
existem, “existem por participar das ideias de Deus; portanto, tudo deve refletir”,
embora de forma tênue, a Trindade que as criou.37
Para buscar a
verdadeira imagem da Trindade, entretanto, o homem deve olhar primeiramente
dentro de si, porque as Escrituras representa Deus dizendo: “Façamos [isto é,
os três] o homem à nossa imagem e
à nossa semelhança”. Portanto, mesmo o homem
exterior, isto é, o homem considerado em sua natureza sensível, fornece “uma
certa figura da Trindade” (quandam trinitatis effigiem).38 De acordo com
Kelly, “o processo de percepção, por exemplo, revela três elementos distintos
que são ao mesmo tempo intimamente ligados, dos quais o primeiro, em certo
sentido, gera o segundo, enquanto que o terceiro mantém aos outros dois
unidos”.39 Por exemplo,
o objeto externo (res quam vivemus, a coisa que
vemos), a representação sensível da mente (visio), e a intenção
ou ato de focalizar a mente (intentio; voluntas; intentio
voluntatis, a intenção da vontade). Quando o objeto externo é removido
temos uma segunda trindade, que lhe é superior, pois é localizada inteiramente
dentro da mente.40 Neste
sentido, Agostinho fala da impressão da memória (memoria), a imagem
interna da memória (visio interna), e a intenção ou
disposição da vontade (voluntas). Para a
imagem real, entretanto, da Trindade, devemos olhar no homem interior, ou alma.
Ao comentar a pergunta do Salmo, “por que estás triste, ó minha alma? E por que
me perturbas?”, ele escreveu: “Entendemos, então, que temos algo onde se
encontra a imagem de Deus, a saber, a mente, a razão. A mente invocava a luz de
Deus e a verdade de Deus. Com ela entendemos o que é justo e o que é injusto,
discernimos o verdadeiro do falso… Nosso intelecto, por conseguinte, fala a
nossa alma”.41 Como Kelly
afirma, frequentemente tem sido dito que a principal analogia trinitária
do A Trinitate é a do amante (amans), do objeto amado (id quod amatur) e do amor que os une (amor).42 Porém a
discussão de Agostinho desta trindade é bastante curta, e é apenas “uma
transição” para aquela que ele considera sua mais importante analogia, a da
“atividade da mente enquanto dirigida para si mesma ou, melhor ainda, para
Deus”. Quem poderá compreender a Trindade onipotente? E quem não fala dela,
ainda que não a compreenda? É rara a pessoa que, ao falar da Santíssima
Trindade, saiba o que diz. Discute-se, debate-se, mas ninguém é capaz de
contemplar essa visão, sem paz interior. Quisera meditassem os homens sobre
três coisas que tem dentro de si mesmos, as três bem diferentes da Trindade.
Indico-as, para que se exercitem, e assim experimentem e sintam quão longe
estão desse mistério. Aludo à existência, ao conhecimento e à vontade. De fato
existo, conheço e quero. Existo, sabendo e querendo; sei que existo e quero;
quero existir e conhecer. Repare, quem puder, como é inseparável a vida nessas
três faculdades: uma só vida, uma só inteligência, uma só essência. Como são
inseparáveis os objetos dessa distinção. Distinção, no entanto, que existe!
Cada um está diante de si mesmo. Estude-se, veja e responda-me. Contudo, mesmo
que reflita e me responda, não julgue ter compreendido a essência deste Ser
imutável que está acima de todas as criaturas, o Ser que imutavelmente existe,
imutavelmente sabe e imutavelmente quer. Será porventura graças a essas três
faculdades que há em Deus a Trindade, ou essa tríplice faculdade existe em cada
uma das três pessoas, de modo a serem três em cada uma? Ou ambas as coisas se
realizam de modo admirável, numa simplicidade múltipla, sendo a Trindade o seu
próprio fim infinito, pela qual existe, se conhece e se basta imutavelmente, na
grande abundância de sua Unidade? Quem poderia exprimir facilmente esse
conceito? Quem teria palavras para o exprimir? Quem, de algum modo, ousaria
pronunciar-se temerariamente a esse respeito?43 Esta última
analogia fascinou Agostinho por toda a sua vida, as trindades resultantes
sendo: a) a mente (mens), seu conhecimento de si mesma
(notitia) e seu amor de si mesma (amor);44 b) a memória
(memoria), ou, mais propriamente, “o conhecimento
latente que a mente tem de si mesma”; o entendimento (intelligentia), isto é, “sua apreensão de si mesma à
luz das razões eternas”; e a vontade (voluntas), ou amor
de si mesma, “pela qual este processo de autoconhecimento é posto em
atividade”;45 c) a mente,
enquanto lembrando, conhecendo e amando ao próprio Deus.46 “É, contudo,
a última das três analogias que Agostinho considera a mais satisfatória”.
Agostinho considera que somente quando a mente focalizou a si mesma com todas
as suas potências de lembrança, entendimento e amor em seu Deus é que a Sua
imagem que ela traz em si, corrompida como está pelo pecado, pode ser
plenamente restaurada. Embora se demorando nestas analogias, Agostinho não tem
ilusões quanto às suas imensas limitações. Primeiro, “a imagem de Deus na mente
do homem é, de qualquer maneira, uma imagem remota e imperfeita”. Segundo,
“embora a natureza racional do homem exiba as trindades acima mencionadas, (…)
elas representam faculdades ou atributos que o ser humano possui, enquanto que
a natureza divina é perfeitamente simples”. Terceiro, a memória, entendimento e
vontade operam no homem separadamente, enquanto que as três pessoas divinas
“pertencem-se mutuamente e Sua ação é perfeitamente una e indivisível”.
Finalmente, em Deus os três membros da Trindade são pessoas, mas o mesmo não
ocorre na mente humana. Parafraseado o próprio Agostinho, a imagem da Trindade
se encontra numa pessoa, mas a suprema Trindade é ela própria três pessoas: o
que é um paradoxo, quando alguém reflete que, não obstante isso, os três são
mais inseparavelmente um do que a trindade da mente.47 O fundamento
para seguir esta religião [cristã] é a história e a profecia. Aí se descobre a
disposição da divina Providência, no tempo, em favor do gênero humano, para
reformá-lo e restaura-lo, em vista da posse da vida eterna. Crendo nisso, a
mente vai se purificando num modo de vida ajustado aos preceitos divinos. Isso
a habilitará à percepção das realidades espirituais. Essas realidades não são
nem do passado, nem do futuro, mas são sempre idênticas a si mesmas, imunes de
qualquer mudança temporal. Trata-se do mesmo e único Deus Pai, Filho e Espírito
Santo. Conhecida essa Trindade – o quanto é possível na vida presente – sem
dúvida alguma a mente percebe que toda criatura intelectual, animal e corporal,
recebe dessa mesma Trindade criadora: o ser para ser o
que é; a sua forma; e a direção dentro da
perfeita ordem universal. Não se entenda por aí, porém, que
apenas parcela das criaturas é feita pelo Pai, outra pelo Filho e outra ainda
pelo Espírito Santo. O certo é que todas e cada uma das naturezas individuais
recebe a criação do Pai pelo Filho, no dom do Espírito Santo. Visto que todas
as coisas, substância, essência, natureza ou qualquer termo mais adequado, que
se dê possui ao mesmo tempo estas três propriedades: é algo único, distingue-se por sua forma das demais coisas, e está dentro da ordem universal. 48
Conclusão: louvor a
Deus
Para encerrar,
podemos resumir as contribuições de Agostinho à doutrina trinitariana: (a) Na
explicação da Trindade, ele concebe a natureza divina, antes das pessoas,
separadamente. Sua formula da Trindade é: uma só natureza subsistindo em três
pessoas. Ao contrário, a dos gregos era: três pessoas tendo uma mesma natureza.
Em Agostinho, a divindade única aparece logo. A igualdade das pessoas divinas
também aparece com mais brilho. (b) Outro progresso da doutrina trinitariana de
Agostinho é a insistência em fazer de todas as operações ad extra a obra indistinta das três pessoas, isto
é, as operações exteriores são atribuídas ou apropriadas ao Pai, Filho e
Espírito Santo.49 (c) Enfim,
Agostinho lançou os fundamentos da teoria psicológica das processões,
concernentes à origem do Filho e à do Espírito Santo. Agostinho, juntamente com
os maiores teólogos que lograram vislumbrar as dimensões do mistério trinitário,
costumavam terminar suas obras como orações ardorosas, de louvor e
agradecimento, sempre conscientes de suas limitações: “Ó minha fé, vai avante
na tua confissão. Diz ao Senhor teu Deus: santo, santo, santo é o Senhor meu
Deus. Fomos batizados em teu nome, Pai, Filho e Espírito Santo”.50 O silêncio
reverente da razão deixa o coração extravasar sua admiração. Deus está envolto
em mistério “na luz inacessível” (1Tm 6.13-16):
Portanto, quando
chegarmos à tua presença, cessará o muito que dissemos, mas muito nos ficará
por dizer e tu permanecerás só, tudo em todos (1Cor 15.28), e então eternamente
cantaremos um só cântico, louvando-te em um só movimento, em ti estreitamente
unidos. Senhor, único Deus, Deus Trindade, tudo o que disse de ti nestes
livros, de ti vem. Reconheçam-no os teus, e se algo há de meu, perdoa-me e
perdoem-me os teus. AMÉM.51
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