Budismo Tibetano. Shunya. Grupo de Estudos e Prática Budista. KARMA. O CORAÇÃO É NOSSO JARDIM. O Sutra Avatamsaka é o texto budista que descreve as leis
que governam os milhares de possíveis domínios do universo; domínios de prazer
e de dor, domínios criados pelo fogo, pela água, pelos metais, pelas nuvens ou
até mesmo pelas flores. Cada universo, diz-nos o sutra, segue a
mesma lei básica: em cada um desses domínios, se você plantar uma semente de
manga, terá uma mangueira, e se plantar uma semente de maçã, terá uma macieira.
Assim é em todos os domínios que existem no mundo dos fenômenos da criação. A
lei do karma descreve o modo como causa e efeito regem os
padrões que se repetem através de toda a vida. Karma significa
que nada surge por si mesmo. Cada experiência é condicionada por aquilo que a
precede. Desse modo, nossa vida é uma série de padrões inter relacionados.
Os budistas dizem que a compreensão dessa lei é suficiente para se viver
sabiamente no mundo. O karma existe em muitos níveis
diferentes. Seus padrões governam as imensas formas do universo, tais como as
forças gravitacionais das galáxias, e os mais sutis e diminutos modos pelos
quais, a cada momento, nossas escolhas humanas afetam o nosso estado mental. No
nível da vida física, por exemplo, se uma pessoa olha para um carvalho, ela
pode ver o "carvalho" manifestando-se em algum dos diferentes
estágios de seus padrões vitais. Num determinado estágio do carvalho padrão, o
carvalho existe sob a forma de bolota; num estágio subsequente, ele vai existir
sob a forma de árvore nova; noutro estágio, sob a forma de árvore adulta; e,
ainda noutro, sob a forma de bolota verde crescendo nessa árvore adulta. Em
rigor, não existe o "carvalho" definitivo. Existe apenas o carvalho
padrão através do qual certos elementos seguem as leis cíclicas do karma:
um arranjo específico de água, minerais e a energia solar que o transforma,
infinitas vezes, de bolota em árvore nova e depois em árvore adulta. De modo
semelhante, as tendências e hábitos da nossa mente são padrões kármicos que
repetimos infinitas vezes, como a bolota e o carvalho. Ao abordar esse tema, Budha perguntou:
"O que vocês acham que é maior: a mais alta montanha da Terra ou a pilha
de ossos que representa as vidas que vocês viveram infinitas vezes em cada
domínio governado pelos padrões dos seus karmas? Maior, meus
amigos, é a pilha de ossos; maior do que a mais alta montanha da Terra".
Vivemos num oceano de padrões condicionadores que repetimos infinitas vezes e,
ainda assim, raramente notamos esse processo. Podemos compreender com mais
clareza o funcionamento do karma na nossa vida se olharmos
esse processo de causa e efeito nas nossas atividades comuns e observarmos como
os padrões repetitivos da nossa mente afetam o nosso comportamento. Por
exemplo, nascidos numa certa cultura em determinada época, assimilamos
determinados padrões de hábitos. Se nascermos numa taciturna cultura pesqueira,
aprendemos a ser calados. Se crescermos numa cultura mediterrânea mais expressiva,
talvez expressemos nossos sentimentos com gestos amplos e tenhamos uma maneira
de falar espalhafatosa. Nosso karma social, parental, escolar
e condicionamento linguístico, cria padrões completos de consciência que
determinam o modo como vivenciamos a realidade e o modo como nos expressamos.
Esses padrões e tendências são, muitas vezes, bem mais fortes do que as nossas
intenções conscientes. Quaisquer que sejam as circunstâncias, são os velhos
hábitos que irão criar o modo como vivemos. Lembro de ter ido visitar minha avó
num prédio de apartamentos exclusivo para idosos. A vida ali era tranquila e
sedentária para a maioria dos moradores. O único lugar onde algo acontecia era
no saguão, e os moradores interessados iam até lá para observar quem entrava e
saía. No saguão, havia dois grupos de pessoas. Um grupo sentava-se ali
regularmente e se divertia, jogando cartas e cumprimentando todos os que
passavam. Tinham um relacionamento agradável e amistoso entre si e com as
circunstâncias à sua volta. Do outro lado do saguão, ficavam as pessoas que
gostavam de reclamar. Para elas, havia algo errado com todo mundo que passava
pela porta. Entre uma pessoa que passava e outra, reclamavam, "Você viu
que comida horrível nos serviram hoje?". "Viu o que fizeram com o
quadro de avisos?". "Você sabe para quanto vai subir o nosso
condomínio?". "Sabe o que disse o meu filho a última vez que esteve
aqui?" Esse era um grupo de pessoas cuja principal relação com a vida era
reclamar dela. Cada grupo levou para o edifício um padrão com o qual tinha
vivido durante muitos anos. Circunstâncias e atitudes mentais que se repetem
por muito tempo tornam-se a condição daquilo que chamamos de
"personalidade". Quando perguntaram ao Lama Trungpa Rinpoche (1939-1987)
o que iria renascer nas nossas próximas vidas, ele respondeu brincando:
"Seus maus hábitos". Nossa personalidade é condicionada pelas causas
passadas. Às vezes isso é evidente, mas com muita frequência os hábitos que se
originam do passado distante e esquecido passam despercebidos. Na psicologia
budista, o condicionamento kármico da nossa personalidade é
classificado de acordo com três forças inconscientes básicas e tendências
automáticas da nossa mente. Existem os tipos marcados pelo desejo, cujos
estados mentais mais frequentes estão associados à avidez, à carência, ao
sentimento de não ter o suficiente. Existem os tipos marcados pela aversão, cujo
estado mental mais comum é rechaçar o mundo através do julgamento, do
desagrado, da aversão e do ódio. E existem os tipos marcados pela confusão,
cujos estados mais fundamentais são a letargia, a ilusão e a desconexão, não
sabendo o que fazer a respeito das coisas. Você pode testar qual o tipo que
predomina em você observando sua maneira peculiar de entrar num ambiente. Se
seu condicionamento for mais fortemente aquele do desejo e da carência, você
tenderá a olhar em volta e ver aquilo de que gosta, aquilo que você pode obter;
você verá as coisas que o atraem; observará o que é belo; apreciará um bonito
arranjo de flores; gostará do modo como algumas pessoas estão vestidas;
encontrará alguém sexualmente atraente ou vai imaginar que há
pessoas simpáticas que valerá a pena conhecer. Se você é do tipo aversão, ao
entrar na sala, em vez de ver primeiro aquilo que você deseja, você tenderá a
ver o que está errado. "Ambiente muito barulhento. Não gosto do papel da
parede. As pessoas não estão vestidas adequadamente. Não gosto do jeito como
tudo foi organizado". E se você é uma personalidade confusa, talvez entre
na sala, olhe em volta e não saiba como se relacionar, perguntando a si mesmo:
"O que está acontecendo aqui? Onde eu me encaixo neste ambiente? O que
devo fazer?". Esse condicionamento primário é, na verdade, um processo de
grande influência. Ele cresce e se transforma naquelas forças que levam
sociedades inteiras para a guerra, criam o racismo e dirigem a vida de muitas
pessoas à nossa volta. Quando, pela primeira vez, encontramos em nós mesmos as
forças do desejo e da aversão, da avidez e do ódio, podemos pensar que elas são
inofensivas, contendo um pouquinho só de carência, de desagrado, um
pouquinho de confusão. No entanto, à medida que observamos o nosso
condicionamento, vemos que o medo, a cobiça e a fuga são, na verdade, tão
compulsivos que governam muitos aspectos da nossa personalidade. Pela
observação dessas forças, podemos ver como operam os padrões dokarma.
Quando, na meditação, começamos a olhar atentamente nossa personalidade, em
geral nosso primeiro impulso é procurar livrar-nos dos nossos velhos hábitos e
defesas. De início, a maioria das pessoas acha a sua própria personalidade
difícil, desagradável e até mesmo insípida. A mesma coisa pode acontecer quando
olhamos para o corpo humano. Ele é belo quando visto a distância certa, na
idade certa e à luz certa, mas, quanto mais de perto o olhamos,
mais cheio de defeitos ele se torna. Quando notamos essa imperfeição,
procuramos fazer regime, jogging, tratamento de pele, exercícios e
tirar férias para melhorar o físico. Mas, embora tudo isso possa ser benéfico,
continuamos a estar basicamente presos ao corpo com que nascemos. A
personalidade é ainda mais difícil de ser modificada do que o corpo; contudo, o
propósito da vida espiritual não é fazer com que nos livremos da nossa
personalidade. Parte dela já existia quando nascemos, parte tem sido
condicionada pela nossa vida e cultura e, diga-se o que se quiser, não podemos
viver sem ela. Todos nós, na face desta Terra, temos um corpo e uma
personalidade. Nossa tarefa é aprender muitas coisas sobre esse corpo e sobre
essa mente, e despertar dentro deles. Compreender o jogodokarma é
um aspecto do despertar. Se não estivermos conscientes, nossa vida simplesmente
irá seguir, infinitas vezes, o padrão dos nossos hábitos passados. Mas, se
formos capazes de despertar, estaremos aptos a fazer escolhas conscientes
quanto ao modo de responder às circunstâncias da nossa vida. Nossa resposta
consciente irá então criar o nosso karma futuro. Podemos ser
ou deixar de ser capazes de mudar as circunstâncias externas, mas, com
percepção consciente, podemos sempre mudar nossa atitude interior, e isso é
suficiente para transformar a nossa vida. Mesmo nas piores circunstâncias externas,
podemos escolher se vamos ao encontro da vida com medo e ódio ou com compaixão
e compreensão. A transformação dos padrões da nossa vida sempre se processa no
nosso coração. Para compreender como trabalhar com os padrões kármicos precisamos
observar que okarma tem dois aspectos distintos: o karma que
é o resultado do nosso passado e o karma que as nossas
respostas atuais estão criando para o nosso futuro. Recebemos os resultados da
ação passada; e isso é algo que não podemos mudar. Mas, ao
responder no presente, também criamos um novo karma. Semeamos
as sementes karmicas para colher novos resultados. Em sânscrito, a
palavra "karma" geralmente vem junto com outra palavra, "vipaka", karma-vipaka. Karma significa
"ação" e vipaka, "resultado". Ao lidar com cada
momento da nossa experiência, usamos meios hábeis (conscientes) ou meios
inábeis (inconscientes). Todas as respostas inábeis, como avidez, aversão e
confusão, inevitavelmente criam mais sofrimento e karma doloroso.
As respostas hábeis, baseadas na percepção consciente, no amor e na
receptividade, levam inevitavelmente ao bem-estar e à felicidade. Através de
meios hábeis, podemos criar novos padrões que transformam a nossa vida. Até
mesmo os padrões poderosos baseados na avidez, na aversão e na ilusão contêm
dentro de si as sementes de respostas hábeis. O desejo por prazer pode ser
transformado numa ação natural e compassiva que traz beleza à sociedade e ao
mundo que nos cerca. O temperamento que julga, do tipo aversão, através da
percepção consciente pode transformar-se naquilo que é chamado sabedoria
discriminativa: uma clareza associada à compaixão, uma sabedoria que vê
claramente através de todas as ilusões do mundo e usa a clareza da verdade para
ajudar e curar. Até mesmo a confusão e a tendência a desligar-se da vida podem
ser transformadas numa equanimidade sábia e ampla, num equilíbrio sábio e
compassivo que envolve todas as coisas com paz e compreensão. Tradicionalmente,
o karma é discutido nos ensinamentos budistas em termos de
morte e renascimento. Buda, o sublime, falou de uma visão na noite de sua
iluminação, na qual viu milhares de suas vidas passadas, bem como as de muitos
outros seres, todos morrendo e renascendo de acordo com os resultados daleikármica de
suas ações passadas. Mas não é necessário ter a visão de Buda para compreender
o karma. As mesmas leis kármicasque ele descreveu
agem na nossa vida momento após momento. Podemos ver como a morte e o
renascimento ocorrem a cada dia. A cada dia, nascemos em meio a novas
circunstâncias e experiências, como se fosse uma nova vida. Com efeito, isso
acontece a cada momento. Morremos a todo momento e renascemos no momento
seguinte. Ensina-se que existem quatro tipos de karma no instante
da morte ou em qualquer momento de transição: karma denso, karma imediato, karma habitual
e karma fortuito. Nessa ordem, cada um representa uma
tendência kármica mais forte do que a seguinte. A imagem
tradicional para explicar esse ensinamento é a do gado num curral, com a
porteira aberta. O karma denso é como um touro. É a força das
mais poderosas ações boas ou más que praticamos. Se um touro está no curral,
quando a porteira é aberta, ele é sempre o primeiro a sair. O karma imediato
é a vaca que está mais próxima à porteira. Ele se refere ao estado mental que
está presente no momento da transição. Se a porteira é aberta e não há nenhum
touro no curral, quem sai é a vaca mais próxima à porteira. Se nenhuma vaca
estiver perto da porteira, surge o karma habitual. É a força
do nosso hábito costumeiro. Se não estiver presente nenhum forte estado mental,
a vaca que costuma sair primeiro é a que irá sair primeiro. E, finalmente, se
nenhum forte hábito estiver operando, surge o karma fortuito.
Isto é, se não surgir nenhuma força mais impetuosa, nosso karma será
o resultado fortuito de um número qualquer de condições passadas. À medida que
cada ação (ou nascimento) surge, existem forças que a sustêm e forças que
finalmente a levam a termo. Essas forçaskármicas são
descritas fazendo-se uso da imagem de um jardim. A semente que é plantada é
o karma causal. Fertilizar e regar a semente, cuidar das
plantas, é chamadodekarma sustentador. Quando surgem dificuldades,
trata-se do karma opositor, representado pela seca; mesmo se
plantarmos uma semente viável e a fertilizarmos, se não houver água, ela irá
secar. E então, finalmente, o karma destrutivo é como o fogo
ou os roedores no jardim, que o queimam ou o devoram por completo. Essa é a
natureza da vida em todos os domínios, em todas as circunstâncias criadoras.
Uma condição segue-se à outra e, no entanto, tudo isso está sujeito a mudança.
O karma das nossas circunstâncias exteriores pode mudar com o
agitar da cauda de um cavalo. A qualquer dia, uma imensa fortuna ou a morte
podem chegar para qualquer um de nós. O resultado kármico dos
padrões das nossas ações não decorre unicamente da nossa ação. À
medida que temos uma intenção e agimos, criamos karma; assim, uma
outra chave para compreender a criação do karma é a de
tornarmo-nos conscientes da intenção. O coração é o nosso jardim e, junto com
cada ação, existe urna intenção plantada como uma semente. O resultado dos
padrões do nosso karma é o fruto dessas sementes. Por exemplo,
podemos usar uma faca afiada para cortar alguém; se a nossa intenção é ferir,
seremos um assassino. Isso leva a certos resultados kármicos.
Podemos executar uma ação quase idêntica, usando uma faca afiada para cortar
alguém, mas, se somos um cirurgião, nossa intenção é curar e salvar uma vida. A
ação é a mesma, mas, no entanto, dependendo de seu propósito ou intenção, tanto
poderá ser um ato terrível quanto um gesto de compaixão. Na nossa vida
cotidiana podemos estudar o poder da intenção para criar o karma.
Podemos começar prestando atenção às nossas muitas ações que surgem ao longo do
dia em resposta aos problemas. De um modo automático, talvez ignoremos
circunstâncias difíceis ou respondamos de maneira crítica ou áspera. Talvez
procuremos proteger ou defender o nosso próprio interesse. Em todos esses
casos, a intenção no nosso coração estará associada à avidez, à aversão ou à
ilusão, criando no futuro um karma de sofrimento que irá nos
trazer uma resposta equivalente. Se, em vez disso, quando essas circunstâncias
difíceis surgem na nossa vida levarmos a elas o desejo de compreender, de
aprender, de libertar ou de trazer harmonia e criar paz, iremos falar e agir
com uma intenção inerente. Nossas ações talvez sejam bastante semelhantes,
nossas palavras talvez sejam semelhantes, mas, se a nossa intenção é criar paz
e trazer harmonia, essa intenção irá criar um tipo muito diferente de
resultado kármico. Isso é fácil de se verificar nos relacionamentos
íntimos, pessoais ou profissionais. Podemos dizer uma mesma frase ao nosso
parceiro ou amigo e, se o espírito tácito ao proferi-la for: "Eu amo você
e espero que nós dois entendamos o que está acontecendo", iremos obter um tipo
de resposta. Se pronunciarmos a mesma frase com uma atitude subjacente de
censura, defesa e crítica, em um tom sutil de: "O que há de errado com
você?", ela dará outro rumo ao nosso diálogo e poderá, facilmente,
converter-se em uma briga.(...) A intenção ou atitude que levamos a cada
situação da vida determina o tipo de karma que criamos. Dia a
dia, momento a momento, podemos começar a ver a criação dos padrões de karma baseados
nas intenções do nosso coração. Quando prestamos atenção, torna-se possível
conscientizar-nos mais das nossas intenções e do estado do nosso coração à
medida que elas emergem junto com as ações e palavras que são as nossas
respostas. Em geral, não temos consciência das nossas intenções. Por exemplo,
uma pessoa decide parar de fumar. Lá pelo meio do dia surge o desejo de fumar.
Ela coloca a mão no bolso, pega o maço, tira um cigarro do maço, leva-o à boca,
acende-o e começa a dar uma bela tragada. Nesse instante, ela acorda e lembra:
"Ah, eu ia parar de fumar!". Enquanto estava no piloto automático e
sem percepção consciente, essa pessoa realizou todos os movimentos habituais de
pegar um cigarro e acendê-lo. Não é possível mudar os padrões do nosso
comportamento ou criar novas condições kármicas até que
tenhamos nos tornado presentes e despertos no início da ação. Caso contrário, a
ação já aconteceu. Como diz o velho ditado: "É como fechar a porteira
depois que o cavalo fugiu do estábulo". O desenvolvimento da percepção
consciente nameditação permite que nos tornemos atentos ou
conscientes o suficiente para reconhecer nosso coração e nossas intenções à
medida que atravessamos o dia. Podemos estar conscientes dos diferentes estados
de medo, carência, confusão, ciúme e raiva. Podemos saber quando o perdão, o
amor ou a generosidade estão ligados às nossas ações. Quando sabemos qual é o
estado do nosso coração, podemos começar a escolher os padrões ou condições que
iremos seguir, o tipo de karma que criamos. Tente trabalhar com esse
tipo de percepção consciente na sua vida. Pratique-a com suas palavras. Preste
a mais cuidadosa atenção e observe o estado do seu coração; observe a intenção,
quando você falar, mesmo sobre o assunto mais insignificante. Sua intenção é
ser protegido, obter coisas, defender-se? Sua intenção é abrir-se com
interesse, compaixão e amor?. Uma vez observada a intenção, conscientize-se da
resposta que vem à tona. Mesmo que seja uma resposta difícil, continue com a
intenção hábil por algum tempo e observe os tipos de respostas que ela traz. Se
a sua intenção era inábil ou maldosa, tente mudá-la e ver o que acontece depois
de algum tempo. De início, é possível que você experimente apenas os resultados
de sua atitude defensiva anterior. Mas persista na sua boa intenção e observe
os tipos de respostas que ela finalmente irá evocar. Para compreender como
o karma age, basta olhar para os seus relacionamentos mais
pessoais ou as suas interações mais simples. Escolha um relacionamento ou local
específicos e experimente. Tente responder somente quando seu coração estiver
receptivo e generoso. Quando não se sentir assim, espere e deixe passar os
sentimentos negativos. Como instruiu Buda, deixe que suas palavras e ações
aflorem suavemente, com um intento generoso, no tempo devido, e para benefício
delas próprias. À medida que você cultiva uma intenção generosa e hábil, você
poderá praticá-la no posto de gasolina ou no supermercado, no lugar onde
trabalha ou no trânsito. A intenção que trazemos conosco cria o padrão que dela
resulta. Ao tornar-nos mais conscientes da nossa intenção e ação, o karma mostra-se
a nós com mais clareza. O fruto kármico parece amadurecer mais
rápido, talvez apenas porque nós o percebemos. Ao prestar atenção, o fruto de
tudo aquilo que fazemos, hábil ou inabilmente, parece manifestar-se mais
depressa. À medida que estudarmos essa lei de causa e efeito, iremos ver que
toda vez que nós, ou o outro, agimos de um modo baseado na avidez, no ódio, no
preconceito, no julgamento ou na ilusão, os resultados irão inevitavelmente
causar algum sofrimento. Começamos a ver como aqueles que nos ferem também
criam um inevitável sofrimento para si mesmos. A lei de causa e efeito nos faz
querer prestar mais atenção e, ao observá-la, podemos ver diretamente os
estilos hábeis e inábeis no nosso próprio coração. A atenção dada ao karma mostra-nos como
as vidas são moldadas pela intenção do coração. Quando lhe pediram para
explicar a lei do karma de um modo bem simples, Ruth Denison (1922-
), conhecida instrutora de vipassana, assim se expressou: "Karma quer
dizer que você nunca escapa impune". A cada dia, estamos semeando as
sementes do karma. Existe apenas um único local no qual podemos
exercer alguma influência sobre o karma: na intenção das nossas
ações. Na verdade, existe apenas um karma pessoal que podemos
mudar no mundo todo, o nosso próprio. Porém, aquilo que fazemos com o nosso
coração afeta o mundo todo. Se pudermos desfazer os nós kármicos do
nosso coração, o fato de sermos todos interligados irá, inevitavelmente, trazer
a cura para o karma de outra pessoa. Corno disse um ex-prisioneiro de
guerra ao visitar um colega sobrevivente: "Você já perdoou aqueles que o
prenderam?". O sobrevivente respondeu: "Não, não os perdoei. Nunca os
perdoarei". E o primeiro veterano disse: "Então, de algum modo, eles
ainda conservam você prisioneiro". Quando minha mulher e eu viajávamos
pela Índia há alguns anos, ela teve a visão muito dolorosa de um de
seus irmãos morrendo. De início, pensei que aquilo fosse parte de um processo
de morte/renascimento na sua meditação. No dia seguinte, ela teve uma segunda
visão do irmão, agora como guia espiritual, acompanhado de dois índios
americanos e oferecendo a ela apoio e orientação. Cerca de uma
semana mais tarde, chegou um telegrama para o ashram onde
estávamos, em Monte Abu, no Ragistão, estado da Índia. Pesarosamente, minha mulher era informada de que seu irmão morrera,
exatamente do modo como ela o vira morrer. O telegrama fora enviado no dia em
que ela teve a visão. Estando do outro lado do mundo, como teria ela sido capaz
de ver a morte do irmão? Isso foi possível porque todos nós estamos
interligados. E, porque é assim, mudar um coração afeta todos os corações e
o karma de todo o planeta. Num retiro que dirigi há alguns
anos, uma mulher lutava contra as consequências dolorosas de abuso sofrido no
início da sua vida. Ela sentira raiva, depressão e dor durante muitos anos.
Fizera terapia e meditação, atravessando um longo processo para curar essas
feridas. Finalmente, nesse retiro, ela chegou a um estado de perdão para com o
homem que havia abusado dela. Chorou com profundo perdão, não pelo ato em si,
que jamais pode ser justificado, mas porque ela não queria mais carregar a
amargura e o ódio no seu coração. Acabado o retiro, ela voltou para casa e
encontrou uma carta à sua espera na caixa de correspondência. A carta havia
sido escrita pelo homem que abusara dela e com o qual não tivera contato por
quinze anos. Embora, na maioria dos casos, as pessoas que cometem abuso neguem
veementemente suas ações apesar do perdão, algo tinha mudado a mente daquele
homem. Ele escreveu: "Por muitas razões, sinto-me compelido a lhe
escrever. Pensei muito em você esta semana. Sei que lhe causei grande dano e
sofrimento, e que também trouxe grande sofrimento para mim. Mas quero apenas
pedir o seu perdão. Não sei o que mais posso dizer". E então ela olhou a
data no alto da carta. Fora escrita no mesmo dia em que ela completou seu
trabalho interior de perdão. Existe uma famosa história hindu sobre dois reinos
que eram, ambos, governados em nome de Krishna. Olhando lá do alto,
dos céus, Krishna decidiu visitá-los e ver o que estava sendo feito
em seu nome. Desceu dos céus e surgiu diante da corte de um dos reis. Esse rei
era conhecido por ser depravado, cruel, avarento e invejoso. Krishna surgiu
em sua corte envolto no esplendor da luz celestial. O rei prostrou-se diante
dele e disse: "Deus Krishna, vieste me visitar". Krishna respondeu:
"Sim. Quero confiar-te unia tarefa. Eu gostaria que viajasses por todas as
províncias do teu reino e tentasses encontrar para mim uma pessoa realmente
boa". O rei viajou por todas as províncias de seu reino, falando com as
castas superiores e com as inferiores, com religiosos e agricultores, com
artesãos e curadores. Finalmente, retornou à sala do trono e esperou pelo
reaparecimento do deus Krishna. Quando Krishna surgiu,
o rei prostrou-se e disse: "Meu Senhor, cumpri tuas ordens. Viajei de alto
a baixo por todo o meu reino, mas não encontrei uma só pessoa boa.
Embora algumas delas tenham realizado algumas boas ações, quando as conhecia
melhor eu via que mesmo suas melhores ações acabavam sendo egoístas, interesseiras,
coniventes ou desonestas. Não consegui encontrar uma única pessoa boa". E
então Krishna foi à outra corte, governada por uma famosa
rainha chamada Dhammaraja. Essa rainha era conhecida por ser
gentil, graciosa, dedicada e generosa. E, do mesmo modo, Krishna deu-lhe
uma tarefa. "Eu gostaria que viajasses por todo o teu reino e encontrasses
para mim uma pessoa realmente má". E assim a rainha Dhammaraja percorreu
todas as províncias do seu reino, falando com as castas superiores e com as
inferiores, com agricultores, carpinteiros, enfermeiras e religiosos. Depois de
longa busca, a rainha retornou à sua corte e Krishna reapareceu.
Ela prostrou-se e disse: "Meu Senhor, fiz o que me pediste, mas falhei na
minha tarefa. Percorri todas as terras e vi muitas pessoas que se comportam
desastradamente, que são mal orientadas e agem de uma maneira que gera
sofrimento. No entanto, quando as ouvi de fato, não consegui encontrar nenhuma
pessoa verdadeiramente má, apenas pessoas mal orientadas. Suas ações sempre vêm
do medo, da ilusão e do equívoco". Em ambos os reinos, as circunstâncias
da vida eram governadas pelo espírito dos governantes, e o que eles encontraram
era um reflexo do seu próprio coração. À medida que prestarmos atenção e
compreendermos o nosso coração e desenvolvermos as respostas hábeis da
sabedoria e da compaixão, estaremos realizando nossa parte para pacificar toda
a Terra. Através do nosso trabalho e criatividade, podemos fazer surgir na
nossa vida circunstâncias exteriores benéficas. No entanto, a maioria das
coisas que nos acontecem, o local onde nascemos, quando morremos, as grandes
mudanças que arrastam nossa vida e o mundo à nossa volta são o resultado de
padrões kármicos antigos e influentes. Esses, não podemos
mudar. Eles vêm à nós como o vento e o mau tempo. A única previsão
meteorológica que podemos garantir é que essas condições
continuarão a mudar. No processo de compreender o karma, precisamos
responder a uma pergunta simples: Como nos relacionamos com essas condições
mutáveis?. O tipo de universo que criamos, o que decidimos plantar, o que
fazemos nascer no jardim do nosso coração - isso irá criar o nosso futuro. Buda
começa os seus ensinamentos na grande Dhammapada dizendo:
Somos aquilo que
pensamos.
Tudo o que somos
nasce dos nossos pensamentos.
Com o nosso
pensamento, construímos o mundo.
Fale ou aja com uma
mente impura,
e os problemas o
seguirão como uma carroça segue a parelha de bois.
Somos aquilo que
pensamos.
Tudo o que somos
nasce dos nossos pensamentos.
Com o nosso
pensamento construímos o mundo.
Fale ou aja com uma
mente pura
E a felicidade o
seguirá
Como uma sombra,
inabalável.
A longo prazo, nada
possuímos nesta Terra, nem mesmo o nosso corpo. Mas, através das
nossas intenções, podemos moldar ou direcionar os padrões do nosso coração e
mente. Podemos plantar no nosso coração sementes que irão criar o tipo de reino
que será o mundo, seja ele depravado e mau ou bom e compassivo. Através da
simples percepção consciente da nossa intenção a cada momento, podemos plantar
um esplêndido jardim, criar padrões de bem-estar e felicidade que perdurarão
muito mais do que a nossa personalidade e a nossa vida limitada. Sylvia Boorstein,
espiritualista oriental americana, instrutora de vipassana,
exemplifica esse poder com uma história sobre um bom amigo seu, médico famoso
que durante muitos anos foi presidente da Associação Psiquiátrica Americana.
Ele era conhecido como um cavalheiro, um homem íntegro e gentil, que levava uma
grande alegria a tudo na sua vida. Ele sempre dedicava um respeito profundo aos
pacientes e colegas. Depois que se aposentou e envelheceu, começou a ficar
senil. Perdeu a memória e a capacidade de reconhecer as pessoas. Ainda vivia em
casa e a esposa ajudava a cuidar dele. Sendo amigos de longa data, Sylvia e Saymour,
seu marido e também psiquiatra, certa vez foram convidados a jantar em sua
casa. Já fazia algum tempo que não o viam e imaginavam se a sua senilidade não
teria aumentado. Chegaram à porta com uma garrafa de vinho e tocaram a
campainha. Ele abriu a poria e olhou-os com uma expressão vazia que não
mostrava nenhum reconhecimento de quem eles seriam, embora tivessem sido amigos
por muitos anos. E então sorriu e disse: "Não sei quem são vocês, mas
pouco importa, façam o favor de entrar e fiquem à vontade na minha casa",
oferecendo-lhes a mesma amabilidade com que tinha vivido durante toda a sua
vida. Os padrões kármicos que criamos com o nosso coração
transcendem as limitações do tempo e do espaço. Despertar um coração compassivo
e sábio em resposta a todas as circunstâncias é tornar-se Buda. Quando
despertamos o Buda dentro de nós, despertamos para a força universal do
espírito que pode trazer compaixão e compreensão ao mundo como umtodo. Mahatma Gandhi (1869-1948)
chamava esse poder de "força da alma". Ela traz força quando uma ação
firme é necessária. Traz imenso amor e perdão, embora também defenda e fale a
verdade. É esse poder do nosso coração que traz sabedoria e liberdade em
qualquer circunstância, e que faz viver o reino do espírito aqui na Terra.
Para Gandhi, esse espírito estava sempre ligado ao seu coração,
sempre aberto para ouvir e pronto para responder ao mundo, compartilhando as
bênçãos da compaixão com todos os seres: "Além da minha não
cooperação, existe sempre o mais entusiástico desejo de cooperar, ao menor
pretexto, mesmo com o pior dos meus opositores. Para mim, um mortal muito
imperfeito está sempre necessitado da graça de Deus, sempre necessitado do Dharma.
Ninguém está além da redenção". Um caminho com o coração. Por Jack Kornfield. Shunya.
Grupo de Estudo de Prática Budista. Abraço. Davi.
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