quinta-feira, 15 de abril de 2021

APRESENTAÇÃO IV

 

Religião Afro-brasileira. Candomblé.  Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Tradução de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018). Capítulo I. APRESENTAÇÃO IV. Foi Edison de Souza Carneiro (1912-1972) quem primeiro chamou a atenção dos estudiosos sobre esta parte da iniciação, mas na realidade parece que certas sequências do ritual, que tinham sido descritas antes dele, não constituíam mais do que testes de verificação, dos quais os autores ignoravam a verdadeira função. Com efeito, faz-se dançar as candidatas ao som dos tambores sagrados e, ao surgir o leit-motiv (estado de espírito) do seu Orixá, o cavalo deve imediatamente cair em transe. Se o transe não se produz, recomeça-se o cântico sete, catorze e até vinte e uma vezes ao todo; e somente se a candidata não recebeu seu santo até o vigésimo-primeiro cântico é que se pode deduzir que algum erro foi cometido. Trata-se, bem entendido, de rito preliminar, pois se o santo já tivesse sido colocado na cabeça, nada mais haveria a fazer. Portanto, não se deve confundir tal verificação com a prova do fogo, que é verdadeiramente uma prova final e que consiste em passar as mãos nas chamas ou engolir um carvão ardente; este rito não parece obrigatório, mas é frequentemente praticado (podendo, além disso, ter lugar tanto nas cerimônias públicas quanto na iniciação), tem por objetivo verificar a veracidade do transe, desmascarando os casos possíveis de simulação. De fato, é compreensível a utilidade de uma verificação do estado de completa inconsciência das filhas de santo antes das cerimônias derradeiras, uma vez que não devem saber o que com elas foi feito no decorrer da iniciação, tudo esquecendo ao regressarem à vida profana. Porém o que se pretende então, como se vê, é verificar a autenticidade de um estado psíquico, e não a personalidade ou a identidade de um verdadeiro deus. A fixação do Orixá na cabeça da filha não se faz senão lentamente, etapa por etapa, desde a entrada no santuário até o tenebroso mergulho que lhe marca o fim. O caráter progressivo destas etapas se manifesta por um conjunto de símbolos: os cabelos são primeiro cortados com uma tesoura, depois rapados; o crânio é primeiro regado com o sangue de animais de duas patas, depois de quatro patas; a carne é primeiro tatuada, depois são abertas incisões, etc. Durante todas estas etapas, a candidata vive num aposento pequeno, camarinha em português, aliaché em africano, sob os cuidados da segunda sacerdotisa, a "mãe pequena". Não tem o direito de falar aos visitantes de candomblé, só pode se comunicar com eles batendo uma das mãos contra a outra, o que se chama pa6. Algumas vezes traz no tornozelo, como sinal de submissão, uma pulseira de guizos, o xaôro. Cada uma das etapas se m1cia por um sacrifício a Exú, intermediário obrigatório entre os homens e os Orixá, - e outro aos Eguns, isto é, não a todos os mortos em geral, mas somente aos antepassados da candidata. No decorre da primeira cerimônia, os cabelos são cortados apenas com uma tesoura para facilitar a descida do deus; a cabeça é regada com o sangue de aves, e previamente já o fora também com uma infusão das ervas do santo; a filha, então, cai em estado de transe. No decorrer desta primeira cerimônia, que se segue imediatamente ao banho, à mudança de trajes, e à entronização de que já falamos, é que se faz ao mesmo tempo, em geral, a lavagem das contas, o bori, tudo de mistura com esta primeira fixação da divindade. Fixação, como vemos, ainda leve, pois até este momento não foi ainda verificada a afirmação do babalaô, Muitos meses passarão entre esta primeira fixação e a última, no decorrer dos quais terão lugar os "ritos de passagem", para empregar a expressão de Arnald Van Gennep (1873-1957), assim como os da confirmação, já citados. É no decorrer deste período intermediário que se faz a educação da esposa do Orixá, como a candidata passa então a ser chamada: yaô ou yauô. É verdade que esta, em geral, conhece os cânticos e as danças, pois desde a mais tenra infância viveu à sombra dos candomblés; assistiu já às festas, já conhece muita coisa; mas é preciso que se aperfeiçoe nesse conhecimento, passando por assim dizer da experiência empírica ao conhecimento organizado. Deve aprender termos nagô, ouvir os mitos explicativos, familiarizar-se com os deveres e obrigações de sua tarefa futura. É a ''escola da selva" transplantada da África para a cidade da Bahia. O termo "escola" é bastante exato; um de meus informantes comparava a estada da candidata na aliaché à escola primária, dizendo que a instrução prossegue pela vida toda; se quisermos atingir os graus mais elevados da hierarquia, é preciso passar em seguida pela escola secundária (...). Como em todos os estados de passagem, nos quais a personalidade está morta sem ter sido ainda substituída por nova, o corpo da yaô, no decorrer deste período, está em tal estado de vulnerabilidade que toda uma série de eho se torna necessária; alguns destes tabus a acompanharão pela vida toda, como por exemplo a interdição de comer os alimentos eho de seu próprio Orixá; mas outros não valem senão para o período intermediário e desaparecem depois. Trata-se de proibições de ordem alimentar e principalmente de ordem sexual. Durante toda a iniciação, é preciso que se conserve "limpa de corpo", isto é, sem nenhuma relação com homens. O que, entre parêntesis, destrói certa lenda ainda viva entre os brancos que faz da aliaché um aposento de orgias e que pretende que o babalorixá aproveita do estado de submissão, de inconsciência destas mulheres, para delas abusar. Se algumas vezes casos deste gênero se produzem, o que é possível, em todo o caso não se passam senão em terreiros em franca decomposição, mas não nos tradicionais. Com efeito, o babalorixá temeria muito atrair a cólera divina com a violação de um eho, e a punição de seu gesto seria de fato automática. Os dias se sucedem: com o fim de evitar qualquer encontro desagradável, vai a yauô, acompanhada da "mãe pequena", tomar seu banho na f6nte sagrada enquanto a noite ainda não se dissipou completamente. Totalmente despida, é friccionada com "sabão da Costa". Depois regressa ao santuário, onde aprende os segredos do candomblé. Todavia, o termo de segredo não é muito exato, pois não se trata de modo nenhum de lhe transmitir ensinamentos esotéricos. Ensinam-lhe simplesmente o que seu estado futuro de "filha de santo" exige que saiba. Trabalha também na confecção das vestes litúrgicas que envergará no momento da cerimônia de saída, ou dos trajes que usará, mais tarde, durante as grandes festas públicas, o que tudo fica guardado no terreiro. De vez em quando uma cerimônia, como por exemplo a da confirmação do nome do Orixá dono de sua cabeça, corta a monotonia de seus dias. Toda esta parte da iniciação, assim como aquela que imediatamente a segue, está colocada sob o signo de Oxalá. Trata-se de um rito de criação: uma nova personalidade está em vias de ser modelada. Oxalá é justamente o deus da criação. Foi ele o encarregado pela divindade suprema, Olorum, de fabricar a terra e o mar; não pôde, na verdade, se desincumbir inteiramente da missão por ter bebido vinho de palma ~m demasia no decorrer da viagem; isto não impede, porém, que com o auxílio de Odudua, seja realmente um dos criadores do mundo. Em todo o caso, foi quem criou sozinho o homem que o habita, quem modelou o primeiro casal, Okikischi e Iffé. Vai, pois, presidir toda a parte da iniciação que se segue aos ritos preliminares de entrada no candomblé, e este patrocínio de Oxalá é simbolizado pelo uso de vestimentas brancas por parte da yauô, o branco sendo a cor de Oxalá. Terminada a aprendizagem, confirmado o Orixá, resta "fixar" o santo mais fortemente e de maneira definitiva, à cabeça. Começa-se, como na primeira parte, por oferecer sacrifícios a Exú e aos Eguns. Raspa-se inteiramente o crânio da candidata com uma faca virgem; seja para que o santo possa penetrar por qualquer orifício, como afirmam alguns habitantes da Bahia, seja para levar a candidata ao estado de criancinha que vai nascer para uma vida nova, o que me parece mais verossímil, - o certo é que frequentemente a depilação se estende aos pelos das axilas, do púbis, de todas as partes do corpo, é completa; O que confirma esta última suposição é que as filhas que vi na camarinha, deitadas por terra e recobertas por um grande véu branco, nesse momento preciso da iniciação, se pareciam estranhamente com larvas que esperam o momento de se metamorfosear em borboletas. Depois da depilação, tem lugar a lavagem da cabeça com uma infusão de ervas; outras ervas são igualmente enfiadas na boca, para serem engolidas. Tal lavagem tem grande importância, pois é o que determina a possessão; por isso o segredo de sua composição é ciosamente guardado. Manuel Raimundo Querino (1851-1923) afirma que a maconha (ou liamba) faz parte da preparação; é possível; também muitas vezes vi suco de jurema em poder de sacerdotes (é verdade que todos de tipo banto). Ambas as têm efeitos tóxicos e agem sobre o sistema nervos. Mas não basta que a yauô seja possuída, é preciso que ela o seja pelo dono de sua cabeça. Eis porque a infusão se modifica conforme a divindade em questão, cada qual possuindo suas folhas especiais. No entanto, esta precaução apenas não é julgada suficiente. Com efum (pé branco diluído n' água) são desenhados no crânio liso os desenhos simbólicos da divindade; e é esta a razão da importância primordial que os sacerdotes atribuem ao efum, rito que de certo modo individualiza a força divina que se desencadeia. Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) dele nos oferece boa descrição: "O desenho pretendia representar um capacete por meio de raios divergentes que partiam de um primeiro pequeno círculo traçado na parte mais elevada do crânio e daí se dirigiam para a periferia. Concêntricos a este primeiro, outros círculos de diâmetro gradualmente· crescente se sucediam a pequenas distâncias até o limite da circunferência horizontal máxima da cabeça"4º. Acrescentemos que o círculo superior delimita o lugar por onde passará a divindade a fim de tomar definitivamente possessão de seu cavalo, e que outros desenhos mais individuais se ajuntam a este, pelo menos nos casos de que fui testemunha ocular, como o machado duplo de Xangô, o arco e flecha de Oxossi. Animais de duas patas: são finalmente mortos, e o sangue coagula, espalhado no crânio, nos ombros da iniciada, colando-se então nele penas da ave. A yauô está agora em tal estado de inconsciência, que se lhe pode impunemente traçar no corpo com uma lâmina virgem de barbear, a ou as tatuagens da nação a que pertence o candomblé. As filhas dos Gêge têm no braço uma cruz e sete barras verticais - as dos Quetu uma cruz e três barras verticais. É então que a yauô, vai sair pela primeira vez; mas não é ainda uma saída pública, somente as pessoas já iniciadas podem assistir a ela. Que nos seja permitido emprestar de Nina Rodrigues a narrativa desta primeira saída, pois nunca tivemos ocasião de observá-la: " (...) a orquestra, composta de cinco tabaques (tambores pequenos) e quatro cabaças (...), começava na sala onde eu me achava, a invocação do santo. A um sinal ou ordem do regente, todos os tabaques foram colocados reunidos no centro da sala e ao lado vieram depor um prato com obi (noz de kola) e moedas de cobre, e uma quartinha de água de santo, tirados do santuário. O regente levantou-se, fez ligeira genuflexão sobre o joelho esquerdo e concentrou-se como em oração. Depois tomou da quartinha, lançou um pouco d'água de cada lado dos tabaques, e em seguida deitou na boca um punhado de obi. Mastigou os obis, e, tomando os tabaques um a um, e invertendo-os, foi lançando dentro de cada um o obi mastigado. Aos tabaques seguiram-se as cabaças com que empregou processo semelhante. O regente passou então o prato de obi aos outros músicos, dos quais cada qual tomou a sua noz e pôs-se a mastigá-la. Música e canto começaram então a invocar ou chamar o santo. A este apelo musical, a candidata recai no estado de possessão, do qual tinha saído pouco antes, para permanecer em estado de éré (de que trataremos longamente mais tarde). A crise pode ser mais ou menos violenta. Porém, esse estágio do cerimonial, é preciso que não o seja muito. Se demasiado dramática, é porque a lavagem da cabeça foi forte demais; nesse caso, disse-me um informante, é preciso modificar a composição, ajuntando folhas que "temperam" o poder das primeiras. Em todo o caso, se o transe for muito forte, o babalorixá "despacha" o santo mergulhando a mão na água fria (já vimos que os Orixá temem a água fria), tocando com ela cabeça, seios, nuca e pés da yauô: "O ato de despachar o santo é um momento melindroso; é mister muita vigilância para não suceder que pessoas de má índole aproveitem a ocasião para dar comida ou bebida contrária ao anjo da guarda da pessoa, sob pena de fazê-la perder a fala por algum tempo, ter a cabeça sem governo e dar-se ao abuso de bebidas alcoólicas. A segunda saída tem lugar nove dias depois, e obedece ao mesmo ritual da primeira. A única diferença é que o efun é feito, desta vez, com pó azul e vermelho, em lugar de giz branco. A terceira saída tem lugar no 17º dia, depois do grande banho de sangue, o sundidé dos africanos e desta vez, como estamos chegando ao fim, não é mais o sangue de aves, mas o de "animais de quatro patas" que será utilizado. Os tambores tocam fora da aliaché, todas as portas estão fechadas pois é proibido ver o que se passa no interior. A yauó recebe no torso nu o sangue de bodes ou carneiros, que jorra das cabeças cortadas. Exatamente no lugar que fora anteriormente delimitado pelo primeiro círculo do efun, faz no alto do crânio, com uma faca virgem, um pequeno orifício. Naturalmente, enquanto tudo isto se passa, está ela na mais completa inconsciência; desceu para as trevas mais espessas, fez-se noite total no espírito. O corpo é em seguida pintado com o pó branco, desde o alto do crânio até o púbis, e compreendendo também braços e antebraços, mas desta vez o efun é constituído de pequenos pontos redondos e brancos. A que corresponde esta mudança de desenhos? Seja-me permitido formular aqui uma suposição: os pontos brancos constituem, na África, uma das características de Oxun, e Oxun sendo a deusa do amor, não se poderia utilizá-los para manifestar simbolicamente que a fabricação da nova personalidade por Oxalá está terminada e que o momento do parto chegou? Trata-se, todavia, de simples hipótese de trabalho que nada até agora confirmou; é preciso também reconhecer que se Oxun preside ao amor voluptuoso e se as mulheres estéreis lhe pedem filhos, não temos nenhum testemunho de que desempenhe qualquer papel no parto propriamente dito. A terceira saída, depois do banho de sangue e da abertura, no alto do crânio, do caminho por onde passará daí por diante o Orixá, todas as vezes que quiser se manifestar, chama-se "dom do nome". Com efeito, foi enviado à África o santo do indivíduo para buscar o nome da nova personalidade que acaba de nascer. Sabe-se que toda mudança de personalidade se traduz obrigatoriamente por uma mudança de nome. Todavia, o babalao ou o babalorixá consultam também a sorte para saber se o nome trazido do continente negro é de fato conveniente. Deve haver identidade entre a resposta de lfa e a intuição da yauô em estado de transe. O novo nome compreende sempre dois termos e, nalguns santuários, até três; por exemplo: Xangô Atara Mozambi. O primeiro termo é o nome genérico do santo. Mas como a divindade toma múltipla forma é preciso saber de que Xangô se trata: é esta a função do segundo termo. O terceiro designa a região em que vive o Xangô em questão e, de maneira assaz inesperada; no exemplo que aqui citamos esta região não é senão o Moçambique! A cerimônia do "dom do nome", em africano é pública e reveste-se sempre de grande beleza, com a entrada ritual da nova iniciada sob um grande véu branco, o alá, que forma sobre ela um pálio triunfal, com a multidão reunida que atira flores naquele corpo sempre trêmulo, sacudido por convulsões divinas. A ou as yauô entram, o corpo curvado em ângulo reto, os braços pendentes para a frente, as mãos quase tocando a terra, exatamente como crianças que acabam de nascer e que não têm ainda força para assumir a posição vertical; duas ekedy, uma à direita, outra à esquerda, sustentam a marcha insegura e enxugam com um véu branco o suor que corre dos rostos. A ou as yauô que acabam de ser feitas, efetuam nessa noite três aparições sucessivas, que condensam ou resumem simbolicamente o conjunto do cerimonial de iniciação. Na primeira aparição vem elas com roupas comuns, lembrança do passado que acaba de ser abolido. Na segunda, vestem-se de branco, recordando o momento em que novamente foram criadas, que, como dissemos, se efetuou sob o signo de Oxalá. Na última, finalmente, cada qual tem o traje litúrgico de seu próprio Orixá, e constitui a afirmação de que daí por diante, no interior da cabeça, encarnam esse santo. É no decorrer desta última entrada na sala de dança que o babalorixá ou a "mãe pequena" toma-as uma após outra para fazê-las rodopiar sobre si mesmas. Então bruscamente o corpo se eleva, o cavalo salta bem alto no ar e, em meio aos oké, aos aplausos, ao toque alegre dos tambores, cada qual lança à multidão seu novo nome de esposa da divindade. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Início da página 55. Abraço. Davi

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