Religião
Afro-brasileira. Candomblé. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô.
Tradução de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018). Capítulo I.
APRESENTAÇÃO IV. Foi Edison de Souza Carneiro (1912-1972) quem primeiro chamou
a atenção dos estudiosos sobre esta parte da iniciação, mas na realidade parece
que certas sequências do ritual, que tinham sido descritas antes dele, não
constituíam mais do que testes de verificação, dos quais os autores ignoravam a
verdadeira função. Com efeito, faz-se dançar as candidatas ao som dos tambores
sagrados e, ao surgir o leit-motiv (estado de espírito) do seu Orixá, o cavalo
deve imediatamente cair em transe. Se o transe não se produz, recomeça-se o
cântico sete, catorze e até vinte e uma vezes ao todo; e somente se a candidata
não recebeu seu santo até o vigésimo-primeiro cântico é que se pode deduzir que
algum erro foi cometido. Trata-se, bem entendido, de rito preliminar, pois se o
santo já tivesse sido colocado na cabeça, nada mais haveria a fazer. Portanto,
não se deve confundir tal verificação com a prova do fogo, que é
verdadeiramente uma prova final e que consiste em passar as mãos nas chamas ou
engolir um carvão ardente; este rito não parece obrigatório, mas é
frequentemente praticado (podendo, além disso, ter lugar tanto nas cerimônias
públicas quanto na iniciação), tem por objetivo verificar a veracidade do
transe, desmascarando os casos possíveis de simulação. De fato, é compreensível
a utilidade de uma verificação do estado de completa inconsciência das filhas
de santo antes das cerimônias derradeiras, uma vez que não devem saber o que
com elas foi feito no decorrer da iniciação, tudo esquecendo ao regressarem à
vida profana. Porém o que se pretende então, como se vê, é verificar a
autenticidade de um estado psíquico, e não a personalidade ou a identidade de
um verdadeiro deus. A fixação do Orixá na cabeça da filha não se faz senão
lentamente, etapa por etapa, desde a entrada no santuário até o tenebroso
mergulho que lhe marca o fim. O caráter progressivo destas etapas se manifesta
por um conjunto de símbolos: os cabelos são primeiro cortados com uma tesoura,
depois rapados; o crânio é primeiro regado com o sangue de animais de duas
patas, depois de quatro patas; a carne é primeiro tatuada, depois são abertas
incisões, etc. Durante todas estas etapas, a candidata vive num aposento
pequeno, camarinha em português, aliaché em africano, sob os cuidados da
segunda sacerdotisa, a "mãe pequena". Não tem o direito de falar aos
visitantes de candomblé, só pode se comunicar com eles batendo uma das mãos
contra a outra, o que se chama pa6. Algumas vezes traz no tornozelo, como sinal
de submissão, uma pulseira de guizos, o xaôro. Cada uma das etapas se m1cia por
um sacrifício a Exú, intermediário obrigatório entre os homens e os Orixá, - e
outro aos Eguns, isto é, não a todos os mortos em geral, mas somente aos antepassados
da candidata. No decorre da primeira cerimônia, os cabelos são cortados apenas
com uma tesoura para facilitar a descida do deus; a cabeça é regada com o
sangue de aves, e previamente já o fora também com uma infusão das ervas do
santo; a filha, então, cai em estado de transe. No decorrer desta primeira
cerimônia, que se segue imediatamente ao banho, à mudança de trajes, e à
entronização de que já falamos, é que se faz ao mesmo tempo, em geral, a
lavagem das contas, o bori, tudo de mistura com esta primeira fixação da
divindade. Fixação, como vemos, ainda leve, pois até este momento não foi ainda
verificada a afirmação do babalaô, Muitos meses passarão entre esta primeira
fixação e a última, no decorrer dos quais terão lugar os "ritos de passagem",
para empregar a expressão de Arnald Van Gennep (1873-1957), assim como os da
confirmação, já citados. É no decorrer deste período intermediário que se faz a
educação da esposa do Orixá, como a candidata passa então a ser chamada: yaô ou
yauô. É verdade que esta, em geral, conhece os cânticos e as danças, pois desde
a mais tenra infância viveu à sombra dos candomblés; assistiu já às festas, já
conhece muita coisa; mas é preciso que se aperfeiçoe nesse conhecimento,
passando por assim dizer da experiência empírica ao conhecimento organizado.
Deve aprender termos nagô, ouvir os mitos explicativos, familiarizar-se com os
deveres e obrigações de sua tarefa futura. É a ''escola da selva"
transplantada da África para a cidade da Bahia. O termo "escola" é
bastante exato; um de meus informantes comparava a estada da candidata na
aliaché à escola primária, dizendo que a instrução prossegue pela vida toda; se
quisermos atingir os graus mais elevados da hierarquia, é preciso passar em
seguida pela escola secundária (...). Como em todos os estados de passagem, nos
quais a personalidade está morta sem ter sido ainda substituída por nova, o
corpo da yaô, no decorrer deste período, está em tal estado de vulnerabilidade
que toda uma série de eho se torna necessária; alguns destes tabus a
acompanharão pela vida toda, como por exemplo a interdição de comer os
alimentos eho de seu próprio Orixá; mas outros não valem senão para o período
intermediário e desaparecem depois. Trata-se de proibições de ordem alimentar e
principalmente de ordem sexual. Durante toda a iniciação, é preciso que se
conserve "limpa de corpo", isto é, sem nenhuma relação com homens. O
que, entre parêntesis, destrói certa lenda ainda viva entre os brancos que faz
da aliaché um aposento de orgias e que pretende que o babalorixá aproveita do
estado de submissão, de inconsciência destas mulheres, para delas abusar. Se
algumas vezes casos deste gênero se produzem, o que é possível, em todo o caso
não se passam senão em terreiros em franca decomposição, mas não nos tradicionais.
Com efeito, o babalorixá temeria muito atrair a cólera divina com a violação de
um eho, e a punição de seu gesto seria de fato automática. Os dias se sucedem:
com o fim de evitar qualquer encontro desagradável, vai a yauô, acompanhada da
"mãe pequena", tomar seu banho na f6nte sagrada enquanto a noite
ainda não se dissipou completamente. Totalmente despida, é friccionada com
"sabão da Costa". Depois regressa ao santuário, onde aprende os
segredos do candomblé. Todavia, o termo de segredo não é muito exato, pois não
se trata de modo nenhum de lhe transmitir ensinamentos esotéricos. Ensinam-lhe
simplesmente o que seu estado futuro de "filha de santo" exige que
saiba. Trabalha também na confecção das vestes litúrgicas que envergará no momento
da cerimônia de saída, ou dos trajes que usará, mais tarde, durante as grandes
festas públicas, o que tudo fica guardado no terreiro. De vez em quando uma
cerimônia, como por exemplo a da confirmação do nome do Orixá dono de sua
cabeça, corta a monotonia de seus dias. Toda esta parte da iniciação, assim
como aquela que imediatamente a segue, está colocada sob o signo de Oxalá.
Trata-se de um rito de criação: uma nova personalidade está em vias de ser
modelada. Oxalá é justamente o deus da criação. Foi ele o encarregado pela
divindade suprema, Olorum, de fabricar a terra e o mar; não pôde, na verdade,
se desincumbir inteiramente da missão por ter bebido vinho de palma ~m demasia
no decorrer da viagem; isto não impede, porém, que com o auxílio de Odudua,
seja realmente um dos criadores do mundo. Em todo o caso, foi quem criou
sozinho o homem que o habita, quem modelou o primeiro casal, Okikischi e Iffé.
Vai, pois, presidir toda a parte da iniciação que se segue aos ritos
preliminares de entrada no candomblé, e este patrocínio de Oxalá é simbolizado
pelo uso de vestimentas brancas por parte da yauô, o branco sendo a cor de
Oxalá. Terminada a aprendizagem, confirmado o Orixá, resta "fixar" o
santo mais fortemente e de maneira definitiva, à cabeça. Começa-se, como na
primeira parte, por oferecer sacrifícios a Exú e aos Eguns. Raspa-se
inteiramente o crânio da candidata com uma faca virgem; seja para que o santo
possa penetrar por qualquer orifício, como afirmam alguns habitantes da Bahia,
seja para levar a candidata ao estado de criancinha que vai nascer para uma
vida nova, o que me parece mais verossímil, - o certo é que frequentemente a
depilação se estende aos pelos das axilas, do púbis, de todas as partes do
corpo, é completa; O que confirma esta última suposição é que as filhas que vi
na camarinha, deitadas por terra e recobertas por um grande véu branco, nesse
momento preciso da iniciação, se pareciam estranhamente com larvas que esperam
o momento de se metamorfosear em borboletas. Depois da depilação, tem lugar a
lavagem da cabeça com uma infusão de ervas; outras ervas são igualmente
enfiadas na boca, para serem engolidas. Tal lavagem tem grande importância,
pois é o que determina a possessão; por isso o segredo de sua composição é
ciosamente guardado. Manuel Raimundo Querino (1851-1923) afirma que a maconha
(ou liamba) faz parte da preparação; é possível; também muitas vezes vi suco de
jurema em poder de sacerdotes (é verdade que todos de tipo banto). Ambas as têm
efeitos tóxicos e agem sobre o sistema nervos. Mas não basta que a yauô seja
possuída, é preciso que ela o seja pelo dono de sua cabeça. Eis porque a
infusão se modifica conforme a divindade em questão, cada qual possuindo suas
folhas especiais. No entanto, esta precaução apenas não é julgada suficiente.
Com efum (pé branco diluído n' água) são desenhados no crânio liso os desenhos
simbólicos da divindade; e é esta a razão da importância primordial que os
sacerdotes atribuem ao efum, rito que de certo modo individualiza a força
divina que se desencadeia. Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) dele nos oferece
boa descrição: "O desenho pretendia representar um capacete por meio de
raios divergentes que partiam de um primeiro pequeno círculo traçado na parte
mais elevada do crânio e daí se dirigiam para a periferia. Concêntricos a este
primeiro, outros círculos de diâmetro gradualmente· crescente se sucediam a
pequenas distâncias até o limite da circunferência horizontal máxima da
cabeça"4º. Acrescentemos que o círculo superior delimita o lugar por onde
passará a divindade a fim de tomar definitivamente possessão de seu cavalo, e
que outros desenhos mais individuais se ajuntam a este, pelo menos nos casos de
que fui testemunha ocular, como o machado duplo de Xangô, o arco e flecha de
Oxossi. Animais de duas patas: são finalmente mortos, e o sangue coagula,
espalhado no crânio, nos ombros da iniciada, colando-se então nele penas da
ave. A yauô está agora em tal estado de inconsciência, que se lhe pode
impunemente traçar no corpo com uma lâmina virgem de barbear, a ou as tatuagens
da nação a que pertence o candomblé. As filhas dos Gêge têm no braço uma cruz e
sete barras verticais - as dos Quetu uma cruz e três barras verticais. É então
que a yauô, vai sair pela primeira vez; mas não é ainda uma saída pública,
somente as pessoas já iniciadas podem assistir a ela. Que nos seja permitido
emprestar de Nina Rodrigues a narrativa desta primeira saída, pois nunca
tivemos ocasião de observá-la: " (...) a orquestra, composta de cinco
tabaques (tambores pequenos) e quatro cabaças (...), começava na sala onde eu
me achava, a invocação do santo. A um sinal ou ordem do regente, todos os
tabaques foram colocados reunidos no centro da sala e ao lado vieram depor um
prato com obi (noz de kola) e moedas de cobre, e uma quartinha de água de santo,
tirados do santuário. O regente levantou-se, fez ligeira genuflexão sobre o
joelho esquerdo e concentrou-se como em oração. Depois tomou da quartinha,
lançou um pouco d'água de cada lado dos tabaques, e em seguida deitou na boca
um punhado de obi. Mastigou os obis, e, tomando os tabaques um a um, e
invertendo-os, foi lançando dentro de cada um o obi mastigado. Aos tabaques
seguiram-se as cabaças com que empregou processo semelhante. O regente passou
então o prato de obi aos outros músicos, dos quais cada qual tomou a sua noz e
pôs-se a mastigá-la. Música e canto começaram então a invocar ou chamar o
santo. A este apelo musical, a candidata recai no estado de possessão, do qual
tinha saído pouco antes, para permanecer em estado de éré (de que trataremos
longamente mais tarde). A crise pode ser mais ou menos violenta. Porém, esse
estágio do cerimonial, é preciso que não o seja muito. Se demasiado dramática,
é porque a lavagem da cabeça foi forte demais; nesse caso, disse-me um
informante, é preciso modificar a composição, ajuntando folhas que
"temperam" o poder das primeiras. Em todo o caso, se o transe for
muito forte, o babalorixá "despacha" o santo mergulhando a mão na
água fria (já vimos que os Orixá temem a água fria), tocando com ela cabeça,
seios, nuca e pés da yauô: "O ato de despachar o santo é um momento
melindroso; é mister muita vigilância para não suceder que pessoas de má índole
aproveitem a ocasião para dar comida ou bebida contrária ao anjo da guarda da
pessoa, sob pena de fazê-la perder a fala por algum tempo, ter a cabeça sem
governo e dar-se ao abuso de bebidas alcoólicas. A segunda saída tem lugar nove
dias depois, e obedece ao mesmo ritual da primeira. A única diferença é que o
efun é feito, desta vez, com pó azul e vermelho, em lugar de giz branco. A
terceira saída tem lugar no 17º dia, depois do grande banho de sangue, o
sundidé dos africanos e desta vez, como estamos chegando ao fim, não é mais o
sangue de aves, mas o de "animais de quatro patas" que será
utilizado. Os tambores tocam fora da aliaché, todas as portas estão fechadas
pois é proibido ver o que se passa no interior. A yauó recebe no torso nu o
sangue de bodes ou carneiros, que jorra das cabeças cortadas. Exatamente no
lugar que fora anteriormente delimitado pelo primeiro círculo do efun, faz no
alto do crânio, com uma faca virgem, um pequeno orifício. Naturalmente,
enquanto tudo isto se passa, está ela na mais completa inconsciência; desceu
para as trevas mais espessas, fez-se noite total no espírito. O corpo é em
seguida pintado com o pó branco, desde o alto do crânio até o púbis, e
compreendendo também braços e antebraços, mas desta vez o efun é constituído de
pequenos pontos redondos e brancos. A que corresponde esta mudança de desenhos?
Seja-me permitido formular aqui uma suposição: os pontos brancos constituem, na
África, uma das características de Oxun, e Oxun sendo a deusa do amor, não se
poderia utilizá-los para manifestar simbolicamente que a fabricação da nova
personalidade por Oxalá está terminada e que o momento do parto chegou?
Trata-se, todavia, de simples hipótese de trabalho que nada até agora
confirmou; é preciso também reconhecer que se Oxun preside ao amor voluptuoso e
se as mulheres estéreis lhe pedem filhos, não temos nenhum testemunho de que
desempenhe qualquer papel no parto propriamente dito. A terceira saída, depois
do banho de sangue e da abertura, no alto do crânio, do caminho por onde
passará daí por diante o Orixá, todas as vezes que quiser se manifestar,
chama-se "dom do nome". Com efeito, foi enviado à África o santo do
indivíduo para buscar o nome da nova personalidade que acaba de nascer. Sabe-se
que toda mudança de personalidade se traduz obrigatoriamente por uma mudança de
nome. Todavia, o babalao ou o babalorixá consultam também a sorte para saber se
o nome trazido do continente negro é de fato conveniente. Deve haver identidade
entre a resposta de lfa e a intuição da yauô em estado de transe. O novo nome
compreende sempre dois termos e, nalguns santuários, até três; por exemplo:
Xangô Atara Mozambi. O primeiro termo é o nome genérico do santo. Mas como a
divindade toma múltipla forma é preciso saber de que Xangô se trata: é esta a
função do segundo termo. O terceiro designa a região em que vive o Xangô em
questão e, de maneira assaz inesperada; no exemplo que aqui citamos esta região
não é senão o Moçambique! A cerimônia do "dom do nome", em africano é
pública e reveste-se sempre de grande beleza, com a entrada ritual da nova
iniciada sob um grande véu branco, o alá, que forma sobre ela um pálio triunfal,
com a multidão reunida que atira flores naquele corpo sempre trêmulo, sacudido
por convulsões divinas. A ou as yauô entram, o corpo curvado em ângulo reto, os
braços pendentes para a frente, as mãos quase tocando a terra, exatamente como
crianças que acabam de nascer e que não têm ainda força para assumir a posição
vertical; duas ekedy, uma à direita, outra à esquerda, sustentam a marcha
insegura e enxugam com um véu branco o suor que corre dos rostos. A ou as yauô
que acabam de ser feitas, efetuam nessa noite três aparições sucessivas, que
condensam ou resumem simbolicamente o conjunto do cerimonial de iniciação. Na
primeira aparição vem elas com roupas comuns, lembrança do passado que acaba de
ser abolido. Na segunda, vestem-se de branco, recordando o momento em que
novamente foram criadas, que, como dissemos, se efetuou sob o signo de Oxalá.
Na última, finalmente, cada qual tem o traje litúrgico de seu próprio Orixá, e
constitui a afirmação de que daí por diante, no interior da cabeça, encarnam esse
santo. É no decorrer desta última entrada na sala de dança que o babalorixá ou
a "mãe pequena" toma-as uma após outra para fazê-las rodopiar sobre
si mesmas. Então bruscamente o corpo se eleva, o cavalo salta bem alto no ar e,
em meio aos oké, aos aplausos, ao toque alegre dos tambores, cada qual lança à
multidão seu novo nome de esposa da divindade. Livro O Candomblé da Bahia –
Rito Nagô. Início da página 55. Abraço. Davi
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