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OS JUDEUS NA ALEMANHA MEDIEVAL. A história da Alemanha é longa e turbulenta e a
vida dos judeus que lá viviam, difícil. Eram discriminados, alvo de
perseguições e massacres, acusados de assassinato ritual, de envenenamento dos
poços e assim por diante. Chegaram ao auge de sua posição na sociedade durante
a República de Weimar, no século 20, mas nesse mesmo século ainda teriam que
enfrentar seu pior pesadelo. Atualmente, cerca de 200 mil judeus vivem na
Alemanha. Em sua longa história, os judeus alemães deram origem ao Judaísmo
ashquenazita e ao reformismo judaico. São responsáveis, também, por uma parcela
significativa da cultura alemã – na arte, na literatura, na música, na ciência,
na filosofia. Centenas deles fizeram inúmeras descobertas científicas, outros
tanto ganharam o Prêmio Nobel. Outros ainda, como Albert Einstein (1879-1955) e
Karl Marx (1818-1883), mudaram a história da humanidade. Nosso intuito é
apresentar a história dos judeus desde o início de seu assentamento na Alemanha
até hoje. Quando fazemos referência à história da Alemanha, estamos nos
referindo a acontecimentos ocorridos nos territórios de língua alemã que
correspondem aproximadamente ao Estado formado em 1871, quando foi constituído
o Império Alemão. Seria impossível, ainda que resumindo, contar sua longa saga
numa única matéria. Sendo assim, dividiremos o assunto em várias edições. Nesta
edição, cobriremos as primeiras comunidades, a Idade Média – período em que,
apesar da terrível perseguição, os judeus alemães vivenciaram um renascimento
religioso que os levou a serem os sucessores dos centros religiosos da Espanha
e da Babilônia. PERÍODO ROMANO. São raras as informações sobre a chegada
dos primeiros judeus na Alemanha, região denominada pelos romanos de
“Germânia”. Sem limites bem definidos, a Germânia fazia parte do Império Romano
e estendia-se desde a margem ocidental do Reno até as estepes da Rússia. A
presença romana na região remonta ao século 1 Antes da Era Comum (AEC), quando
Roma passa a subjugar tribos germânicas que viviam a oeste do Rio Reno e ao sul
do Rio Meno (Main, em alemão). O Talmud e o Midrash utilizam o
termo Germania ou Germamaia1 para indicar o norte da
Europa, descrevendo as proezas militares dos povos que lá habitavam e o perigo
que representavam para o Império Romano. Há, no entanto, informações de que no
século 1 da Era Comum havia judeus acompanhando as legiões romanas deslocadas
para a Germânia. Eram artesãos, comerciantes e médicos que se foram
estabelecendo nas cidades romanas. Muitos haviam sido trazidos para a Itália,
após as Guerras Judaicas em Eretz Israel, como prisioneiros e, já
libertos, procuravam um lugar para se assentar. Achados arqueológicos indicam
que, no século 4, havia judeus vivendo em Augusta Raurica, às margens do
rio Reno, e em Augusta Treverorum, na Renânia-Palatinado. Há também
decretos imperiais datados de 321 e 331, sobre a presença de uma comunidade
judaica em Colônia (Colonia Claudia Ara Agrippinensium), capital
da Germânia Inferior. Nos séculos 4 e 5 muda o curso da história da Europa.
Inicia-se o fortalecimento do Cristianismo, até então considerado por Roma uma
religião “ilícita”. Legalizado pelo Édito de Constantino, em 313, e confirmado
pelo Édito de Teodósio, em 380, o Cristianismo passa a ser considerado religião
oficial do Império Romano. Em paralelo, a religião judaica passa de “lícita”
para “reconhecida” e, depois, para “tolerada” – até ser completamente odiada.
Ainda no século 4, o Império Romano do Ocidente perde força militar e coesão
política. As legiões romanas não conseguem impedir que tribos germânicas
adentrem pelas fronteiras do Império, o que faz com que diferentes tribos se
estabeleçam na Grã-Bretanha e na Europa Ocidental. Em 476, Odoacro (435-493),
comandante germânico de legiões romanas, lidera uma revolta militar e depõe o
então imperador. A coroação de Odoacro como primeiro rei da Itália marca o fim
do Império Romano do Ocidente e o início da Idade Média. ALEMANHA MEDIEVAL.
Já no século 3, na região que hoje constitui a Alemanha, os Alemanni,
tribos germânicas que viviam no Reno Superior, haviam rompido as linhas
fortificadas romanas, estabelecendo-se ao longo do Rio Meno, expandindo seus
domínios nos dois séculos seguintes. As tribos acabam unindo-se e criam uma
confederação denominada Alamannia ou Alemannia. As primeiras
fontes judaicas medievais usam o termo Allemania ou Lothir
(Lotaríngia2) ao se referir à Alemanha. O termo bíblico Ashquenaz
só passou a ser utilizado posteriormente. Apesar de haver comunidades judaicas nas
províncias romanas da Germânia, não há evidências de que houvesse judeus
vivendo de forma permanente no território da atual Alemanha – até a criação da Alamannia,
no século 3. Os comerciantes judeus da Itália e da França eram bem recebidos e
muitos se estabeleceram nas cidades ao longo dos grandes rios e rotas
comerciais. Em 496, Clóvis I, rei dos francos, derrota a Alamannia e
anexa seus territórios. Seu batismo, em 508, é um marco importante na história,
pois, de acordo com o costume dos francos, a religião do líder devia ser
adotada por todos sob seu comando e, ainda que relutassem, os francos acabam
por se converter ao Catolicismo. A princípio, a vida dos judeus não sofre
sérias mudanças. Em termos jurídicos, permaneceram em pé de igualdade com os demais
habitantes, com os quais mantinham relações amistosas. Podiam possuir
propriedades, viver onde quisessem, seguir a ocupação que desejassem, inclusive
na agricultura, e até mesmo ter cargos públicos. PERÍODO CAROLÍNGIO. Em
752, Pepino, o Breve, responsável por interromper o avanço muçulmano na Europa,
foi proclamado rei dos francos, dando início à dinastia carolíngia. Com a morte
de Pepino (714-768), sobe ao trono seu filho Carlos Magno (768-812). O novo
soberano expande seus domínios, conquistando, entre outros, todo o Reino
Lombardo, e os domínios saxões e bávaros. Torna-se o mais poderoso monarca da
Europa e o Papa Leão III procura sua proteção para a Igreja. A aliança entre o
poder temporal – na pessoa de Carlos Magno – e o espiritual – na pessoa do Papa
– é selada em Roma, no ano 800, quando Leão III coroa Carlos Magno Imperador do
Sacro Império Romano. Apesar da estreita aliança com a Igreja, Carlos Magno
manteve boas relações com a população judaica. Suas campanhas de conversão
forçada dos pagãos ao Catolicismo não incluía os judeus, a quem era permitido
manter sua religião. Os favores e a proteção que o imperador estendeu aos
judeus são cercados por lendas, mas o monarca estava ciente das vantagens
trazidas a seu império pela presença dos judeus, poliglotas e com extensas
conexões com outras comunidades judaicas da Diáspora. Em troca de sua promessa
de aliança e lealdade, o imperador lhes assegura proteção e privilégios, bem
como o direito de gerir sua vida, sua propriedade e a prática de sua religião.
Deu-lhes liberdade em suas transações comerciais, apesar dos impostos que lhes
eram cobrados serem mais elevados do que aos não-judeus. Ademais, continuavam a
desfrutar o privilégio da autogestão de suas comunidades – mais uma vez, em
troca de pagamento aos cofres reais. Entre as Capitulares, leis escritas que
Carlos Magno aplicou a seus súditos, algumas tratam diretamente dos judeus.
Determinou, entre outros, que um judeu poderia levantar uma acusação contra um
cristão, mas precisava apresentar de quatro a sete testemunhas, enquanto ao
cristão bastavam três. Entre as várias disposições, estava a garantia de que
seria punida qualquer violência contra eles. Um oficial imperial, denominado Magister
Judaeorum ou Judenmeister, isto é, Mestre dos Judeus, era encarregado
pela Coroa de proteger os direitos judaicos e supervisionar o cumprimento das
determinações imperiais. Ao longo das margens do Reno floresciam comunidades
judaicas. Os judeus participavam ativamente da vida econômica e podiam ser
encontrados em todas as esferas governamentais, tanto em posições subordinadas,
como cobradores de impostos, quanto nas altas esferas do poder. Tal foi o caso
de Isaac, o Judeu, que Carlos Magno enviou como embaixador à corte do Califa
abássida, Harun al-Rashid. Outros atuavam como fornecedores da Corte Imperial
ou como administradores das finanças de instituições religiosas católicas. O
médico pessoal do rei era um judeu chamado Ferragut. O status dos judeus
permanece inalterado após a morte de Carlos Magno, quando, em 814, seu filho
Luís, o Piedoso, sucede-o no trono. Na Idade Média, havia na Alemanha
comunidades judaicas em Colônia, Mainz, Speyer, Worms, Tiers, Regensburg,
Frankfurt e ao longo da margem ocidental do Reno, bem como na Lorena. O idioma
diário usado pelos judeus era igual ao falado pelo restante da população: o
alto-alemão médio, ou algum dialeto germânico, ao passo que o hebraico era
usado nas orações e nos estudos. A primeira menção a uma comunidade judaica em
Mainz data do ano 900; em Worms, de 960; em Regensburg, de 981; e em Speyer, em
1084. Documentos do século 11 mencionam comunidades judaicas na região
centro-sul da Alemanha – Bamberg, Wurzburg, Thuringia (Erfurt), Munique e
Berlim. Essas datas, no entanto, não indicam necessariamente a seqüência na
criação dessas comunidades. Há, também, registros sobre sinagogas inauguradas
em Speyer, em 1104; em Worms, em 1174-5; em Regensburg, em 1210-20, e, em
Nuremberg, em 1296. FRAGMENTAÇÃO DO PODER POLÍTICO. Com a morte de Luís,
em 840, seus filhos disputam a sucessão do império dando início a um período de
guerras civis. Em 843, o Tratado de Verdun divide o Império Carolíngio em três:
a parte central e o título imperial couberam ao filho mais velho, Lotário; a
ocidental a Carlos, o Calvo; e a oriental a Luís, o Germânico. Essa divisão
estabeleceu as bases para o desenvolvimento das atuais França e Alemanha, e sua
divisão cultural e linguística. A parte oriental do Império Carolíngio foi-se
enfraquecendo ainda mais com a ascensão de ducados regionais, os chamados
“ducados-troncos”3 (Francônia, Saxônia, Bavária, Suábia e Lorena),
que adquiriram o status de pequenos reinos. Essa fragmentação territorial
marcava o início do particularismo4 alemão, no qual os governantes
de cada domínio promoviam seus interesses e autonomia. Mas, como veremos mais
adiante, esse particularismo vai ser de grande importância quando, nas demais
nações europeias, começam a expulsar os judeus locais. Com a extinção da
linhagem carolíngia, em 911, a monarquia se torna eletiva. Os eleitores eram
governantes dos “ducados-tronco” que formavam o reino. O primeiro imperador
eleito é um alemão, Conrad I, duque da Francônia (reinou de 911- 918). Para
muitos historiadores, sua eleição marca o início da história alemã. Quando, em
936, Otto, o Grande, sobe ao trono, começa subjugando os duques, expandindo os
domínios da Coroa e se aliando à Igreja. Sai ainda mais fortalecido quando o
Papa João XII, enfrentando tumultos políticos na Itália, pede sua ajuda. Em
962, o Papa o coroa Imperador do que passaria à história como o Sacro Império
Romano-Germânico. A dinastia otoniana5 governou entre 919 e 1024.
Durante esse período, a vida judaica não sofreu mudanças. Para entender a
complexa história alemã é necessário abrir um parêntese e explicar brevemente o
que era o Sacro Império Romano-Germânico, que duraria até 1806.
Territorialmente extenso, era composto por reinos, principados, ducados e
cidades imperiais livres, que, apesar de serem vassalos do Imperador, possuíam
privilégios que, desde o ano de 1232, lhes conferiam independência de facto
em seus domínios. O trono era frequentemente disputado e as dificuldades para
eleger um imperador levaram ao surgimento de um colégio fixo de
príncipes-eleitores, o Kurfürsten. As lutas pelo poder tornavam
praticamente impossível a formação de um governo central forte. O maior
território do Império após 962 era o Reino da Alemanha, localizado na atual
República Federal Alemã. Kehilot ShUM – BERÇO DO JUDAÍSMO –
ashquenazita. As chamadas Kehilot ShUM – Speyer, Worms e Mainz
– eram o centro da vida judaica medieval alemã, influenciando de forma
significativa a cultura e as práticas religiosas dos judeus ashquenazim.
O nome ShUM deriva das primeiras letras hebraicas que iniciam o nome
dessas cidades: Shin, de Speyer (em hebraico, Shpira); Vav,
inicial de Worms (Varmasia); e Mem, de Mainz (Magentza). A
relativa estabilidade política e econômica iniciada no século 9 atraiu um
grande influxo de judeus na região do Reno. Havia entre eles grandes sábios e
rabinos que se defrontaram com o desafio de adaptar as tradições dos judeus da
Babilônia, Terra Santa e Mediterrâneo Ocidental às condições da vida judaica ao
norte dos Alpes. Seus ensinamentos, decisões e influência foram fundamentais no
desenvolvimento dos costumes e tradições do Judaísmo ashquenazita. As Takanot
ShUm introduziram determinações que fortaleceram a vida comunitária e a
autoridade de sua liderança. Quando, por exemplo, havia uma disputa entre
judeus, estes não tinham permissão de apresentá-las aos tribunais não-judeus.
E, suas ieshivot tornaram-se centros florescentes de estudos judaicos
por mais de 500 anos. (Desde essa época o termo “ashquenazi” é aplicado não só
aos judeus alemães, mas a todos os judeus da Europa, à exceção dos da Espanha e
Portugal). As comunidades ShUM deixaram-nos uma herança não apenas
religiosa e cultural, mas também arquitetônica: sinagogas e mikvot (banhos
rituais) em Speyer e Worms, em lindo estilo romanesco. O cemitério judaico de
Mainz, com as lápides mais antigas ao norte dos Alpes, e a idade e o estado
relativamente intacto do cemitério de Worms, estando em permanente uso há quase
mil anos, tornam-no único no mundo. Mainz, a mais antiga das Kehilot ShUM,
foi “a capital do Judaísmo europeu”, como a ela se refere o renomado
historiador inglês, John Man. Até final do século 11, vivia nessa cidade a
maior comunidade judaica do norte dos Alpes. No século 10, famosos rabinos lá
se estabeleceram. Entre eles, membros da família Kalonymos, originária de
Lucca, Itália, que durante várias gerações tiveram papel de liderança religiosa
e comunitária. A família é tida como a base dos Sábios judeus da Provença e dos
Hassidim ashquenazim, que eram um movimento judeu místico na
parte alemã da Renânia nos séculos 12 e 13. Nesse mesmo século estabeleceu-se
em Mainz o Rabeinu Gershom Ben Yehudá (960-1028), conhecido como a “Luz
do Exílio”. Rabeinu Gershom, “nosso Mestre”, era um modelo de sabedoria
e humildade, e suas diretrizes ajudaram os judeus a adaptar seus costumes ao
meio onde viviam. A Yeshivá fundada por ele atraía estudiosos de todo o
continente. Ele é conhecido por suas Takanot (leis) sobre a vida em
família e na sociedade, aceitas por todos os judeus da Europa. As mais
conhecidas são a proibição da poligamia e o decreto contra a abertura de uma
correspondência endereçada a outrem. IDADE DE OURO DOS JUDEUS ALEMÃES.
Na historiografia judaica o período que vai do século 9 até o final do século
11 é chamado de “Idade de Ouro dos judeus alemães”. Nesse período, a população
judaica e o número de comunidades cresceram. Além de prestamistas, os judeus
alemães participavam ativamente no comércio internacional, tendo estabelecido
extensas redes de comércio. Suas conexões eram mais abrangentes do que as dos
mercadores não judeus, cuja influência mal ultrapassava os locais onde viviam.
Eles também se haviam destacado em outras profissões, inclusive como
viticultores e artesãos. No século 12, o
viajante judeu-espanhol Benjamin de Tudela escreveu que, nas
comunidades “na terra da Alemania” havia muitos judeus sábios e ricos.
Essa “Idade de Ouro”, no entanto, não foi um mar de rosas, havendo ataques
esporádicos a judeus. No entanto, não foram, de forma alguma, comparáveis aos
horrores que eles iriam enfrentar nos séculos seguintes, em consequência direta
do fortalecimento da Igreja Católica. As incessantes lutas pelo poder, bem como
a fragmentação do poder político central na Europa e na Alemanha, levaram ao
fortalecimento da Igreja Católica que se tornou mais poderosa e duradoura do
que todas as Coroas. Desde o século 4, a Igreja codificara grande parte de sua
doutrina, incluindo os conceitos de que os judeus eram um “povo rejeitado” que
devia ser separado econômica e socialmente dos cristãos. Entre outras
características “maléficas”, a Igreja atribuía a todos os judeus, de todas as
épocas, a suposta “culpa” pela morte de Jesus. Essa noção impregna o pensamento
e o imaginário cristão, resultando em manifestações de desprezo, hostilidade e
violência. Porém, apesar das pressões da Igreja, os judeus continuaram por
vários séculos a desfrutar da proteção dos imperadores, príncipes e,
ironicamente, das altas autoridades eclesiásticas que consideravam seus
talentos e suas riquezas necessários. E, quando a Igreja proibiu os cristãos de
emprestar dinheiro a juros, eles ficaram com o monopólio dos empréstimos –
sempre pagando mais impostos que o restante da população. Sua relação com os
governantes era, por assim dizer, simples. Eles recebiam cartas de privilégios
e direitos de residência e, em troca, concediam empréstimos e, entre outros,
eram incumbidos pelos governantes de coletar impostos. A população cristã os
encarava com mais hostilidade ainda, fosse por motivos venais ou espirituais.
Mas, em fins do século 11, a Igreja endurece suas exigências, fazendo com que
os direitos civis dos judeus sofressem vários reveses. Em 1012, ocorreu a
primeira expulsão de que temos conhecimento, quando foram banidos os 2 mil
judeus que viam em Mainz. A 1ª CRUZADA E SUAS CONSEQUÊNCIAS. A 1ª
Cruzada foi proclamada em 26 de novembro de 1095, pelo Papa Urbano II, em
Clermont, França, com o objetivo de auxiliar os cristãos bizantinos e libertar
Jerusalém e a Terra Santa do jugo muçulmano. Para os judeus, as consequências
foram nefastas, dando início a uma tradição de extrema violência contra as
populações judaicas. A “verdadeira” 1ª Cruzada, conhecida como a “Cruzada dos
Nobres”, seria iniciada em agosto de 1096; mas, meses antes, uma turba que
incluía cavalheiros de baixa estirpe, inicia um movimento extraoficial, a
chamada “Cruzada Popular” ou “dos Mendigos”. Muitos cristãos não viam razão
para atravessar um continente para lutar contra os inimigos do Cristianismo,
quando outros “infiéis”, os judeus, viviam em seu meio. Em abril de 1096, em
Rouen e Normandia, mais de 10 mil cristãos iniciam sua própria guerra contra
“os infiéis europeus”. Seguem em direção ao Norte (direção oposta a Jerusalém),
saqueando e assassinando todos os judeus à sua frente. A lista de comunidades
atacadas é longa. Ao chegarem a uma cidade, a eles se juntava um populacho
pronto a matar e pilhar as riquezas da população judaica. Essa turba cristã não
era levada apenas por motivos religiosos, muitos queriam enriquecer ou pôr um
fim às dívidas que tinham com os judeus. Os massacres mais violentos ocorreram
no vale do Reno, e são recordados nos anais judaicos como as Guezerot Tatnav
(Desgraças do ano judaico de Tatnav, isto é, 48566). A frágil
proteção dada aos judeus pelo Imperador e pelos bispos não evitou uma
catástrofe de dimensões dantescas. Entre maio e julho de 1096, no vale do Reno,
foram mortos mais de 12 mil judeus, suas comunidades e sinagogas totalmente
arrasadas. Os relatos em hebraico narram como eles tentaram uma resistência
armada, mas quando viram a desproporção em seus números e armas, optaram, com
uma coragem indomável e extrema devoção religiosa, pela morte dos mártires (al
Kidush Ha-Shem), ao invés do batismo. No dia 3 de maio de 1096, os cruzados
chegaram em Speyer: 11 judeus foram mortos, o restante foi salvo pelo bispo da
cidade. Worms foi atacada uma semana mais tarde. Famílias inteiras foram
chacinadas. Ao perceber que não havia como escapar da fúria dos cruzados, os
judeus refugiados no palácio do bispo optaram pela morte al Kidush
Ha-Shem. “No dia 25 de Iyar (…) santificaram-se em Nome de D’us, (…)
e entregaram suas almas ao Todo Poderoso, bradando, ‘Ouve Israel, o Eterno é
Nosso D’us, o Eterno é Um’”. O saldo foi de mais de 800 judeus mortos. Em
Mogúncia, mais de mil judeus se refugiaram no palácio episcopal. O cronista
cristão Albert de Aix testemunhou o momento em que os cruzados adentraram o
palácio: “Armados com picaretas e lanças, atacaram os judeus (..) matando 700
deles…”. Um dos poucos sobreviventes, Shlomo bar Shimon, relatou: “Quando os
filhos da Aliança Sagrada … presenciaram a chegada dos cruzados, prepararam-se
para o combate. Mas, ao perceber que seu destino estava selado, incentivaram-se
uns a outros dizendo: (..) os inimigos nos matarão, porém nada interessa mais
do que nossas almas puras entrando na Luz Eterna ... Juntos, gritaram: ‘Bem-aventurados
aqueles que sofrem em nome de um D’us Único’”. Mais de 1.300 corpos de judeus
foram retirados do palácio episcopal. A comunidade de Colônia, porém, conseguiu
salvar-se, pois quando os cruzados chegaram, em 1º de junho, os judeus já se
haviam dispersado. Nenhum dos que participaram da “Cruzada dos Mendigos” chegou
à Terra Santa. O cronista Albert d’ Aquisgran relata: “Depois das crueldades
cometidas, carregando as riquezas roubadas aos judeus, … a Cruzada continuou
sua viagem rumo a Jerusalém, passando pela Hungria”. Lá foram aniquilados pelo
rei húngaro, Koloman. É importante observar que apesar de ocasionalmente o Papa
condenar tais ataques, a falta de veemência ou punição lhes dava uma aprovação
implícita. Os ataques continuaram. Em 1144, quando é convocada uma nova
Cruzada, apenas a intervenção do abade Bernard de Clairvaux conseguiu frear
novos massacres. Durante as cruzadas seguintes, nos séculos 12 e 13, milhares
de judeus foram repetidamente colocados entre a cruz e a espada: a conversão ou
a morte. A grande maioria optou, também, por morrer em Santificação do Nome
Divino (Al Kidush HaShem). VIDA ESPIRITUAL E COMUNITÁRIA. A
resposta judaica a tanto sofrimento foi um florescimento ainda maior da
espiritualidade e devoção religiosa. Dedicavam-se ao estudo da Halachá7.
Vários alunos do Rabi Guershom foram os mestres daqueles que, tempos depois,
seriam os professores do Rashi, cujos comentários no Pentateuco e no Talmud
abriram novos caminhos para o estudo. Os judeus alemães contribuíram para disseminar
e completar esses comentários. A partir do século 12, trabalharam no campo da Hagadá
e da Ética. A obra Yalkut, de Rabi Simon ha-Darshan (c. 1150); o
Livro dos Piedosos, do Rabi Yehudá ha-Hassid de Ratisbon (c.
1200); a obra do Rabi Eleazar de Worms (c. 1200); a coleção de Halachá,
Or Zarua, do Rabi Itzhak de Viena (c. 1250); ou a responsa do
Rabi Meïr de Rothenburg (falecido em 1293), são monumentos perenes da devoção
judaico-alemã. Ainda nos séculos 12 e 13, os Hassidei Ashquenaz, homens
devotos da Alemanha, formulam os princípios da devoção total. As gerações que
se sucederam passaram a glorificar a morte al Kidush Ha-Shem ao invés da
apostasia. A partir da 1ª Cruzada, os judeus vivem cada vez mais entre si, em
bairros judaicos, o que lhes dava a possibilidade de manter uma vida social
coesa, em maior segurança. Cada comunidade de tamanho médio tinha a sua
sinagoga, uma mikvê, um local para suas cerimônias festivas e seu
cemitério. É também nesse período que os judeus seguem o fluxo de imigração dos
alemães cristãos, a caminho do Leste. Com a bem-sucedida colonização das terras
eslavas, o império passa a incluir Pomerânia, Silésia, Boêmia e Morávia. O
número de judeus a se estabelecer nessa região cresce em consequência da
intensificação das perseguições MUDANÇAS ECONÔMICO-SOCIAIS. No início do
século 13, o papado atingira o auge de seu poder. Em 1215, o Concílio Latrão
IV, liderado pelo Papa Inocêncio III promulgou cânones antijudaicos visando
“impedir a contaminação dos cristãos”. O Concílio “alertou” os monarcas da
Europa no sentido de adotar uma legislação que obrigava toda a população
judaica a viver em bairros separados e a portar em suas vestes o “distintivo
judaico”, humilhante e discriminador. Eram, também, proibidos de exercer
“profissões cristãs”, ocupar cargos públicos, sendo banidos da agricultura e
das corporações. Além disso, o Concílio aprovou canonicamente a Inquisição,
instituindo os tribunais do “Santo Ofício”. A condenação da usura, ainda mais
severa, e o fato de as corporações das cidades já terem forçado os judeus a
deixar suas diferentes atividades comerciais, fazem com que os empréstimos e as
penhoras passem a ser a principal ocupação dos judeus da Alemanha. O ódio
religioso das massas passa a ser alimentado ainda mais por motivos econômicos.
A Coroa estava ciente de que precisava dar proteção legal aos judeus, pois seu
valor econômico em muito superava qualquer sentimento antissemita. A primeira
tentativa havia sido a emissão de cartas de residência e privilégios. Mas, após
os ataques dos cruzados, ficou claro que os judeus necessitavam proteção contra
o fanatismo das turbas cristãs – não como residentes, mas como súditos. Surge
uma solução temporária com o tratado de Paz Geral, em 1103, que classifica os
judeus, junto com as mulheres e os clérigos, como pessoas sujeitas à proteção
pelo fato de não conseguirem se auto proteger. Em 1236, muda mais uma vez a
condição judaica. O imperador Frederico II declara todos os judeus como Kammerknechtschaft
(em latim, Servi camerae regis, servos da Câmara Real). Isso
significava que a receita gerada por eles era uma regalia do imperador e,
portanto, pertencia ao tesouro imperial (“câmera”), e era obrigação do
Imperador protegê-los. Do ponto de vista legal, a condição de
Kammerknechtschaft significava que os judeus e suas posses eram
“propriedade” dos imperadores. É bem verdade que os judeus passaram a ter um
maior grau de proteção, mas os imperadores usavam suas prerrogativas mais com o
propósito de cobrar mais impostos do que de protegê-los. Com o tempo, eles
descobriram outras formas de tirar partido de “seus” judeus, vendendo, por alto
preço, o direito de lhes cobrar impostos. Ademais, com a extrema necessidade de
receita dos governantes, envolvidos em infindáveis guerras, os judeus são convidados
a voltar aos locais de onde haviam sido expulsos. Contudo, dependendo dos
interesses econômicos dos donos do poder, eram novamente expulsos. Era a
chamada “política da esponja”, cujo modus operandi era simples: os
judeus eram incentivados a emprestar dinheiro; em seguida, eram “espremidos”:
tributação especial e outros artifícios escusos. E, como último recurso, eram
expulsos e seus bens, confiscados. Decorrido algum tempo, eram convidados a
retornar. E o ciclo se repetiu durante toda a Idade Média. Na Alemanha, cada
nova expulsão enfraquecia as comunidades, ainda que posteriormente fossem
convidadas a retornar. VIOLÊNCIA ANTI JUDAÍCA NOS SÉCULOS 13 e 14. No
final do século13 e na primeira metade do 14 a violência antijudaica aumentou
em toda a Alemanha e, durante 50 anos, os judeus sofreram ataques devastadores.
No final da Idade Média, eles se tornam os “responsáveis” por todas as
desgraças que atingiam os cristãos. Para se entender a percepção do judeu no
imaginário cristão, basta dar uma olhada na literatura e arte medieval – eles
eram colocados no mesmo nível que os demônios. Com o tempo, foram alvo de mais
acusações – assassinato ritual, profanação da hóstia, envenenamento dos poços
d’ água, entre outras. Foram acusados de praticar assassinato ritual emMainz
(em 1281 e 1283), Munique (1285) e Oberwesel (1287). Em 1241, 80 judeus foram
mortos em Frankfurt durante um pogrom conhecido como Judenschlacht
(Matança dos Judeus). A primeira perseguição em grande escala contra os judeus,
desde a 1ª Cruzada, ocorreu em 1298. Quando uma guerra civil estourou na
Alemanha do Sul e Central, um cavaleiro da Francônia de nome Rindfleisch,
estando em dívida com banqueiros judeus, declara ter sido incumbido de uma
“missão divina: exterminar os malditos judeus”. Os pogroms conduzidos
por Rindfleisch começaram em abril de 1298, em Rottingen, quando 21 judeus
acusados de “profanar a hóstia” são queimados na estaca. Rindfleisch liderava
uma turba de cristãos que massacrou e pilhou comunidades judaicas em Francônia
e na Bavária. O resultado foi a destruição de 146 comunidades judaicas, entre
elas as de Rottenburg, Wüezburg, Nuremberg e Bamberg. Em muitos lugares, os
judeus resistiram com armas em punho, mas mais de 100 mil perderam a vida,
muitos escolhendo morrer al Kidush Hashem. O Imperador Albert I
inutilmente advertiu a multidão desordenada contra outros ataques, mas os
massacres continuaram em Gotha (1303), Renchen (1301) e Weissensee (1303). O
período de 1336-37 foi marcado pelos catastróficos Pogroms dos Armleder8,
que destruíram 110 comunidades judaicas da Bavária à Alsácia. Para os judeus, o
sofrimento estava longe do fim. Outra série de massacres ocorreu na Alemanha
durante a Peste Negra, a epidemia de peste bubônica que varreu a Europa e a
Ásia (1346-1353). Chegando a seu auge na Europa de 1347 a 1351, a Peste Negra
matou entre um terço e a metade da população do continente, estima-se cerca de
25 milhões de pessoas. Os judeus foram acusados de causar o flagelo. Na época
não se conheciam as causas da peste; acreditava-se que fosse pestis
manufacta, uma doença provocada por uma substância indutora secretamente
produzida pelos inimigos do Cristianismo. Os supostos culpados eram os judeus,
que teriam envenenado os poços. A Alemanha e todo o resto da Europa foram tomadas
por uma gigantesca onda de antissemitismo. Milhares de judeus foram
assassinados, suas propriedades destruídas. Na Alemanha apenas, mais de 300
comunidades judaicas desapareceram. Mas, como não houvesse mais ninguém para
cumprir a função de prestamistas na sociedade, após o fim da epidemia os judeus
tiveram permissão de voltar a residir em algumas cidades alemãs, mas sujeitos a
severas restrições e inúmeros impostos. Entre 1352-1355 eles voltam a Erfurt,
Nuremberg, Ulm, Speyer, Worms e Trier. Houve, também, um aumento na exploração
por parte do imperador que passa a exigir um imposto sobre “todo homem judeu e
todas as viúvas, de 12 anos de idade para cima”. Declara, também, uma moratória
das dívidas aos judeus, em 1385 e em 1390, o que resultou num severo golpe em
sua situação econômica. Por conta dos ataques violentos e dos opressivos
impostos, a vida judaica na Alemanha sofreu muitos golpes. Tudo isso não
conseguiu destruir sua intensa atividade religiosa, ainda que o estudo profundo
e abrangente tivesse se tornado mais raro após meados do século 14. Isso levou
ao hábito de permitir que só se tornassem rabinos aqueles que pudessem
apresentar uma autorização para ensinar (Hatarat hora’á), emitida por um
dos mestres reconhecidos. Os costumes e os regulamentos relativos à forma do
culto eram estudados em profundidade, e foram fixados, definitivamente, como o
ritual das sinagogas da Alemanha. O SÉCULO 15. Não houve mudança, no
século 15, quanto à precária situação dos judeus. Foram anos marcados por pogroms,
libelos e expulsões. No sul e leste da Alemanha, com menos cidades e a economia
mais atrasada, os judeus tiveram mais facilidade de ganhar seu sustento. Era
também a rota para a Polônia, que, gradualmente se tornou seu refúgio. O que
acontecera na 1a Cruzada voltou a suceder durante a chamada Guerra
dos Hussitas (1419-1434), levando ao reinício das perseguições contra os judeus
na Boêmia, Morávia e Silésia. Durante esse conflito armado, os partidários de
João Hus, precursor do movimento protestante e considerado herege por Roma,
tiveram que enfrentar a Igreja e Albert V, Imperador do Sacro Império. Uma
crônica judaica da época, intitulada “Wiener Geserá” (Desgraça de
Viena), relata os trágicos eventos. No outono de 1420, irrompe a perseguição;
os judeus são presos, torturados e executados; as crianças são vendidas como
escravas ou convertidas à força. Todos escolhem morrer Al Kidush HaShem
antes que seus algozes os assassinassem. Logo a seguir, Albert V acusa os
judeus de fornecer armas para os hussitas e, em março de 1421, mais de 200
morrem na fogueira. Em 1420, 1438, 1462 e1473 foram sucessivamente expulsos de
Mainz, em 1424 de Colônia, em 1440 de Augsburg. Em 1475 outro libelo de sangue
ocorre em Trent, provocando ataques contra os judeus em toda a Alemanha, bem
como a sua expulsão do Tirol. Várias cidades os expulsaram. Na primeira década
do século 16, dentre as mais importantes cidades da Alemanha, apenas Worms e
Frankfurt ainda tinham grandes comunidades judaicas. Nessa última, a partir de
1458, a Câmara dos Vereadores começou a construir casas para os judeus fora dos
muros da cidade. Após quatro anos, eles foram forçados a se mudar para essas
casas. No século 16, a comunidade judaica de Frankfurt era uma das mais
importantes da Alemanha. Nesse período a história da Alemanha foi marcada pela
desunião do Império e o enfraquecimento do imperador, em favor dos príncipes.
Isso evitou as expulsões, em larga escala e por todo o país, como ocorriam em
outros países da Europa. Na Alemanha, quando os judeus eram expulsos de uma
área, eles podiam viver temporariamente em um local vizinho, até que pudessem
retornar a suas casas. Mas, a falta de uma autoridade central os deixou à mercê
dos governantes locais. Em geral, o imperador, os príncipes e as cidades
imperiais lhes davam proteção. No entanto, um único pregador fanático tinha
capacidade de inflamar as massas contra eles. Tornou-se constante seu fluxo das
províncias do Reno e Danúbio para as terras polonesas. Essa imigração
dificilmente teria tido a dimensão que teve não fossem as nefastas
circunstâncias que forçaram um grande número de judeus a buscar refúgio na
Polônia. O número cresceu em consequência das Cruzadas de 1146-1147 e de 1196,
e da intensificação das perseguições durante os séculos 12 e 13. O final do século
15 é visto como a ponte entre o final da Idade Média e o início do
Renascimento, uma nova época para o mundo cristão. Mas que não trouxe alívio
nem sossego aos judeus… 1O nome Ashquenaz começa a ser usado
apenas na Idade Média. 2O nome Lorena advém do reino medieval da Lotaríngia.
3Ducados-troncos eram os ducados que formavam o reino. 4Particularismo,
em política, é o nome que se dá quando o povo de um lugar procura, dentro do
Estado, conservar sua identidade, características e autonomia. 5Esta
dinastia também é conhecida como dinastia saxônica. 6As letras em
hebraico têm valor numérico. 7Halachá, o conjunto de leis e
costumes que regem o judaísmo. 8Os Armleder eram marginais
que usavam braçadeiras de couro e realizavam pogroms contra os judeus na Alemanha,
no século 14.regem o judaísmo. www.morasha.com.br. Abraço. Davi
BIBLIOGRAFIA: Gidal, Nachum Tim,
Jews in Germany: From Roman Times to the Weimar Republic, 1998. Gay,
Ruth, The Jews of Germany: A Historical Portrait, 1994
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