segunda-feira, 14 de outubro de 2019

PÍRAMO E TISBE


Mitologia. O livro da Mitologia. Texto de Thomas Bulfinch (1796-1867). Capítulo Três. PÍRAMO E TISBE. PÍRAMO ERA O JOVEM mais belo, e TISBE a mais bela donzela em toda a Babilônia, quando Semiramis reinava. Seus pais moravam em casa contiguas; a vizinhança aproximou os dois jovens e o contato inicial transformou-se em amor. Eles queriam muito se casar, mas seus pais os proibiram. Havia algo, contudo, que eles não podiam proibir: que o amor brilhasse com o mesmo ardor no peito de ambos. Eles se comunicavam por meio de sinais e trocavam olhares, e o fogo desse amor ardeu tão intensamente que não havia como escondê-lo. Na parede que separava as duas casas existia uma fenda, criada por alguma falha na estrutura. Ninguém havia notado a fenda até então, mas os amantes a descobriram. O que o amor não descobrirá! Pela fenda podiam ouvir a voz um do outro; por ali trocavam mensagens ternas entre si. Quando se posicionavam, PÍRAMO de um lado e TISBE do outro, a respiração deles se misturava. “Parede cruel”, disseram eles, “por que manténs dois amantes separados? Mas não seremos ingratos. Devemos a ti, confessamos, o privilégio de poder transmitir palavras de amor aos ouvidos sedentos um do outro”. Essas foram as palavras que disseram cada um em seu lado; e quando a noite caiu se despediram e encostaram seus lábios na parede, ela no lado dela, e ele no dele, pois não havia como se beijarem. Na manhã seguinte, quando a aurora havia apagado as estrelas, e o Sol havia derretido a geada sobre a relva, eles se encontraram no local combinado. Então, após lamentar a sua dura sina, concordaram que na noite seguinte, quando tudo estivesse em silêncio, fugiriam da família, deixando sua casa, e se encontrariam num conhecido monumento que ficava fora dos limites da cidade, o túmulo de NINO; e aquele que chegasse ali primeiro deveria esperar pelo outro ao pé de uma determinada árvore. Tratava-se de uma amoreira branca, próxima de uma fonte refrescante. Tudo estava combinado e eles aguardaram impacientemente até que o Sol se pusesse atrás das águas e que a noite a partir delas se erguesse. Então, cuidadosamente, TISBE saiu de sua casa sem ser notada pela família, tendo um véu sobre a cabeça; caminhou até o monumento e sentou-se sob a árvore. Enquanto ali estava sob a luz opaca da noite, avistou uma leoa que ainda tinha na boca pedaços de uma presa recente e se aproximava da fonte para matar a sede. TISBE, então, saiu dali refugiando-se numa gruta. Enquanto fugia, deixou cair o seu véu. Depois de matar a sede, a leoa virou-se para retornar à mata, e, vendo o véu caído no solo, lançou-se sobre ele, rasgando-o com dentes ensanguentados. PÍRAMO, que se atrasara, aproximou-se do local combinado para o encontro. Viu as pegadas do felino na areia e empalideceu no mesmo instante. Em seguida encontrou o véu todo rasgado e cheio de sangue. “Oh donzela infeliz”, disse ele, “fui eu a causa de tua morte! Tu, mais digna de viver do que eu, foste a primeira vítima. Seguir-te-ei. Fui o culpado, pois pedi que viesses a um lugar tão perigoso, e não estava aqui para te proteger. Oh leões, sai vós de entre as rochas, e rasgai este corpo culpado com os dentes”. Ele recolheu o véu, carregou-o até a árvore escolhida para o encontro, e cobriu-o de beijos e derramou lágrimas sobre ele. “Meu sangue há de também manchar o teu tecido”, disse, e desembainhando a espada, feriu o próprio coração. O sangue jorrou da ferida e foi absorvido pela terra até chegar às raízes da árvore, de modo que o vermelho tingiu primeiro o caule e depois as próprias amoras. A essa altura, TISBE, que ainda tremia de medo, desejando não desapontar o amante, saiu cautelosamente, olhando ansiosa para encontrar o jovem e contar-lhe o perigo de que havia escapado. Quando chegou ao pé da árvore e viu a cor das amoras, pensou que não fosse o mesmo lugar. Enquanto ainda hesitava, avistou o corpo do rapaz, que agonizava. Ela recuou, e um tremor atravessou-a tal como uma onda que atravessa a água quando sopra um vento repentino. Mas assim que reconheceu o amante, gritou e bateu em seu peito, abraçando o coro trêmulo, derramando lágrimas sobre o ferimento do rapaz, e dando-lhe beijos nos lábios frios. “Oh PÍRAMO, bradou, quem te fez isso? Responde-me, PÍRAMO; é a tua TISBE quem fala. Ouve-me, querido, ergue essa tua cabeça inclinada”. Ao ouvir o nome de TISBE, PÍRAMO abriu os olhos, depois fechou-os novamente. Ela viu o seu véu ensanguentado e a bainha dele sem a espada. “Tua própria mão te abateu, e por minha causa”, lamentou. “Eu também posse ser corajosa ao menos uma vez, e meu amor é tão forte quanto o teu. Seguir-te-ei na morte, pois fui eu o motivo da tua; e a morte que seria a única com o poder de nos separar não impedira que eu me reúna a ti. E vós, infelizes pais de nós dois, não negueis nossos pedidos. Tendo o amor e a morte nos unido, deixai que uma mesma tumba nos contenha. E tu, árvore, conserva as marcas de nossa morte. Que as tuas amoras sejam o tributo de nosso sangue derramado. Assim dizendo, ela também feriu o próprio peito com a espada. Seus pais cumpriram os seus desejos, e também os deuses. Os dois corpos foram sepultados juntos, na mesma sepultura, e os frutos da árvore até hoje são vermelhos. Moore, em Batalha de Sílfide, citando a lâmpada de segurança de Davi, rememora a parede que separa Tisbe de seu amante: “Oh da lâmpada, gaze de metal. Aquele véu de fio protetor, Com que Davi enrodilha o mal, Do danosos fogo abrasador. Na parede que divide a chama e o ar. Como a que separava Tisbe de seu bem, Há uma brecha pela qual se veem, mas não podem se beijar. Em Os Lusíadas, quando Luiz de Camões (1524-1580) descreve a Ilha dos Amores, há uma alusão à história de PÍRAMO e de TISBE e à metamorfose das amoras. “Os dons que dá Pamona, ali Natura. Produze, diferentes nos sabores, Sem ter necessidade de cultura, Que sem ela se dão muito melhores. As cerejas purpúreas na pintura. As amoras que o nome têm de amores. O pomo, que da pátria Pérsia veio, Melhor tomado no terreno alheio”. Se qualquer de nossos jovens leitores tiverem um coração tão duro a ponto de poder dar boas gargalhadas à custa do pobre PÍRAMO e de TISBE, poderão encontrar uma oportunidade de fazê-lo na leitura da peça Sonho de uma Noite de Verão, de William Shakespeare (1564-1616), onde o assunto é tratado de modo burlesco. O Livro da Mitologia. Abraço. Davi.


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