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SIMCHA ROTEM, CODINOME KAZIK. Último combatente vivo do Levante do Gueto de
Varsóvia, Simcha Rotem morreu em dezembro de 2018, aos 94 anos. Alma de
guerreiro, lutou incansavelmente em inúmeras batalhas contra os inimigos de seu
povo. Uma de suas missões mais importantes foi conseguir retirar do gueto, em
chamas, os combatentes judeus ainda vivos. Sua atuação foi tão simbólica do
espírito de heroísmo dos jovens judeus, que Claude Lanzmann (1925-2018) o
escolheu para a cena final de seu épico filme, “Shoah”. Os comandantes da
Organização Judaica de Combate que liderou o Levante do Gueto de Varsóvia, conhecida
por seu acrônimo em polonês, ZOB (Zydowska Organizacja Bojowa),
sabiam que estava perdida a luta dentro do gueto, que ardia em chamas. Kazik
foi então incumbido de ir para o lado ariano organizar a fuga dos companheiros,
que assim teriam a possibilidade de continuar a luta. No filme “Shoah”,
Kazik relata o momento em que, após dias planejando a fuga, volta para o gueto.
“Não vi nenhuma alma viva.... E pensei, sozinho, em meio àquela total
desolação, ‘Sou o último judeu’”. O filme termina com essas palavras de
desespero. Mas, na vida real, a história da ZOB e de Kazik não termina aí. O
jovem guerreiro não sucumbe ao desespero; levanta-se para continuar a luta.
Repentinamente ele encontra mais de 80 companheiros e consegue levá-los para um
local seguro. Entre eles, estavam dois de seus comandantes, Zivia Lubetkin1 e
Marek Edelman2. Em seu livro “Memórias de um Combatente do
Gueto de Varsóvia”3, publicado em 1994, Kazik reconta sua
história. UM JUDEU DE VARSÓVIA. Simcha nasceu em 10 de fevereiro de 1924,
em Czerniaków, um bairro de Varsóvia. Era o mais velho dos quatro filhos de
Miriam e Zvi Ratheiser. Seus pais sobreviveram à guerra, mas de seus três
irmãos - Israel, Dina e Raya – apenas Raya sobreviveu. A mãe era uma mulher
bonita e afável. Os poloneses cristãos diziam que “ela não parecia judia”,
“elogio torto” que ela detestava. O pai era um chassid que
trabalhava duro para sustentar a família, e era o chazan da
sinagoga. A família vivia em um apartamento em um bairro de classe
trabalhadora, onde havia poucos judeus, e Simcha cresceu brincando
principalmente com crianças cristãs. Fisicamente ele se parecia com a mãe,
ademais tinha modos e fala “de polonês de Varsóvia”. Essas características
permitiram-lhe esconder sua identidade judaica durante a Guerra, fato
determinante para a ZOB em sua luta contra os nazistas. Ele era o courrier
ideal, transitando para dentro e fora do gueto, por toda a Polônia, sem
despertar suspeitas. “Durante a Guerra, enquanto eu estava fora do gueto, não
usava faixa no braço com a estrela de David e nem o triângulo amarelo nas
minhas roupas. Tomava o trem em direção à estação mais próxima do meu destino e
ia aonde era preciso”. Em 1934, a família muda-se para um apartamento mais
espaçoso. Na época, os pais tinham uma loja que vendia materiais de construção.
A maioria dos clientes eram cristãos e mantinham um bom relacionamento com seus
pais, em particular com Miriam, sua mãe. Simcha estudou num cheder,
indo em seguida para uma escola pública administrada pela comunidade judaica.
Bom aluno, adorava matemática. Foi nessa época que sentiu na pele, pela
primeira vez, o antissemitismo polonês. A caminho da escola era assediado por
cristãos, mas sempre revidava os ataques. Em 1938, um ano antes de seu Bar Mitzvá,
filiou-se ao movimento da juventude sionista, Ha-No’ar Ha-Zioni. INÍCIO
DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL. Em 1º de setembro de 1939 inicia-se a 2ª Guerra.
Os exércitos do Terceiro Reich invadem a Polônia e sitiam Varsóvia, debaixo de
pesado bombardeio. A família de Simcha decide mudar-se para o bairro judeu.
Desde os primeiros dias há escassez de alimentos e era ele, na época com 15
anos, quem ia ao antigo bairro buscar pão com um amigo de seu pai, um volksdeutsch4.
À medida que o bairro judeu vai sendo mais castigado pelos bombardeios alemães,
seus pais e avós voltam para o antigo apartamento. No entanto, não havia local
seguro. Um dia após Yom Kipur, uma bomba atinge o prédio onde moravam e mata
seu irmão, Israel, e seus avós maternos. Ferido, Simcha fica preso nos
escombros. Quando conseguiu libertar-se, correu para o abrigo na casa ao lado,
onde encontrou seus pais e as duas irmãs. No dia 29 de setembro, os alemães
tomam Varsóvia e a perseguição aos judeus é iniciada. Eles são cruelmente
maltratados e levados ao trabalho forçado, enquanto são promulgados decretos
para humilhar, isolar e minar sua sobrevivência. O tratamento que lhes
reservavam os alemães era infinitamente pior do que o reservado aos poloneses
cristãos. E, quando se tratava da população judaica, estabelecia-se uma “colaboração”
entre poloneses e nazistas, principalmente na prática de “entregar”, de bom
grado, os judeus aos alemães. Com o contínuo racionamento, pelos
alemães, dos alimentos destinados aos judeus, Simcha passa a ir às aldeias onde
conseguia adquirir alimentos, ainda que a um preço salgado. No fatídico dia 15
de novembro de 1940, os nazistas trancafiaram os 375 mil judeus de Varsóvia
dentro do gueto - uma área pequena e decadente. Nos meses seguintes, despejam
outros 150 mil das regiões vizinhas no gueto já superpovoado. A área era
cercada por um muro alto e as portas de saída vigiadas por homens armados.
Nenhum judeu podia entrar nem sair. Os Ratheiser encontram um quarto pequeno
onde vivem até conseguir um lugar maior. As terríveis condições de vida pioram.
Nas palavras de Simcha, “Precisávamos, a todo custo, de comida, e assim fui
tentando minha sorte com o contrabando..., mas foi minha mãe quem mais ajudou.
Ela visitava seus antigos conhecidos no lado ariano e voltava com alimentos”.
Os riscos que o rapaz assumia eram cada vez maiores, e seus pais, temendo que
fosse morto durante uma de suas “empreitadas”, convencem-no a deixar o gueto e
ir para Klwów, uma pequena aldeia onde viviam alguns parentes. Ao chegar,
encontra trabalho com um camponês que sabia que ele era judeu. Todos os dias o
jovem ia à casa do patrão, onde podia comer à vontade. Mas, a culpa lhe corroía
a alma: “Os habitantes do gueto, inclusive minha família, sofrem de fome e
doenças enquanto eu aqui estou, entre a grama verde e o céu azul” (...). Por
seis meses ele sequer teve notícias do que se passava no Gueto de Varsóvia. Nem
imaginava que durante as sete semanas da Grande Deportação, a grande “Aktion”,
iniciada na noite de 22 de julho de 1942, véspera de 9 de Av, dia
de luto para o Povo Judeu, os nazistas haviam deportado 235.741 mil judeus do
gueto para Treblinka, onde a maioria deles foram assassinados nas câmaras de
gás e outros 12 mil enviados para outros campos. Tampouco sabia que qualquer
judeu, onde quer que estivesse, era alvo da fúria homicida alemã. Na aldeia
onde estava viviam apenas 20 famílias judias. Mas, mesmo assim, os alemães
instituíram um gueto no local. Simcha viu, pela primeira vez, “um alemão matar
a sangue frio, à luz do dia, um judeu que fora visto fora do gueto”. Ele decide
voltar para Varsóvia, mas antes de deixar o vilarejo compra um documento que
“comprovava” que ele era polonês cristão. A VOLTA PARA VARSÓVIA. Ao
chegar ao gueto descobre que sua família estava numa fazenda em Czemiakow,
considerada local de trabalho pelos alemães. O nome de Simcha não constava na
lista dos trabalhadores, a maioria jovens do movimento sionista Dror, mas ao
chegar à fazenda ele consegue ficar com o pai. É lá que lhe contam sobre a
Grande Deportação. Um membro do movimento juvenil Akiva, do partido Sionistas
Gerais, incumbe-o de voltar ao gueto para entregar um pacote a Lutek Rotblatt,
líder do movimento. Ao lá chegar, ele fica abalado. “Era um lugar
fantasmagórico… ruas inteiras sem vivalma (...)” Ele retorna à fazenda, mas, em
dezembro, os nazistas obrigam os judeus a voltar para o Gueto de Varsóvia, onde
estima-se que restavam apenas 70 mil judeus. Simcha passa a trabalhar num dos
armazéns onde os alemães “reuniam” as propriedades
pilhadas aos judeus. Nessa altura, ele já era membro ativo na ZOB, na unidade
da rua Mila. Um de seus comandantes era Zivia Lubetkin (1914-1978). Os jovens
da ZOB estavam decididos a enfrentar os nazistas, mas para uma ação militar
eram necessárias armas e ajuda. Movimentam-se em busca de fundos para a compra
de armamento, sendo alguns enviados ao lado ariano para pedir ajuda. A resposta
da resistência polonesa foi “Aguardem”. Mas o tempo se esgotava para os
judeus.... Após inúmeros apelos, a resistência polonesa lhes fornece dez
pistolas velhas e uma pequena quantidade de munição. REBELIÃO DE JANEIRO DE
1943. A ZOB sabia que os nazistas não tardariam a liquidar o gueto.
Discursando na Polônia, em 2013, na cerimônia que marcou o 70º aniversário do
Levante, Simcha lembrou que, “no início de 1943, a maioria dos judeus do Gueto
de Varsóvia já haviam sido assassinados e os que restavam sabiam que seu fim
seria o mesmo. O que os jovens da ZOB queriam era o direito de escolher o tipo
de morte que lhes tocaria”. Em janeiro de 1943 os nazistas reiniciaram as deportações,
mas os integrantes da ZOB estavam dispostos a enfrentá-los, mesmo com seu
mísero arsenal de algumas pistolas. O grupo de Simcha nem isso tinha; suas
armas eram facas e barras de ferro. Mas os judeus foram ao ataque e, em todo o
gueto, podiam ser ouvidos tiroteios. Alguns alemães morreram e suas armas foram
tomadas. Três dias depois, chocados pela inesperada reação judaica, os nazistas
interromperam as deportações. A ZOB festejou: “Não podíamos sonhar com mais do
que isso”. Sabiam, no entanto, que os alemães voltariam (...). Simcha convence
sua família a deixar o gueto. Vai até Siekierki, perto de Varsóvia, onde vivia
um polonês que dissera à sua mãe que os esconderia. Com esse polonês, cavou um
pequeno esconderijo no palheiro e depois foi buscar sua família, voltando logo
em seguida para o gueto. Numa de suas visitas percebeu que a irmã Raya, de dez
anos, não sobreviveria naquelas condições. Levou-a consigo e conseguiu que duas
irmãs polonesas cristãs, Anna Wachalska e Marysia Sawicka, escondessem a menina
em sua casa. Quando Stefan Siewierski5, sobrinho das irmãs, foi
detido pela Gestapo, Raya foi enviada para outro local. PREPARANDO A REVOLTA
DE ABRIL. Dentro do Gueto o tempo dos jovens combatentes era voltado à
preparação para a luta com os nazistas. Uma das primeiras operações de que
Simcha participou foi a libertação de judeus detidos pela Polícia Judaica e que
seriam entregues à Gestapo. Entre eles havia membros da ZOB. Simcha foi enviado
para sondar o local onde estavam os presos. Conseguiram libertá-los. Essa ação
deu um grande impulso à credibilidade da organização. Até então, a revolta
armada recebia apoio apenas de um grupo restrito entre os judeus que ainda
viviam no gueto. Nesse período, Simcha fazia parte do grupo de combate
liderado por Hanoch Gutman, localizado na Área dos Fabricantes de Vassouras (Brush
makers)6. Os jovens de cada grupo viviam e treinavam juntos e
sabiam que juntos lutariam e provavelmente morreriam. Mesmo em meio à
desesperança brotaram relacionamentos amorosos. Simcha se apaixonou por Dvora
Baran, uma jovem encantadora. Quando a revolta eclodiu, eles estavam juntos. A
moça tombou em combate, aos 23 anos, enquanto Simcha estava em missão no lado
ariano. O INÍCIO DA REVOLTA. Os nazistas iniciam a liquidação final do
gueto em 18 de abril de 1943, véspera de Pessach. Queriam
“presentear” Hitler com uma Varsóvia “Judenfrei” (livre de
judeus), em seu aniversário, dia 30 de abril. Durante a madrugada, dois mil
nazistas e colaboradores, pesadamente armados, cercam o gueto com tanques e, às
quatro da manhã, entram no Gueto Central. “Quando vi o tamanho da força alemã,
senti que não éramos nada”, recorda Rotem em um testemunho ao Memorial do
Holocausto de Yad Vashem. “O que poderíamos fazer com nosso patético armamento,
quase inexistente, diante do tremendo poder de fogo alemão... e sua enorme
força de Infantaria... Senti-me totalmente impotente. Mas essa impotência foi
seguida por um extraordinário sentimento de exaltação espiritual (…). Aquele
era o momento pelo qual estávamos esperando (...) de enfrentar a todo-poderosa
Alemanha (...)”. Em todo o gueto os judeus ouviam os sons de metralhadoras e
explosões de granadas vindos do Gueto Central, mas na área Brush makers,
onde estavam Simcha e seu grupo, a calmaria prevaleceu naquele primeiro dia. Às
cinco da tarde, os alemães bateram em retirada. “Quando nos reunimos, à noite,
constatamos que nossas baixas tinham sido irrisórias – apenas duas. Sabíamos
que naquele dia centenas de alemães tinham tombado, mortos ou feridos”. Os
judeus festejam, eufóricos. Haviam provado a si mesmos e ao resto do mundo que
enfrentariam os alemães com armas em punho. “Mas não tínhamos ilusões sobre
nossas chances. Mataríamos todos os que pudéssemos, mas sabíamos o que nos
esperava” (...). No dia seguinte, Simcha vê uma unidade das SS se aproximando.
Alguns minutos depois, explode a grande carga de explosivos que seu grupo
colocara sob a entrada. Os nazistas fogem sob o fogo dos jovens judeus,
abandonando seus feridos. Uma centena de nazistas são mortos. Retornam mais
tarde, temerosos, correndo rente aos muros. Os rebeldes atacam, novamente, com
coquetéis Molotov e tiros de pistola; e os alemães novamente batem em retirada.
Durante três dias as tentativas alemãs de entrar no gueto falharam, e as baixas
em vidas judias eram poucas. Mas, no terceiro dia, os nazistas mudam de
estratégia, não mais enfrentando os judeus de frente. Tomam posições fora do
muro do gueto, castigando os judeus com metralhadoras, canhões, aviões e
lança-chamas. Os jovens combatentes se veem lutando contra um inimigo fora de
seu alcance. Os nazistas começam, sistematicamente, a incendiar o gueto.
Centenas de judeus são queimados vivos. A ZOB não planejara um esquema de
retirada nem preparara seus próprios bunkers. Os jovens pretendiam
lutar corpo-a-corpo com o inimigo até o fim; mas, com os prédios ruindo, os
rebeldes tiveram que abandonar suas posições. Hanoch Gutman encarregou Simcha
de encontrar um bunker para se abrigarem. Escolhido por sua
“aparência de ariano”, saiu vestindo um uniforme das SS. Arriscava ser morto
pelos próprios judeus, mas assim podia movimentar-se livremente. Encontrou
um bunker. Os judeus lá escondidos receberam os combatentes, e
queriam se juntar a eles. Mas não havia armas suficientes. Após se reunirem com
os outros dois grupos na área, cerca de 100 combatentes estavam abrigados
no bunker. Mas, apesar do perigo, decidem sair e se juntar à luta
dos que estavam no Gueto Central. A vida dentro dos bunkers era
desesperadora: o calor era insuportável, não havia ar, água ou comida. No
décimo dia, o gueto já estava destruído. Não sobrara nada além de ruínas
ardentes e corpos carbonizados. A maioria dos guerreiros judeus ainda estavam
vivos, mas sem possibilidade de revidar já que o inimigo se mantinha fora de
seu alcance. Os comandantes da ZOB sabiam que chegara a hora de deixar o gueto
para ter alguma chance de continuar a luta. Em 29 de abril, o comando geral da
ZOB – Mordechai Anielewicz (1919-1943), Zivia Lubetkin, Michael Rosenfeld e
Hirsh Berlinski-Met – decidiu enviar Simcha e Zygmunt Fryderych ao lado ariano
para se reunirem com Yitzhak Zuckerman7, conhecido por seu codinome,
“Antek”. Este, que já estava lá há duas semanas tentando obter ajuda da
Resistência Polonesa, costumava dizer que Simcha era “seu assistente e assessor
de campo”. RESGATE DOS REMANESCENTES. Em suas missões de reconhecimento,
Simcha descobrira um túnel que levava ao outro lado do muro do Gueto. Ele e Zygmunt
o utilizaram para chegar ao lado ariano. Um polonês viu Simcha sair e este
disse-lhe ser um comerciante polonês que ficara preso dentro do gueto. Após
felicitá-lo por ter conseguido sair, o homem o instruiu como evitar a patrulha
alemã postada por perto para impedir a fuga de judeus. Simcha e Zygmunt foram
rapidamente ao apartamento de Anna Wachalska, sendo em seguida levados por
Stefan Siewierski para o de Feigl Peltel, a courrier do
partido Bund. O local se tornara a base de operações. Ao chegar, Antek ouviu,
abalado, as notícias do Gueto, mas não havia tempo para desespero. Cada minuto
era crucial; tinham que encontrar uma forma de retirar seus camaradas. Sabiam
que não encontrariam ajuda, só poderiam contar consigo mesmo e com os dedicados
poloneses que os ajudavam: Stefan Siewierski, Ana Wachalska e Marysia Sawicka,
Kostek, Tadek Shayngut e Wladyslaw Gajek (codinome, Krzaczek) do PPR (o Partido
dos Trabalhadores Poloneses). Os obstáculos à sua frente eram enormes: teriam
que voltar ao Gueto, encontrar os companheiros e levá-los para fora do muro;
conseguir um meio de transporte e levá-los a um esconderijo relativamente
seguro. Sabiam que a única forma de entrar e sair do Gueto era através dos
esgotos, e eles precisavam encontrar pessoas que trabalhassem nos esgotos de
Varsóvia para guiá-los. Já se haviam passado cinco dias desde que Kazik deixara
o Gueto, e ainda não haviam conseguido colocar o plano em prática. Não haviam
achado quem aceitasse guiá-los e nem meios de transporte. O grande receio era
chegarem tarde demais. Conseguiram a ajuda do chamado “Rei dos Chantagistas”, o
rei dos Shmaltsovniks8, em troca de uma grande quantia.
Não lhe revelaram que pretendiam resgatar judeus, disseram-lhe que “um grupo de
cristãos poloneses entrara no Gueto antes da revolta e a AK9 (Armia
Krajowa) queria resgatá-los”. A ROTA PELOS ESGOTOS. Sete dias
se passaram até conseguirem pôr o plano em prática. No dia 8 de maio, às 22h,
um grupo liderado por Simcha, acompanhado por dois trabalhadores, desceu no
bueiro do esgoto em frente do apartamento do “Rei” dos Shmaltsovniks.
Com cerca de dois metros de altura, o esgoto central em Varsóvia era um
labirinto com um fluxo poderoso de detritos. O trajeto era longo, difícil e os
guias ameaçavam abandoná-los. Chegaram ao gueto às duas da manhã. Simcha subiu
a escada de ferro na parede do esgoto enquanto os demais permaneceram embaixo,
com os guias. O que ele viu o deixou desesperado (...) corpos e mais corpos
(...) e ruínas (...). Freneticamente, começou a percorrer os locais onde sabia
que havia grupos de luta. Corria de um lado para outro, sinalizava com sua
lanterna, chamava, gritava as senhas. No filme de Lanzmann, ele relembra que,
de repente, (...) “Uma calma súbita se apoderou de mim. Sentia-me tão bem no
silêncio do gueto em ruínas, próximo aos corpos inertes que me eram tão
queridos, que senti vontade de ficar ali, esperando pela aurora, pelos
alemães... Mataria alguns deles e depois seria morto (…). Via-me tombando em
batalha como o último judeu do Gueto de Varsóvia”. Mas sua alma combatente, que
lutava pela salvação de seu povo, não o deixou desistir. Levantou, voltou ao
bueiro e gritou: “Vamos embora! Não há mais ninguém”. Foi quando ouviu um
barulho. Ia disparar sua arma, mas decidiu gritar a senha da ZOB. Dez camaradas
apareceram. Em poucos minutos, Simcha soube que chegara com um dia de atraso (...).
Os jovens lhe relataram os últimos oito dias. A morte de Mordechai Anielewicz,
o lendário comandante do Levante, que será sempre lembrado por seu legado de
coragem e idealismo, e dos 100 combatentes que estavam com ele na rua Mila 18.
E de milhares de outros judeus. Decidido a salvar quem ainda podia ser salvo,
mandou dois do grupo de volta ao gueto com a ordem de reunir o restante dos
sobreviventes e trazê-los para o esgoto. De volta ao lado ariano, ao anoitecer,
Simcha e seu grupo contataram os companheiros que estavam nos esgotos, para
alertá-los de que, na manhã seguinte, à saída do bueiro, haveria um transporte
esperando para levá-los para a floresta. Às cinco horas da manhã seguinte eles
estavam de prontidão cercando o bueiro; seus companheiros de luta começaram a
sair. Pareciam fantasmas. Ao ver um policial polonês se aproximando, Simcha foi
até ele para dizer-lhe para não se intrometer, pois se tratava de uma operação
clandestina da Resistência polonesa. Quando perceberam que ninguém mais saía, a
tampa do bueiro foi fechada e o caminhão seguiu em direção à floresta Lomianki,
onde já havia um grupo de combatentes do gueto. Driblando milagrosamente as
patrulhas alemãs, chegaram à floresta. Mas, era um esconderijo temporário, pois
sendo pequena, não havia muito onde se esconder. De volta a Varsóvia, Simcha
passou para Antek os nomes dos cerca de 80 combatentes que haviam sido
resgatados, entre eles, Zivia Lubetki, com quem Antek viria a se casar em 1947,
já em Israel. Simcha manteve contato com sua família até o início da revolta e,
depois disso, só conseguiu ter notícias deles em maio. Soube, então, que sua
irmã Dina, de 12 anos, voltara ao gueto à sua procura, pouco antes do início da
Revolta, e fora morta. No restante da guerra Simcha continua suas atividades
clandestinas junto à ZOB e a Resistência polonesa, ajudando, especialmente, de
todas as formas, as centenas de judeus que ainda permaneciam em Varsóvia,
escondidos. Continuou lutando ao lado dos partisans poloneses contra os
nazistas, participando, em agosto de 1944, da fracassada Revolta de Varsóvia.
Após o término da guerra, junto com Abba Kovner, passa a integrar uma nova
organização com mais de 50 participantes: os “Vingadores”, Nakam.
Nas palavras de Kovner, “Não imaginávamos que sobreviveríamos e, enquanto não
acertarmos as contas com os alemães, não teremos o direito de seguir em
frente”. Simcha Rotem também foi ativo na organização Brichá, que ajudava
os judeus europeus remanescentes a atravessar fronteiras e emigrar ilegalmente
para a Palestina do Mandato, apesar das restrições impostas pelas políticas da
Grã Bretanha, como o White Paper, de 1939. APÓS A GUERRA. Em 1947, ele e
os sobreviventes de sua família emigraram para a então Palestina. Simcha
juntou-se à Haganá e lutou na Guerra da Independência. “Em
teoria, um período de minha vida terminara e um novo se iniciava, em nossa
Pátria ancestral. Mas aquela, época, de minha vida é parte inseparável do meu
ser até hoje, um eixo em torno do qual gira o meu pequeno mundo”. Simcha
casou-se e teve dois filhos. Ao mais velho, ele deu o nome de Eyal, um acrônimo
para “Irgun Yehudi Lochem”, ZOB, em hebraico. Posteriormente,
dirigiu uma cadeia de supermercados, até se aposentar, em 1986. Rotem foi ativo
porta-voz e membro do comitê de Yad Vashem responsável por selecionar os
“Justos entre as Nações”, os não-judeus que ajudaram a salvar nossos irmãos
durante o Holocausto. Em 2013, participou de uma cerimônia em Varsóvia, pelos 70
anos do Levante do Gueto, onde recebeu, das mãos do chefe de Estado polonês,
Bronislaw Komorowski, a comenda da Grã-Cruz da Polônia Restituta,
uma das mais altas condecorações do governo polonês. No entanto, em abril de
2018, Simcha Rotem, eterno vigilante das atrocidades contra o Povo Judeu,
manifestou sua censura ao atual presidente polonês, Andrzej Duda: “Fiquei muito
frustrado, desapontado e mesmo surpreso com seu sistemático desrespeito à
diferença fundamental entre o sofrimento da nação polonesa depois de ter sido
tomada pela Alemanha nazista, que eu não desmereço, e o metódico genocídio de
meus irmãos e irmãs, cidadãos judeus poloneses, pela máquina exterminadora da
Alemanha nazista, ignorando o fato de que essa máquina de extermínio contou com
vários cúmplices poloneses”. E continuou: “Somente quando a sociedade polonesa
enfrentar realmente a amarga verdade histórica, revelando seu escopo e
intensidade, poderá haver uma chance de que tais horrores não se repitam”. O
nome Simcha Rotem está gravado na história do heroísmo do Povo Judeu e, como
declarou o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, por ocasião de seu
falecimento, em 22 de dezembro de 2018, em Jerusalém, “Sua história será
guardada para sempre nos anais de nosso povo”. Rotem deixou dois filhos e cinco
netos. 1Uma das líderes e única mulher na Alto Comando do grupo de
resistência ZOB, Zivia Lubetkin sobreviveu ao Holocausto e emigrou para a então
Palestina sob Mandato Britânico, em 1946. Ajudou a organizar a Brichá, cuja
missão era levar ilegalmente os sobreviventes judeus à Palestina do Mandato.
Casou-se com Yitzhak Zuckerman, sub-comandante da ZOB. Juntamente com outros
combatentes e partisans, fundou o Kibutz Lohamei HaGueta’ot e o
museu Casa dos Combatentes. 2Co-fundador da ZOB, Marek Edelman se
tornou o líder do Levante do Gueto de Varsóvia, após a morte
de Mordechai Anielewicz. Após a guerra, ele permaneceu na Polônia,
tornando-se cardiologista. Faleceu aos 90 anos, em outubro de 2009, celebrado
como herói pelos judeus e poloneses nacionalistas. Este ano, a cidade de
Varsóvia instituiu o ano de 2019 como “o ano de Marek Edelman”. 3Não
havendo menção em contrário, todas as demais referências mencionadas neste
artigo são desse livro de memórias de Simcha Rotem. 4Volksdeutsch –
Nome dado pelos nazistas aos alemães que viviam fora do Reich. 5 Por
suas ações em prol dos judeus, Ana Wachalska, Marysia Sawicka e Stefan
Siewierski foram agraciados por Yad Vashem como “Justos entre as Nações”. 6O
Gueto de Varsóvia era dividido em três áreas distintas: Gueto Central, Área dos
Fabricantes de Vassouras (Brush makers) e a área Tobbens-Schultz. 7 Yitzhak
Zuckerman, “Antek”, era o sub-comandante da ZOB. Servia de intermediário entre
o comando da Organização e os comandantes da AK – Armia Krajowae, e
AL- Armia Ludowa, organizações polonesas de resistência. 8 Shmaltsovnik é
uma gíria polonesa pejorativa usada na 2ª Guerra Mundial para as pessoas que
chantageavam judeus escondidos ou poloneses que protegiam judeus durante a ocupação.
9 Armia Krajowa, organização clandestina na
Polônia ocupada pelos nazistas. Atuava em conjunto com o governo polonês
no exílio e tinha como intenção libertar a Polônia de seus invasores
nazistas e russos na 2ª Guerra Mundial. BIBLIOGRAFIA: Rotem, Simcha
(Kazik), Memoirs of a Warsaw Ghetto Fighter, Yale University Press,
2002. www.morasha.com.br. Abraço. Davi
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