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A Mitologia Universal na visão de Marilu Martinelli. III. MITOLOGIA IORUBÁ – UM
ENCONTRO COM A ALMA DA MÃE ÁFRICA. Ogum, o Senhor da Guerra e da Energia dos
Metais
Ogum está entre os mais antigos deuses do panteão
iorubá. Ele é o divino ferreiro em cuja forja os metais assumem formas e
tornam-se instrumentos úteis para o trabalho e para a defesa. Como orixá, ele
nos oferece os instrumentos para obtermos o que desejamos e necessitamos.
Inspira a coragem e autoconfiança, valores indispensáveis para enfrentarmos
nossos problemas e solucioná-los.
O orixá guerreiro é muito reverenciado tanto na
África quanto no Brasil, Antilhas e Cuba. É o protetor dos ferreiros,
agricultores, caçadores e escultores que utilizam metais como matéria prima, e
de todos aqueles que lidam com máquinas, ferramentas e engrenagens. É o dono
dos caminhos e das conexões com diferentes pessoas e lugares. Ele exemplifica
valores como verdade, honestidade, coragem, perseverança, destreza e retidão.
Ogum é irmão de Exu e junto com ele destrói os obstáculos e vence demandas para
que aconteçam realizações materiais. Este orixá é louvado como uma força
empreendedora que fortalece o poder de iniciativa e a responsabilidade pessoal
dos seus fiéis. Ogum
afasta as más influências e protege as residências. Por isso, os adeptos
penduram nas esquadrias de portas e janelas folhas de dendezeiros desfiadas,
simbolizando que o orixá estará sempre presente, batalhando pelo bem-estar
daquelas pessoas que lá vivem. Os lugares consagrados a Ogum na África costumam
ser ao ar livre, e às vezes fora dos templos dedicados a outros orixás. Os símbolos
de sua presença e axé são grandes pedras em forma de bigorna que são colocadas
junto de uma árvore frondosa. Essas pedras são circundadas por uma planta
chamada “peregun”, um tipo de dracena conhecida no Brasil como espada de São
Jorge. Sobre essas bigornas são oferecidos sacrifícios e feitas oferendas ao
orixá. Nas
cerimônias de culto, Ogum é louvado logo depois de Exu, tanto na África quanto
no Brasil, Antilhas e Cuba. No Brasil, ele é cultuado como o deus da guerra e o
protetor dos guerreiros, vencedor das demandas, feitiços e das causas difíceis.
No sincretismo afrobrasileiro é identificado com São Jorge, exceto na Bahia
onde é sincretizado com Santo Antônio. Na época da escravidão, os negros nos
quilombos viam nele o grande defensor, o estrategista e o guerreiro imortal.
Quando o quilombo de Palmares em Alagoas foi destruído e Zumbi foi derrotado e
dado como morto, a escultura de Ogum foi sua herança compartilhada pelos seus
familiares. Como o corpo de Zumbi, o herói de Palmares, nunca foi reconhecido
pelos quilombolas, para alguns adeptos Zumbi teria sido uma manifestação física
de Ogum. Zumbi não teria morrido, teria virado um encantado.
O
Mito
Uma das narrativas mitológicas sobre Ogum conta que
muitos séculos atrás ele era um rei poderoso e um guerreiro extraordinário.
Certa vez, depois de ter conquistado a cidade de Irê, ele entregou o governo ao
seu filho, e partiu para novas campanhas em favor dos mais fracos e sofridos.
Durante sua caminhada cumpriu novas missões e viveu mil aventuras. Depois de
muito tempo ele volta a Irê, e justo naquele dia, os habitantes haviam feito um
voto de silêncio, e por isso não o saudaram. Isso deixou Ogum indignado e
furioso, porque compreendeu a atitude como descaso, ingratidão e desrespeito.
Encolerizado, investiu contra os moradores, matando-os a todos, e depois
incendiou a cidade. Quando
percebeu o que sua precipitação, orgulho e cólera tinham feito, Ogum
entrou em desespero. Sofrendo remorso profundo, não perdoou sua
destemperança, violência e injustiça, e para punir-se decidiu que não merecia
viver mais. Decidido, sacou a sua espada, e furou um enorme buraco no chão,
entrou nele e sumiu Terra adentro. Nas profundezas do planeta, no fogo sagrado
do útero da Mãe Terra, ele conseguiu transcender seus arroubos e defeitos,
vencendo as emoções destruidoras derivadas da ira e da impetuosidade. Tempos depois,
ressurgiu das profundezas do planeta, renascido de si mesmo. Renascido e
purificado, Ogum emergiu das profundezas, divinizado como orixá.
Arquétipo
Ogum é o orixá da coragem e disposição para servir
e batalhar por um objetivo digno. É a divindade que faz prevalecer o que é
justo e correto, e está sempre disposto a lutar por isso. Seus filhos costumam
ser fortes, destemidos e impulsivos. Perdoam com dificuldade as ofensas, são
arrogantes, e ao mesmo tempo francos, abertos, sinceros e leais. Um filho de
Ogum não desiste de lutar por seus objetivos por maiores que sejam as
dificuldades que venham a encontrar no caminho. Seus filhos e filhas têm
compleição grande, e porte atlético. Ogum é filho de Odudwa e Iemanjá; seus
domínios são os caminhos, as estradas, os combates e demandas de toda ordem. As
suas cores são: azul escuro e branco no candomblé, e vermelho e branco na
umbanda, o sincretismo afrobrasileiro. Quando incorporado no seu “elegun” (seu
ogã) veste roupas azuis, traz na cabeça um tipo de elmo e na mão direita uma
espada. Sua dança é marcial e viril. As oferendas de comidas a ele consagradas
são feijão fradinho e carne crua regados no azeite de dendê. Vinho de palma
também lhe é ofertado na África. O animal consagrado a Ogum é o galo vermelho.
Seu dia da semana é terça-feira, o elemento é o ferro e a saudação mântrica é:
Ogunhê, Patacuri Ogum.
Nanã Buruku –
Buruquê.
A Deusa
Criadora Forjadora de Todas as Formas de Vida
Na África, as mulheres idosas e respeitáveis são chamadas “nana”.
Nanã Buruku é filha de Olodunare, o deus supremo, e é considerada a deusa-mãe
primordial, aquela que forjou pessoalmente os invólucros carnais humanos
que abrigam os espíritos e permitem que estes vivam sua aventura de consciência
na Terra. Esta deusa forja também todas as formas de vida que servem de
instrumento para os diferentes estágios de consciência que se manifestam na
vida terrena.Este orixá tem seu culto ligado a Obaluaiê (orixá da cura) em
algumas regiões africanas, e é venerado como a deusa anciã, a portadora da
sabedoria do princípio feminino que permeia o universo e da experiência dos
mais velhos. Muitos atribuem sua origem ao Daomé, embora seja difícil
afirmar isso com segurança devido aos pesquisadores terem localizado muitos
outros lugares passíveis de serem aceitos como ponto originário deste
orixá. O povo “ashanti” tem um culto à deusa primordial sob muitos aspectos,
os quais denominam “Nanã Inie”. Para essa etnia, essa deusa desempenha o mesmo
papel criador do deus supremo. Nos templos dedicados à deusa primordial existem
outras entidades que são extensões dela, mas existe um trono consagrado à
Grande Mãe, e somente uma sacerdotisa de Nanã Inie pode tocar nele.No resto da
África, porém, os cantos dedicados a Nanã são em iorubá arcaico, o que denota a
antiguidade do seu culto. Por ocasião dos festivais a ela dedicados as
peregrinações se dirigem a uma região de Gana próxima à fronteira do Togo. Lá
os fiéis se reúnem ao redor de uma grande árvore de “ficus vesiculosus” (odan),
onde cantam e dançam ao som de tambores e agogôs. A maioria dos participantes é
de “yaôs” da deusa. São mulheres idosas que se vestem com panos coloridos
amarrados acima do peito, têm a testa e as têmporas pintadas com giz branco, e
os braços e pescoço cobertos por colares e braceletes feitos de contas
multicoloridas. Elas se apóiam em bastões, e se movimentam com lentidão, ora
para a direita ora para a esquerda, dançando conforme o ritmo.No Brasil
e em Cuba Nanã é a deusa ancestral, e também a mãe de Obaluiaê. Nanã
é considerada a anciã sábia e veneranda detentora da memória dos primórdios do
planeta e dos valores espirituais e éticos. Este orixá é a deusa e senhora das
águas paradas e lamacentas, assim como do lodo dos pântanos.
O Mito
Nanã Buruku
é a deusa criadora do corpo humano. Conta uma lenda de Ifá que Nanã deve a seu
cargo uma missão fundamenal. Antes de enviar os 16 orixás para realizarem na
Terra a sua vontade, Olodumare, o deus supremo, chamou Oxalá e lhe deu uma
sacola contendo sementes de vida. Quando a sacola da criação que Olodumare
entregou a Oxalá foi aberta, Nanã estava presente e encarregou-se de semeá-las.
Para tal, ela forjou a argamassa para que as formas fossem criadas. Por esta
razão, ela rege a lama e o lodo, a mistura de terra e água. Este orixá é
o princípio feminino portador da força criadora e formadora do corpo físico
destinado a abrigar a sabedoria ancestral de todas as espécies que vivem no
planeta. Nanã, por ser sábia, é muito paciente, tolerante e constante.
Simboliza a memória da criação. Reza o mito que com carinho e cuidado ela
amassou terra e água com seu pilão gerador, e com os próprios pés moldou e
formou os corpos humanos e também dos animais. Ela traz o poder das águas
celestiais e primordiais para a Terra. Permite a manifestação do poder cósmico
na natureza diversificada.
Arquétipo
Seus filhos
são tranqüilos, pacientes, meigos, gentis, compreensivos e corretos e dignos de
respeito. Costumam fazer suas tarefas lentamente, porém muito, bem-feitas.
Caminham devagar, falam pausadamente e possuem grande controle sobre seus
impulsos e emoções. Suas “yaôs” adoram crianças e são excelentes educadoras.
Educam com competência porque são amorosas e firmes na orientação dos seus
educandos. São conselheiras cheias de sabedoria, e procuram sempre criar
harmonia entre as pessoas. Os filhos de Nanã promovem ao seu redor equilíbrio e
acolhimento. São pessoas justas, calmas, tolerantes, ponderadas, doces,
amorosas e muito corajosas. No Brasil, quando
incorporada, a deusa Nanã dança de forma lenta e imita os movimentos de quem
soca um pilão. Esse orixá veste roupas roxas ou brancas e azuis, e tem o colo e
os braços enfeitados com colares e pulseiras feitos de contas de vidro brancas
e azuis ou roxas. O dia consagrado a Nanã é o sábado, a comida que lhe é
oferecida é arroz branco, inhame e às vezes a oferenda é feita com quiabos sem
azeite e muito temperados. Os animais consagrados a ela são cabras e galinhas
d’angola, que não podem ser abatidas com facas nem nada feito de ferro ou aço.
Este orixá é sincretizado no Brasil como Sant’Ana. A sua saudação mântrica é:
Saluba Nanã!
Obá, a Deusa Guerreira Protetora dos Desvalidos
Obá é a deusa iorubá que sintetiza o poder de luta,
a coragem e capacidade de lidar com as adversidades inerentes ao Feminino.
Interessante notar que este orixá é considerado mais forte fisicamente do que
muitos orixás masculinos. Poder-se-ia dizer que esta deusa quebra o tabu da
fragilidade feminina. Seu axé se assentou na Nigéria no rio Obá, e dele emana
para a África e o mundo. Obá simboliza a força interior e o destemor da mulher
na defesa de seus valores, seus ideais e princípios. É a precursora milenar da
luta feminina pela independência e autonomia. A deusa Obá é muito combativa e
grande conhecedora das artes marciais. É respeitada pela sua destreza com as
armas, tendo derrotado vários deuses com facilidade. Somente perdeu uma luta,
para Ogum, porque este lhe preparou uma armadilha temendo que ela o derrotasse
e comprometesse sua reputação de guerreiro invencível. Ogum, o orixá do ferro,
desafiou Obá para um combate, ela aceitou, e no dia marcado Ogum besuntou o
chão onde a luta deveria acontecer com quiabo e azeite. Durante a luta, Obá, ao
fazer um movimento mais brusco, escorregou e caiu, e desse modo pouco ético,
ela foi derrotada. Este
episódio demonstra que o masculino e o feminino não devem se enfrentar em
disputas, e sim buscar a complementaridade, senão um dos dois sairá derrotado e
sofrido. Obá simboliza também a liberdade sexual, porque ela não se prendia a
nenhum homem. Durante muito tempo, foi casada com Oxalá, Xangô, Orumilá e Ogum.
Como Ogum venceu a contenda, sentiu-se no direito de submeter a deusa aos seus
desejos e fez dela sua mulher. Ela resistiu bravamente, pois não se entrega com
facilidade, mas Ogum foi insistente e criativo nos agrados, e Obá cedeu aos
encantos do deus da guerra com quem afinal das contas tinha muitas afinidades. Mesmo sendo guerreira
valente e independente, a deusa busca seu complemento masculino e é ardente e
amorosa. Obá é basicamente a deusa que explicita a liberdade de escolha,
fidelidade no que acredita, e a defesa pelos direitos da mulher e dos mais
fracos e desvalidos.
O Mito
Conta o mito que ela abandonou Ogum por Xangô,
tendo se tornado a terceira esposa do rei divinizado. Xangô era para ela o
outro lado do espelho. Obá era fiel, sincera, mas não era bonita nem sedutora,
e ele era ardiloso, bonito, vaidoso, sedutor e instável. O grande rei sentiu-se
desafiado e apaixonou-se pelo destemor, pela independência e pelo espírito
indomável da deusa. Diante dos encantos e agrados de Xangô, Obá baixou a guarda
e não resistiu à paixão que Xangô lhe despertou.
Ele a levou para seu reino, onde Oxum e
Iansã já viviam como suas esposas. Quando Obá chegou à corte, uma rivalidade
logo se instalou entre ela e Oxum. Iansã estava ausente cumprindo uma de suas
missões. Obá era muito apaixonada por Xangô, e o queria somente para si. Oxum,
enciumada com as atenções que Xangô dispensava à nova esposa, resolveu preparar
uma cilada para Obá. A deusa guerreira não media esforços para agradar Xangô,
porém ela não sabia cozinhar bem como Oxum, e sabendo que Xangô era guloso,
pediu que Oxum lhe ensinasse um prato que ele apreciasse. Oxum costumava fazer
pratos maravilhosos que faziam o deleite de Xangô e maliciosamente se propôs a
ensinar Obá. Ela disse a Obá que Xangô adorava um prato feito com quiabos
chamado “amalá”, e que ela, Oxum, havia cortado as próprias orelhas e colocado
para cozinhar junto com a iguaria como prova de amor e entrega total ao seu
homem. Na verdade, ela havia colocado dois grandes cogumelos na panela, mas
Obá, que era incapaz de mentir, acreditou.
Xangô comeu com prazer a comida e se retirou
feliz com Oxum, deixando Obá sozinha. Muito triste, a deusa se sentiu rejeitada
e decidiu que quando fosse a sua vez de cozinhar para o rei deus usaria o mesmo
estratagema que Oxum e cortaria a orelha também. E assim o fez. Quando o marido
viu que lhe faltava uma orelha ficou horrorizado e, cheio de repugnância, saiu
correndo ao ver que a orelha cortada estava no meio da comida. Obá partiu
furiosa ao encontro de Oxum e quando a encontrou viu que tinha sido enganada,
porque dois lindos brincos reluziam nas orelhas perfeitas de Oxum. As duas
travaram uma luta feroz e Xangô, indignado com a cena, teve uma crise de furor,
e as expulsou do palácio. As
duas se refugiaram imergindo nas águas dos rios que levam seus nomes. A
confluência dos dois rios apresenta as águas muito revoltas, e os iorubanos
dizem que são os sinais da luta eterna entre as duas deusas. Interessante notar
que nesta mitologia não existe o conceito de certo e errado como julgamento de
valor. Para os iorubanos o certo e o errado, o bem e o mal, são as regras do
jogo da vida. A filosofia de vida dos iorubás é a fluidez e a flexibilidade;
ganhar e perder é a alternância natural. Para eles, ambas estavam lutando como
podiam pelo que desejavam. O estratagema de Oxum é visto como coisa de mulher,
artimanhas, jogos amorosos e mistérios insondáveis que somente as mulheres
possuem. Este mito também ensina o quanto é importante estar atento ao que
subjaz além das palavras, situações, gestos e atitudes. Observar sempre o
subtexto das palavras e intenções.
Arquétipo
Quando Obá se manifesta em uma das suas “yawôs”,
tem sempre um turbante na cabeça escondendo a orelha decepada, numa alusão a
lenda. Suas filhas têm tendências um pouco masculinizadas; não que sejam
homossexuais obrigatoriamente, mas apresentam uma forte energia masculina nos
gestos e na maneira de andar, pensar e falar. São mulheres sem vaidade que não
ligam para moda nem maquiagem, vestem-se simplesmente, não usam jóias nem
enfeites. São geralmente práticas, eficientes, competentes e objetivas. Em
geral são infelizes nas relações amorosas porque não têm jogo de cintura, nem
sabem lidar com as próprias emoções e sentimentos, portanto tornam-se vítimas
dos próprios ímpetos. São mulheres valorosas, leais e geralmente
incompreendidas, mas compensam seu insucesso amoroso com muito empenho no
trabalho, e conseguem sucesso profissional e financeiro, assim como
reconhecimento social. Costumam lutar para ter bens materiais e quando os
adquirem, deles são muito zelosas.
Uma outra característica das suas yawôs
é defender os mais fracos em geral e lutar pelas causas feministas. A dança de
Obá é marcial, ela carrega uma espada em uma das mãos e um escudo na outra, e
faz movimentos de luta. Sua roupa é multicolorida e sem adereços. Os animais
que lhe são consagrados são: cabras, patos e galinha d’angola. No Brasil foi
sincretizada com Sta Catarina. Saudação mântrica: Axé Obá! Obá!
Obaluaiê - Omulu - Xapanã
O deus da
saúde e da doença
Ele é o deus Xapanã que pode promover a saúde ou a
doença; é tão temido que os adeptos não pronunciam seu nome sem antes pedir
clemência batendo no chão com a mão três vezes. Acredita-se que o culto a este
orixá seja mais antigo do que o culto às demais divindades que vieram à Terra
junto com Odudua. Obaluayê seria um deus de uma civilização anterior à Idade do
Ferro. Isto pode ser notado pelo fato de que durante os rituais a ele
oferecidos, os sacerdotes não usam facas nem nenhum outro objeto de metal para
o sacrifício de animais. O
lugar de origem deste orixá é nebuloso, mas muitos localizam seu reino em
Ibadan e afirmam que ele teria sido, quando vivo, rei do povo “tapa”. Outros
indicam que ele chegou a Oyó vindo do Daomé junto com sua mãe, Nanã Boruku ou
Borukê, outro orixá muito respeitado do qual falaremos mais adiante. Na África,
Xapanã é reverentemente chamado e invocado como Obaluayê ou Omulu. Em outros
locais da África, porém ele é chamado pelos iorubás Sanponá-Obaluayê, “Rei Dono
da Terra”. Talvez numa referência a fragilidade humana diante das intempéries e
das doenças durante a passagem pela vida terrena. Depende desse orixá a
imunidade e a cura de males físicos.
Mito
Conta uma lenda de Ifá que Obaluaiê era originário
de Tapá, território onde reinava soberano. Um belo dia, reuniu seus guerreiros
e os levou para uma jornada pelos quatro cantos da Terra. Durante as batalhas
que travou pelos caminhos, sempre que lançava suas flexas acertava o alvo; e
aquele que era atingido ou morria ou ficava cego, surdo, manco, deformado, e,
além disso, o lugar onde havia sido atingido ficava marcado com uma ferida
incurável. Por onde ele passava deixava sofrimento e doenças. Os “mahi”, um dos
povos atacados por Xapanã, romperam o ciclo de desgraças. Depois do ataque, o
rei mahi reuniu os sobreviventes e decidiu procurar um babalaô poderoso. O
sacerdote consultou Ifá e recebeu deste a orientação do que fazer para acalmar
a ira de Xapanã. Ifá orientou que lhe homenageassem e oferecessem pipocas de
milho em quantidade e lhe dedicassem anualmente uma festa denominada Olubajé.
Realmente, Xapanã se acalmou e ficou satisfeito com as homenagens recebidas,
tanto que mandou construir em território mahi um palácio suntuoso para morar, e
lá ficou, tendo deixado para sempre o reino de Tapá. Ao morrer tornou-se orixá.
Os “mahis” desde então o homenageiam e, devido a isso, prosperaram e
permaneceram saudáveis e imunes à varíola e demais doenças mortais que
assolavam a África. Na
África as cerimônias para este orixá acontecem ao ar livre. Os adeptos, depois
de passarem por um riacho a ele consagrado, saem do templo principal e chegam
até o mercado onde uma tenda sustentada por quatro pilastras irá abrigar o axé
do deus. Uma mulher idosa, em transe, carrega o axé; outras tantas vão atrás,
carregando gamelas com comida. Um “elegun” filho de santo, incorporado pelo
orixá, segue atrás delas andando trôpego como quem sofre dores. O deus vem
envolto em panos vermelhos bordados com búzios de rio e traz o rosto coberto. No
templo, Obaluaiê dança ao som dos atabaques sagrados e os fiéis se prostam
batendo a cabeça no chão. No Brasil, quando incorporado no seu “elegun” ele se
apresenta também todo coberto. Veste uma saia de palha da costa desfiada e tem
na cabeça uma espécie de capuz também de palha, que lhe cobre o rosto e chega
até a cintura. Na mão direita carrega o “xaxará” um tipo de vassoura feita de
folhas de palmeira trançadas e bordadas com búzios de rio e contas opacas
brancas, pretas e marrons. Nela estão penduradas pequenas cabaças onde Obaluaiê
carregaria poções medicinais para curar as diversas doenças. Tudo que se refere
a este deus é solene, grave, triste e sombrio.
Arquétipo
Os filhos de Obaluaiê tendem à depressão e ao
masoquismo, gostam de falar de doenças, de tragédias, de se queixar e contar
suas tristezas, dores e frustrações. Sorriem pouco e nunca estão satisfeitos
com o que têm. São pessoas incapazes de viver momentos de alegria sem pensar
que aquela alegria antecede tristezas, e por isso temem a felicidade. Sua
alegria, quando manifestada, é triste e moderada. Possuem personalidade
autopunitiva e costumam ser hipocondríacos e somatizar doenças. São mordazes e
irônicos, mas ao mesmo tempo podem ser muito dedicados a quem precise deles, a
ponto de renunciar ao próprio bem-estar pelo bem-estar alheio. Outra
característica é a autoestima baixa e a tendência a responsabilizar os outros
por seus problemas e dificuldades.
Quando incorporado, sua dança é lenta e
pesada, e os seus filhos dançam recurvados e alquebrados, demonstrando fraqueza
física e dor. Durante o “Olubajé”, o chão das casas de culto fica coberto de
pipocas. Nessas ocasiões, os fiéis o saúdam pedindo saúde. Na Bahia, a igreja
de São Lázaro, todas as segundas-feiras, também tem o chão coberto de pipocas. Este orixá é
sincretizado como São Lázaro. A comida consagrada ao deus é pipoca e “aberem”,
milho cozido e enrolado em folhas de bananeira. Os animais consagrados são:
bode e galo. Os fiéis passam pipocas no corpo para limpar a aura de larvas
astrais e se proteger de doenças. Suas cores são: branco, preto e marrom. O dia
consagrado é segunda-feira. A saudação é Atotô!
Oxum, a Deusa Primordial da Prosperidade
Oxum é a expressão da generosidade, beleza, graça,
criatividade, doçura, fertilidade e criatividade do princípio feminino. É a
deusa de todos os rios e cachoeiras, a senhora das águas doces e abundantes que
garantem a manutenção da vida. É basicamente o orixá da fecundidade, da fartura
e da prosperidade. Na
Nigéria, esta deusa é adorada em Ijexá, onde seu axé se assentou e se irradia a
partir do rio Oxum. Um dos nomes de Oxum é Ialodê; este nome é uma honraria que
distingue aquela que vem a ser a mulher mais importante da comunidade. Na
África, o seu axé mais poderoso se encontra nas pedras roladas que ficam no
fundo do rio Oxum, nos búzios e nas jóias feitas de cobre. O cobre era
considerado antigamente pelos iorubás o mais precioso dos metais. No Brasil,
Oxum ficou associada ao ouro, principalmente depois que o negro escravizado foi
trabalhar nas minas e viu que no novo mundo o ouro era o mais valorizado que o
cobre. Existem
vários aspectos de Oxum com nomes que revelam suas qualidades e poderes. Osun
Ijumú é a rainha de todas as Oxums. A deusa foi casada com Ogum, Orunmilá,
Oxossi e Xangô. Interessante
observar a liberdade amorosa que possuem as deusas nesta tradição, podendo ter
vários parceiros escolhidos por vontade própria. A mulher iorubá constrói sua
identidade espelhando-se nos diferentes aspectos dos orixás femininos, e se
nutre da liberdade e dos poderes das diversas deusas. Oxum é a deusa que
ensina às mulheres como agradar seus maridos, e a ter filhos. A deusa é, no seu
aspecto mais respeitado, a conselheira sábia Oxun Ayalá, a Avó. Oxum Ajagira é
o seu aspecto guerreiro mais poderoso, embora haja outros nomes para denominar
o mesmo aspecto dela como valente guerreira. Yeyé Morin é o aspecto gracioso,
meigo, dengoso, faceiro e elegante do orixá.
O
Mito
Como já disse anteriormente ao narrar o mito de
Exu, Oxum é sua mãe por partenogênese, embora em algumas versões, ele apareça
como filho de Iemanjá. Porém, em todos os contos consta que os orixás quando
vieram à Terra excluíram as mulheres das decisões que seriam tomadas para
cumprir a missão que lhes foi confiada por Olodumare: organizar a vida no
planeta. O resultado dessa exclusão foi a esterilidade dele, das mulheres, das
terras e também a desolação e o fracasso de todos os empreendimentos. Somente
Oxum tinha o poder de restaurar a fecundidade deles, das mulheres, das terras e
a prosperidade e êxito nos empreendimentos. Sem a intervenção do princípio
feminino não existe beleza, fartura nem felicidade, segundo os iorubás. Os reis de Oxogbô
adoram Oxum e fazem grandes festas em sua homenagem. Uma das lendas conta que o
rei Laro, o iniciador da dinastia, tinha uma filha muito amada que um dia foi
banhar-se no rio Oxum e sumiu. Depois de procurarem em vão pela moça, o rei vê
a filha surgir das águas do rio lindamente vestida e adornada com jóias. Muito
agradecido, o rei dedicou a Oxum muitas oferendas. Os peixes, mensageiros da
deusa, vieram comer as iguarias ofertadas em sinal de aceitação do ritual pela
deusa, e as águas transbordaram e fertilizaram o terreno trazendo boa colheita
riqueza e alegria. Muito agradecido, o rei disse então: “Osun gbô” (Oxum
atingiu a maturidade e está procriando). Esta é a origem do nome da cidade de
Oxôgbô.
Arquétipo
O arquétipo de Oxum é o das mulheres bonitas,
graciosas, astuciosas, ardilosas, faceiras, dengosas, elegantes, corajosas,
amorosas e acolhedoras. Suas filhas e filhos são bonitos e também muito
vaidosos e cheios de charme. As mulheres são voluptuosas e sensuais embora sem
exageros. Algumas, sob aparente fragilidade, escondem uma vontade forte e muita
determinação; lutam e até criam artimanhas para conseguir o que desejam. Quando a deusa
incorpora em suas ‘Yaôs” usa roupas luxuosas de cor amarela, portando na cabeça
uma coroa dourada com franjas de cristal amarelo que lhe cobrem o rosto (as
“iabás”, orixás femininos, costumam trazer essa franja cobrindo os olhos para
amenizar o poder devastador da sua sedução e a força do seu olhar). Na mão
direita segura o “ abebê”, um tipo de espelho dourado onde se olha enquanto dança,
fazendo movimentos sinuosos. No Brasil os fiéis costumam colocar dinheiro na
saia de Oxum. Por isso, enquanto ela dança ergue um pouco a sobressaia e desse
modo vai aparando o dinheiro. O babalorixá ou ialorixá depois utilizará esse
dinheiro para garantir o que for necessário para manter o axé da deusa ativo e
poderoso.
O seu dia da semana é o sábado. O seu
elemento é a água doce, e o domínio os rios, lagos e lagoas de água doce e
cachoeiras. Oxum rege a maternidade, a fertilidade, a beleza e a prosperidade.
A sua cor é o amarelo. As oferendas de comida são “mulucum” (feijão
fradinho,cebola e camarão), “adun” (farinha de milho misturada com mel de
abelha e azeite doce) e xinxim de galinha. Os animais a ela consagrados são a
cabra, a pata e a galinha d’angola. No sincretismo ela é Nossa Senhora da
Conceição. Sua saudação mântrica é: Aieie wô e Ora ieiê wô!
Oxumaré, o Deus da Riqueza e da Esperança
Tanto na África como no Brasil Oxumaré é o
arco-íris. A serpente multicolorida que une o céu e a Terra. É o orixá da
flexibilidade, da mobilidade, e o senhor das forças que geram transformação e
renovação. Ele simboliza a continuidade da vida, a descendência, a riqueza e a
unidade na diversidade de todas as formas da criação. Na África Oxumaré é o
orixá que zela pelo cordão umbilical dos recém-nascidos. Depois do parto, os
pais enterram o cordão e a placenta sob uma árvore que a partir desse momento
torna-se uma propriedade que estará sob a responsabilidade dessa criança por
toda a vida; a criança deverá cuidar dela com o mesmo carinho que deverá cuidar
de si mesma. Este
orixá nos ajuda a aceitar a alternância natural entre o certo e o errado, o bem
e o mal, a chuva e a calmaria, a riqueza e a pobreza, o sucesso e o fracasso.
Oxumaré é representado também como uma serpente mordendo a própria cauda, como
um “ouroboros”. Oxumaré enrola-se em volta da Terra para que o planeta não se
desagregue e para que toda a criação se mantenha em equilíbrio. Para garantir boas
colheitas ele recolhe a água que a chuva derramou sobre a terra e a leva de
volta aos céus para formar de novo as nuvens e garantir que não haja seca nem
escassez. Oxumaré
é o integrador das diferenças, ele confere a habilidade para evitar atritos e
congregar as pessoas em nome de um mesmo propósito. É interessante ressaltar
que o arco-íris é formado por gotículas multiformes que, unidas, refletem todos
os tons dos espectros da luz; assim, toda a criação se manifesta de diferentes
formas e os seres humanos, embora apresentem particularidades e diferenças entre
si, refletem a luz do mesmo Princípio Divino.
O Mito
Conta uma lenda de Ifá que Oxumaré, quando vivia na
forma humana, era um babalaô muito respeitado por seus dons mágicos, e muitos
reis vinham até ele para consultar os oráculos. Dentre esses reis, Olofin, rei
de Ifé, era o mais assíduo, mas costumava pagar muito pouco pelos serviços de
Oxumaré, que vivia muito pobremente.
Um belo dia a rainha de um reino
vizinho veio pedir-lhe ajuda porque tinha um filho muito doente e ninguém
conseguia diagnosticar o mal que atormentava o garoto. O menino tinha
dificuldades para ficar em pé e tinha crises inexplicáveis. Sem motivo
aparente, rolava sobre as cinzas quentes dos fogareiros ou fogueiras, quando as
vias. Oxumaré curou a criança e a rainha, muito grata, recompensou-o
regiamente. Quando
ele voltou para Ifé estava rico; apresentando-se muito bem vestido com tecidos
suntuosos e joias, deixou todos os moradores espantados, e mais do que todos,
Olofin. Ao saber da generosidade da rainha, o rei ficou envergonhado e refletiu
sobre o quanto havia desconsiderado e sido mesquinho e avarento com o babalaô
que tanto o ajudara. Daí, resolveu dobrar a paga que Oxumaré recebeu da rainha. Oxumaré viveu em
abundância, mas nunca deixou de servir aqueles que o procuravam. Olodumare, o
deus supremo, satisfeito com o trabalho prestado por Oxumaré na Terra, mandou
que ele fosse até os seus domínios no infinito, e nunca mais se separou dele.
Desde então, ele se tornou orixá, mora no céu e somente de vez em quando vem à
Terra, e quando o faz é para trazer aos seres humanos alegria, renovação,
esperança, riqueza e harmonia. No Daomé ele é chamado “Dan” (serpente), onde é
ainda mais venerado do que entre os iorubás de Ifé.
Arquétipo
Como Oxumaré é o orixá do movimento, assim como a cobra
que se arrasta sinuosa pelo chão sentindo as pulsações da Terra e a fluidez das
águas dos rios, seus iniciados também têm intimidade com a fluidez, as
transformações e a renovação constante, assim como o desapego e aceitação do
novo e do inesperado. As serpentes trocam de pele quando esta se torna
inadequada, deixando pelo caminho a pele velha que não lhes serve mais. Os
“eleguns” e yawôs de Oxumaré, do mesmo modo aceitam as mudanças com facilidade
e são desapegados. Oxumaré ensina aos fiéis como se desapegar de coisas,
defeitos e pessoas, ensina como abrir mão para poder receber o novo. Seus
protegidos são alegres e vaidosos, mas são desprendidos, leves, ágeis e
elegantes. Costumam ter grandes e belos olhos e um corpo flexível e ágil. Sua
dança é graciosa e consiste de movimentos ondulatórios alternados fazendo a
ligação entre a Terra e o céu, ora apontando para baixo ora para cima. Nas
mãos, este orixá carrega uma cobra de ferro; na vestimenta, um arco-íris: suas
vestes têm todas as cores. É cultuado nos rios e cachoeiras e suas comidas são:
feijão com milho, azeite de oliva e dendê; camarão cozido com cebola. Os
animais consagrados a Oxumaré são o bode e o galo. Seu domínio é o arco-íris,
que prenuncia união entre a sobrevivência e a transcendência. Seu dia é
terça-feira. No sincretismo é São Bartolomeu. Sua saudação é: Arrô Boboi.
Ossain, o Senhor das Folhas
Ossain é o orixá que rege a energia das florestas,
o poder das folhas em geral e especialmente as plantas medicinais e litúrgicas.
É a divindade sem a qual não pode existir nenhuma cerimônia, porque é detentor
de um axé (poder) imprescindível, do qual dependem inclusive os outros deuses.
Esse axé é o poder mágico que está adormecido nas folhas e plantas e as
palavras sagradas (ofó), ditas pelo babalaô ou yalorixá despertam os princípios
ativos intrínsecos a cada uma delas, e quem permite que a energia de cada um
desses princípios seja liberada é Ossain.
As plantas e folhas são colhidas pelos
sacerdotes e sacerdotisas com extremo cuidado e respeito. As plantas devem ser
colhidas na floresta onde elas nascem naturalmente, não servem as
cultivadas em jardins. Ossain vive nas florestas virgens em companhia
de Aroni, uma espécie de duende de uma perna só, que como o nosso lendário saci
pererê, pula e fuma constantemente suas folhas prediletas em um cachimbo feito
de concha de caracol. Quando
os curandeiros e sacerdotes vão colher as folhas curativas e litúrgicas devem
antes banhar-se com ervas purificadoras e evitar relações sexuais no dia
anterior à colheita. As relações sexuais devem ser evitadas porque no seu campo
áurico não pode vibrar nenhuma energia alheia; a conexão ficaria prejudicada.
Durante a colheita não devem falar e quando chegam no lugar onde estão as
folhas, devem deixar uma moeda no chão como oferenda de gratidão. Este orixá é
originário da Nigéria, perto da fronteira com o Daomé. Somente os babalaôs e
yalorixás podem manipular o poder das plantas de Ossain, que somente permite
que as plantas emanem seu axé mediante saudação ritualística conhecida somente
pelos sacerdotes. Entre os iorubás isso demonstra a supremacia dos babalaôs e
yalorixas sobre os curandeiros e os demais membros da comunidade. No Brasil é um orixá
mais cultuado entre os iniciados e pouco conhecido do grande público.
O mito
Uma lenda de Ifá narra que Ossain tem como auxiliar
um pássaro muito poderoso que voando por toda parte lhe traz informações sobre
tudo que se passa no mundo. Ele é representado com esse pássaro descansando em
cima de sua cabeça. As mulheres conhecedoras da magia das folhas são chamadas
“proprietárias do poder do pássaro”.
Ossain recebeu de Olodumare o segredo e
o poder das folhas e era muito zeloso delas, queria esse poder somente para ele
e se recusava terminantemente a repartir com os outros orixás. Um dia,
aborrecido com essa exclusividade, Xangô disse a Iansã, sua mulher, que isso
não era justo e que Ossain deveria compartilhar seu axé com os demais orixás.
Iansã, que não podia ver Xangô insatisfeito resolveu tomar uma providência. A
deusa começou a agitar violentamente suas saias e obedecendo ao comando da
Senhora dos Ventos, um vento começou a soprar violentamente. O segredo da magia
das plantas ficava numa cabaça pendurada num galho de árvore e Ossain cuidava
dela com muito afinco. Mas nada resiste ao vento e a cabaça caiu no chão e se
quebrou. Ossain correu para ver o que tinha acontecido e vendo a cabaça em
pedaços gritou: “Ewé O! Ewé O!” (Oh! Folhas! Oh! Folhas!), mas já era tarde,
pois elas tinham se espalhado e os demais deuses escolheram aquelas que queriam
para si e as levaram. Portanto, graças a Iansã cada orixá tem suas folhas
sagradas. Mesmo assim, despertar o axé contido nelas é prerrogativa de Ossain.
Arquétipo
Os filhos de Ossain são ágeis, descontraídos,
possuem caráter firme e têm domínio sobre suas emoções. São leves e soltos e
possuem mente aberta para inovações. São abertos para o desconhecido e o
inesperado e avessos a julgamentos morais sobre as pessoas. Perseguem seus
objetivos com perseverança, estando atentos para os sinais que a vida
apresenta. Seus adeptos quando incorporados usam roupas verdes e brancas, um
turbante na cabeça e enfeitam o pescoço e braços com colares e braceletes
feitos de contas também verdes e brancas. Trazem nas mãos um pássaro de ferro
em alusão ao seu mensageiro mágico. Sua dança tem coreografia variada feita de
passos rápidos e saltitantes num ritmo sincopado e ligeiro. O seu dia é sábado
e os animais que lhe são consagrados são bodes, galos e pombos. Sua saudação
mântrica é: “Ewê Ô”!
Oxossi, o deus provedor da caça e da agricultura
Oxossi é o orixá provedor, ao mesmo tempo protetor
do caçador e da caça, isto porque ele é o responsável pelo abastecimento e pelo
equilíbrio da natureza. Ele provê também as boas safras na agricultura
protegendo a lavoura contra pragas, porque é guardião e o obtentor de alimentos
de maneira geral. Na África sua maior importância é de ordem material. Ele
garante a sobrevivência, é o orixá que orienta onde encontrar o terreno
propício para se formar uma nova roça, e uma nova aldeia. É Oxossi quem define
metas e objetivos para uma comunidade ser próspera e pacífica. Provê também a
saúde como senhor dos mistérios da cura, porque é conhecedor dos segredos das
raízes e infusões terapêuticas. Odé quer dizer “caçador” em iorubá, e Oxossi Odé
também atua como mantenedor da ordem e administrador das comunidades onde
reina. Sua ação espiritual nos devotos é de eliminar os defeitos e maus hábitos
e despertar as qualidades e talentos naturais.
Interessante notar que o culto a Oxossi
na África de hoje é muito pouco difundido, e no Brasil e em Cuba ele é um orixá
de grande importância. Em Cuba ele é chamado o “oculto” porque na leitura do
“opelê” (rosário de Ifá) ele não se manifesta explicitamente, mas irradia seu
axé como um misterioso observador das ações dos seus filhos. Ele é o orixá
diplomata, flexível e conciliador, por isso enfrenta com facilidade o
inesperado e as situações ambíguas. Ao contrário dos seus irmãos Exu e Ogum,
Oxossi é calmo, ponderado e paciente. Ele simboliza a paciência, a atenção, a
concentração, a determinação, a objetividade e a definição de propósitos. Quando Oxossi se
apresenta e dança no “xirê”, traz numa das mãos o arco e a flexa e na outra, um
espanta-moscas feito de rabo de leão ou cavalo (o erukerê). Essas são suas
insígnias e símbolos reais que lembram aos fiéis que Oxossi foi rei de Keto.
Ele dança com muita agilidade e graça imitando uma caçada, ora erguendo o arco
e a flexa, ora abanando o erukerê.
Este orixá é sincretizado no Brasil
como São Sebastião.
O mito
Conta o mito que Iemanjá tinha muito carinho por
seus filhos Oxossi, Ogum e Exu (como disse anteriormente, em algumas lendas Exu
é filho de Iemanjá). Exu era muito rebelde e desobediente e saiu de casa cedo.
Os outros dois eram mais dóceis e obedientes e viviam com a mãe. Ogum
trabalhava no campo e Oxossi caçava nas florestas e a família vivia em
harmonia, alegria e abundância.
Iemanjá tinha muita preocupação quando Oxossi saía
nas incursões pelas florestas, e consultou Ifá sobre o que fazer. O portavoz de
Olodumare revelou que Oxossi corria perigo e que deveria deixar de caçar nas
florestas, porque poderia encontrar Ossain, o Senhor das Folhas, e ser vítima
de um encantamento que o afastaria da mãe.
Oxossi, com uma personalidade muito
independente, desobedeceu e voltou a caçar como costumava fazer. Certo dia,
Oxossi não voltou para casa. Ele havia encontrado Ossain, que o atraíra com seu
canto mágico e dera-lhe uma beberagem feita de folhas maceradas, provocando
nele amnésia, conforme havia anunciado Ifá. Sem saber mais quem era nem onde
morava, ficou vagando na floresta.
Iemanjá, sofrendo pela ausência do
filho, pede a Ogum que vá à procura de Oxossi. Ogum, que tudo encontra, trouxe
o irmão de volta, mas os dois resolveram dizer à mãe que preferiam viver fora
de casa, ao ar livre. E desde então Oxossi vive junto de Ossain na floresta e
Ogum, vaga pelos caminhos da vida. Iemanjá, de tristeza chorou tanto que suas
lágrimas formaram o rio Ogun (não confundir com o orixá).
Arquétipo
Os filhos de Oxossi apresentam no caráter e no
comportamento as qualidades do seu orixá protetor, e também são pessoas muito
atentas e alertas, flexíveis e dotadas de espírito de serviço. São pessoas
cheias de iniciativa e muito responsáveis, embora livres e leves. Costumam ser
encantadoras, joviais, alegres e criativas, além de serem dotadas de agilidade
mental e física. Os protegidos de Oxossi são refinados e possuem muito apreço
pela beleza, sendo vaidosos e sedutores. Os domínios deste orixá são as matas,
florestas e campos de plantações. Suas cores são azul claro, branco e dourado.
As comidas que lhe são oferecidas são: axoxó, feijão fradinho torrado, inhame e
feijão preto. Os animais a ele consagrados são: bode branco ou bege, porco e
galo. O dia da semana dedicado a Oxossi é a quinta-feira. Sua saudação é: Okê,
Okê Arô.
Xangô, Rei e Orixá
Xangô é um orixá que ocupa um lugar de suma
importância no panteão africano. É respeitado pela força proveniente do
discernimento, do intelecto iluminado. É o orixá que inspira lucidez, as
escolhas adequadas e o senso de justiça. Xangô é também o orixá-símbolo da
autoridade, do gerenciamento, da competência, da coragem e da retidão. Ele é muito venerado
na África ainda nos dias de hoje. Fora da África, o culto a Xangô pode ser encontrado
nas Antilhas, em Cuba e no Brasil.
Na natureza Xangô tem sua expressão nos
relâmpagos, raios e trovões, e o seu axé se concentra nas pedreiras. Quando
encarnado, este orixá foi rei de Oyó. Depois de morto foi divinizado devido à
grandiosidade do seu caráter. É importante ressaltar que dentre os iorubás o
caráter dos homens e mulheres é extremamente valorizado. Xangô é sempre
invocado para arbitrar entre o bem e o mal, o certo e o errado, pois ele
garante a harmonia e a ordem social. Ele é o símbolo da liderança a serviço do
Bem.
O mito
Xangô era filho de um grande rei e o segundo na
sucessão do trono do feudo da família. Desde criança, demonstrava grandes
qualidades de caráter e habilidades com as armas, além de ser muito bonito e
conquistador. Quando adulto, durante uma guerra, o irmão que deveria assumir a
defesa do feudo mostrou-se fraco e relutante nas decisões, e então Xangô
assumiu a liderança. O jovem príncipe, com sua competência, criatividade,
estratégia e coragem, venceu a batalha. O povo que o adorava, depois dessa
vitória exigiu que o rei fizesse de Xangô o seu sucessor. Entronizado rei, ele
empreendeu inúmeras batalhas para defender seu reino que era invejado pela
constante prosperidade e cobiçado por muitos. Expandiu seus domínios, agregando
ao reino muitos outros territórios, e foi assim que se tornou o soberano
absoluto de Oyó. Seu reino estendia-se do Benin ao Dahomé. Para governar com
ele escolheu 12 ministros entre príncipes e lideranças de outros reinos. Na
sala do trono, seis ministros se posicionavam à direita do rei, e seis
posicionavam-se à sua esquerda. Os seis da direita mostravam um lado da questão
a ser resolvida e ou outros seis o outro. Desse modo Xangô ao centro era sempre
o fiel da balança e arbitrava com justiça.
O símbolo de Xangô é o “Oché” (um
machado de duas lâminas). É um símbolo de poder semelhante a um cetro real que
indica a dualidade (a lâmina dupla) e o bastão que as sustêm simboliza a
capacidade de discernir e escolher conscientemente e com visão ampla. Xangô era um homem
muito bonito e sedutor e as mulheres se rendiam aos seus encantos. Casou-se com
as deusas Iansã, Oxum e Obá. O olho de Xangô “Oju Obá” é o olho que tudo vê,
semelhante ao olho de Hórus na mitologia egípcia e ao olho de Shiva na
mitologia hindu.
Arquétipo
Seus filhos e filhas são bonitos, altivos,
criativos, majestosos, seguros de si e elegantes. São refinados e gostam do que
é belo, fino, delicado e exótico. Têm temperamento forte e não gostam de ser
contrariados. Geralmente são alegres, mas podem ser dominadores e
intransigentes. Seus protegidos e yaõs abominam injustiças e defendem sempre os
mais fracos e desvalidos. São líderes natos, têm tino para negócios e costumam
ser bem sucedidos financeiramente. São excelentes oradores e possuem enorme
magnetismo pessoal. Fazem muito sucesso com o sexo oposto e são muito
sedutores, porém, nem sempre são fiéis. Fisicamente têm o porte atlético, o
rosto belo com feições bem marcadas, voz de tom agradável e mãos expressivas.
No Ilê, o local de culto, o axé de Xangô está no assentamento a ele dedicado,
onde os símbolos de seu poder, o Oché (o machado) e o Otá (uma pedra retirada
intacta de uma pedreira) estão expostos. A comida consagrada a Xangô é o amalá
de quiabos. Sua “djina” ou saudação é: Kaô Kabeci Ilê.
Ibeji, os Deuses da Alegria
Os Ibeji são divindades gêmeas. Eles são orixás
crianças, às vezes representados como um menino e uma menina. Estes dois deuses
gêmeos regem a descontração, o entusiasmo, a alegria, a curiosidade, a leveza,
a fluidez, a criatividade e a esperança.
Na natureza tudo o que brota e se
transforma é regido pelos Ibeji. Eles brincam alegres nas nascentes dos rios e
dançam soltos e livres na natureza comandando os elementos, os elementais e o
ciclo das estações do ano. Os Ibeji conferem aos homens e mulheres a capacidade
de se surpreender prazerosamente, de se deslumbrar e de ter interesse constante
por descobrir, aprender e compartilhar.
Para os iorubás casar e ter
descendência é fundamental; a esterilidade tanto masculina quanto feminina é
considerada uma punição, o abandono da pessoa pelas forças do universo. É algo
causador de um grande sofrimento pessoal, além de ser motivo de constrangimento
comunitário. Os Ibeji, para esse povo, são os orixás que garantem a renovação
da vida e simbolizam também a perpetuação da espécie e dos genes dos
ancestrais. Para um povo tribal, isto é, de máxima importância; os iorubás vêm
nos filhos o sentido de ter vivido e a homenagem prestada à sua linhagem. Eles
têm que ser férteis como a Mãe Terra o é, para poder considerarem-se dignos de ser
feliz e cumprir o seu papel na natureza.
Os iorubás se autodefinem como ossos
dos ossos dos seus ancestrais, e por isso ter descendência é fundamental. No
Brasil os Ibeji são sincretizados com os santos católicos Cosme e Damião. No
dia 27 de setembro, dia dedicado pela Igreja Católica a estes santos, os
adeptos do candomblé homenageiam os Ibeji ofertando bolos, doces, bombons,
balas e refrigerantes às crianças em geral. Levam doces e brinquedos
para crianças nas creches, e costumam também deixar oferendas de doces e
brinquedos debaixo de árvores frondosas nos jardins e parques públicos. Nas
casas de culto os adultos se reúnem para comemorar partilhando um prato
africano feito com quiabos, castanhas, amendoim torrado, peixe, camarão fresco
e seco, regado com azeite de dendê, e perfumado com coentro, cominho e pimenta
de cheiro denominado caruru. É muito comemorado na Bahia o Dia dos Ibeji,
quando também em suas casas as famílias formadas por adeptos ou não, servem o
“caruru de dois-dois” para os amigos. Em algumas regiões do país são servidas,
para acompanhar o caruru, postas de peixe com arroz de acaçá (um arroz cozido
no leite de coco). Esta é a comida dedicada aos orixás-criança. Suas cores são
vermelho e verde. Os animais a eles consagrados são os frangos de leite.
Arquétipo
Os protegidos dos Ibeji são inovadores, curiosos,
alegres, e brincalhões, mas são exigentes e facilmente irritáveis e birrentos
quando contrariados. Magoam-se à toa, porém esquecem as mágoas com facilidade
sem guardar rancor. O
dia de Cosme e Damião é a festa das crianças, e é quando a criança interna dos
adeptos pode se expressar livremente. Incorporando o seu Ibeji, o fiel se
comporta e fala como uma criança. Esta é a maneira sagrada que a psicologia
iorubá encontrou para curar mágoas, frustrações e feridas que ainda sangram no
coração da criança interior dos adeptos adoradores dos orixás.
A saudação é Ibeji! Ibeji!
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em todas as culturas as questões humanas mais
profundas deram origem às filosofias e às diferentes mitologias. Os mitos são
facilitadores para o entendimento de quem somos nós, o que estamos fazendo aqui
na Terra e qual é nosso papel na vida, no tempo e no espaço. Os mitos também se
referem à essência de tudo que existe, apontam os valores éticos e espirituais
e o comportamento. Estes deuses encarnam valores estruturais e formatam a
maneira como compreendemos e sentimos as coisas, a nós mesmos, a natureza e os
outros. Eles nos apresentam diferentes níveis de realidade e descrevem não
apenas fatos, mas as possibilidades mágicas latentes em nós e em tudo que
experienciamos, e por isso ampliam a nossa percepção e compreensão do mundo. Os
mitos descrevem a nossa relação com a Realidade Absoluta, e desta com todas as
demais realidades relativas. O Sagrado, sendo a base de tudo, permeia todas as
estâncias do ser humano e se revela como a vestimenta externa da natureza, e a
energia que vibra e pulsa no cosmo e na Terra.
Como em toda mitologia, os orixás são
exteriorizações do Sagrado e do seu poder imanente e transcendente. Como vimos
através dos diversos orixás, a tradição Iorubá apresenta uma mitologia rica e
bela, que não precisa ser temida, mas sim conhecida e respeitada. A teogonia
milenar dos orixás é sofisticada e dotada de valores e de significados
profundos. A
mitologia é integradora. As diferentes mitologias unificam as diferenças
raciais, culturais e religiosas porque se aproximam entre si, e nos reaproximam
das outras culturas e da experiência mística dos demais povos. Para nós
brasileiros, é muito importante conhecer a essência dos mitos e cultos
africanos, assim como os mitos e rituais da tradição indígena, porque eles
constituem o panteão mítico que palpita no inconsciente coletivo do povo
brasileiro. Quando nos afastamos das tradições ligadas à natureza, nos
afastamos do resto da criação e excluímos por preconceito e prepotência o
conhecimento ancestral e preciosas experiências religiosas e místicas. A exclusão
sempre desrespeita e desconsidera porque explicita nosso medo do diferente e da
diversidade no mundo natural e humano.
É preciso lembrar que estamos entrando numa nova
espiral de evolução de consciência, e é chegada a hora de superar erros e
defeitos pelo exercício das qualidades e virtudes. Desaprendemos como unificar
o homem natural, o homem intelectual e o homem espiritual. Não sabemos como
reconhecer o divino em nós e no semelhante, por isso precisamos despir as
armaduras do medo, e seguir a inteligência do coração que traduz as mensagens
da nossa alma. Somos, todos, manifestações da natureza e da vontade do mesmo
Deus. Acolher o diferente permite autodescobertas que nos fazem aprender e
sentir a unidade na diversidade com as variadas expressões culturais e
religiosas. E desse modo abrimos espaços interiores para que o amor divino se
manifeste em nossos pensamentos, sentimentos palavras e ações. Somente assim
podemos viver plenamente o esplendor da nossa humanidade. www.mitologiacomentada.blogspot.com.br.
Abraço. Davi
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