Cristianismo
Ortodoxo. I RELATO DE UM PEREGRINO RUSSO. INTRODUÇÃO. Foi na Biblioteca das
Línguas Orientais, em Paris – França, que descobri este livro, graças a uma
pequena nota de Nícolas Berdiaev (1874-1948). Apesar da pressa por causa do
período de exames, eu não larguei dele até à noite. De fato, mais que muitos
romances, estudos e ensaios, ele revela o mistério do povo russo naquilo que há
de mais secreto: suas crenças e sua fé. Não é de espantar a obscuridade em que
permaneceram os Relatos de um Peregrino quando se pensa em que condições foram
publicados. Apareceram pela primeira vez em Kazan – Rússia, por volta de 1865,
sob uma forma primitiva, com muitos erros. Foi somente em 1884 que se estabeleceu
uma edição correta e acessível. Em pleno movimento socialista e naturalista,
essa edição não poderia ter muita repercussão. Depois em 1920, quando o coração
de certos emigrados russos sentiu a nostalgia da pátria, surgiu a necessidade
de uma nova edição. O livro foi reimpresso por iniciativa do professor
Vycheslavtsev. A tradução em francês foi feita a partir desse texto. Os Relatos
foram publicados sem nome do autor. De acordo com o prefácio da edição de 1884,
o padre Paísius, abade (superior dos monges) do mosteiro de São Migues Arcanjo,
em Kazan, teria copiado o texto de um monge russo de Athos, cujo nome
ignoramos. Há indícios que fazem crer que os relatos foram redigidos por um
religioso depois de suas entrevistas com o peregrino. Esta hipótese, porém, não
afeta o caráter de autenticidade do livro. O peregrino, simples camponês de
trinta e três anos, só está familiarizado com o estilo oral. A redação de suas
aventuras lhe teria custado imensos esforços; expressões convencionais teriam
substituído a linguagem arcaica e simples que faz o encanto de seus relatos.
Por outro lado, um confidente inteligente terá podido reencontrar exatamente o
tom do peregrino e transmitir ao leitor as suas palavras. Muitos místicos só
comunicaram sua experiência espiritual com a ajuda de um cronista, cuja suprema
arte consiste em apagar-se diante dos mistérios que revela. Este personagem
talvez seja o eremita de Athos, ou talvez ainda o padre Ambrósio – mestre de
Ivan Kireevski (1806-1856), amigo de Fiódor Dostoievsk (1821-1881), de Liev
Tolstoi (1928-1910) e Alexei Leontiev (1903-1979) – em cujos manuscritos foram
encontrados três outros relatos de tom mais didático, publicados em 1911. Os
Relatos estariam assim relacionados ao movimento literário russo do século XIX
(1801-1900), naquilo que tem de mais sereno e puro. Em meio ao tumulto dos
escritos poéticos, romanescos, revolucionários, em que se chocam com violência
as tendências radicais do caráter russo, faltava essa nota inocente e
cristalina que é, sem dúvida, a tônica secreta. O peregrino faz o leitor
penetrar no coração da vida russa, pouco depois da guerra da Crimeia (outubro
de 1853 – fevereiro de 1856) e antes da abolição da escravatura, ou seja, entre
1856 e 1861. Por ele passam todos os personagens do romance russo: o príncipe
que procura expiar sua vida dissipada, o chefe do correio, beberrão e
briguento, o escrivão da província, incrédulo e liberal. Os forçados partem, em
penosas etapas, para a Sibéria; os correios imperiais extenuam (debilitar) seus
cavalos na planície imensa; os desertores rondam pelas florestas longínquas:
nobres, camponeses, funcionários, membros das seitas, professores e padres,
toda essa antiga Rússia de estrutura rural ressuscita com seus defeitos – dos
quais a embriaguez não é certamente o menor – e suas qualidades, entre as quais
a mais bela é a caridade, o amor espiritual ao próximo, iluminado pelo amor de
Deus. Ao redor, é a terra russa, planície imensa a perder de vista, florestas
desertas, hospedarias à beira das estradas, igrejas pintadas de novo, com sinos
que cintilam. Entretanto, o camponês não se detém jamais para descrever as
aparências sensíveis. Cristão ortodoxo, ele está à procura da perfeição, sua
única preocupação é o absoluto. Para guia-lo em sua busca, o peregrino tem
apenas dois livros: a Bíblia e uma coletânea de textos patrísticos, a
Filocalia. Este nome é o único meio de se definir a escola à qual ele está
ligado. Russo do século XIX, ele é um hesicasta (palavra cujas raízes
significam: calma – silêncio – contemplação). O hesicasmo remonta aos primeiros
séculos cristãos. Tem suas origens no Monte Sinai e no deserto do Egito. Na
Igreja Oriental, aparece como a corrente mística que se opõe à tradição
puramente ascética, originária de São Basílio (330-379), que dominou por muito
tempo, após a condenação da doutrina de Orígenes de Alexandria (185-254) nos
séculos V e VI. A mística oriental, inspirada em Orígenes e Gregória de Nissa
(335-394), atribui à alma humana, como sua finalidade, a deificação. A natureza
humana é boa, mas deformada pelo pecado. O caminho da salvação consiste em
devolvê-la a sua virtude primitiva, restabelecer no homem – que é a imagem de
Deus – a semelhança divina, obra da graça. Sob a ação da graça, o espírito –
libertado das paixões pela ascese (exercícios praticados para o aperfeiçoamento
espiritual) – se eleva para contemplar as razões das coisas criadas e chega, às
vezes, até a chamada “nuvem luminosa”: a contemplação obscura da Santíssima
Trindade. Tal é a meta à qual se consagram os solitários e os grandes místicos
aos dez primeiros séculos ao cristianismo. Para fixar o espírito nas realidades
invisíveis, alguns deles foram levados a adotar processos técnicos como a
repetição frequente de uma curta oração: o Kyrie Eleison (invocação grega dos cristãos,
usada na liturgia romana. Em português – Senhor, tende piedade de nós). Os
católicos, que estão familiarizados com a recitação do terço, não se admirariam
por isso. A ideia de uma participação do corpo na vida espiritual, que está
ligada ao dogma da ressurreição futura, é em si mesma profundamente ortodoxa.
Foi assim que, pouco a pouco, se desenvolveu, através de controvérsias
acirradas, a doutrina que será qualificada como hesicasmo. A partir do século
XI, essa doutrina tende a corromper-se. Sob a influência indireta de São Simeão
(389-459), o Novo Teólogo, um valor exagerado é atribuído às visões e
revelações sensíveis. Ninguém poderá ser considerado cristão se não tiver
conhecido e experimentado concretamente a graça. Está é uma teologia inquietante,
à qual se opõem as palavras de Joana D’arc aos doutores que lhe perguntavam se
ela estava em estado de graça: “Se não estou, que Deus nele me coloque e, se
nele estou, que Deus nele me conserve”. Joana D’arc (1412-1431), enviada por
Deus para libertar a França, invadida pelos ingleses, ela obteve vitórias
militares e conseguiu que Carlos VII (1403-1461) fosse sagrado Rei. Mais tarde,
traída e abandonada, foi entregue aos inimigos e condenada à morte na fogueira
por um tribunal eclesiástico, sendo canonizada em 1920. Além disso, o cristão
não pode ir sem perigo. A ação de Deus na alma é essencialmente misteriosa,
“transpsicológica”, para retomar a expressão de Anselmo Stolz (1900-1942). A
procura das iluminações, com efeito, leva a desprezar a prática ascética e a
buscar meios considerados mais eficazes para chegar as visões. Trata-se do
perigo do “meio curto” e do quietismo, onde a alma se arrisca a ser fulminada.
Por uma evolução paralela, dá-se uma atenção demasiada aos processos corporais,
à postura do corpo, ao papel do coração na oração. O hesicasta do século XIV,
que espera chagar à salvação “sem esforço e sem dor”, esquece que, na vida
espiritual, tudo é graça e que ninguém pode dizer: Jesus é Senhor, a não ser no
Espírito Santo (I Cor 12,3). É essa doutrina que, apesara das controvérsias do
século XIV, é transmitida à Rússia pelo monge Nil Sorski (1433-1508), uma das
figuras mais puras do monarquismo (relativo a vida no mosteiro ou convento)
russo, aquele que queria proibir aos conventos a posse de bens materiais. Ela
caiu no esquecimento, mas foi restaurada por um outro monge, Paísius
Velitchkosvki, no fim do século XVIII. Os textos hesicastas, que ele reúne e
publica em 1794, vão guiar os solitários e os místicos russos do século XIX.
Comprometido na monótona cadeia de gerações, o peregrino encontra a doutrina do
hesicasmo tal qual a deformaram os longos séculos de história. Mas sua
espiritualidade é pura. Se, por momentos, ele parece acreditar que a prática da
oração basta para leva-lo a conhecer “como o Senhor é bom” (Sl 34,8), seu amor
de Deus é grande demais para não ser de origem sobrenatural. O ascetismo quase
espontâneo da sua vida não deixa também de servir-lhe de guarda. Andando sempre
de um lugar para outro, não tendo sequer uma pedra onde repousar a cabeça, a
oração perpétua é para ele, antes de tudo, um meio para fixar a atenção sobre o
mistério da fé e fazer a alma voltar-se para si mesma. Seu espírito permanece
sempre ativo e sua fé é iluminada por uma busca ardente e sincera. A fé do peregrino
não é uma respeitosa emoção diante de mistérios de poesia, ela se alimenta de
ensinamentos teológicos. Aos que se lhe dirigem, oferece conselhos técnicos e
explicações da doutrina, e não exortações generosas e vagas. Conhecendo o homem
à luz de Deus, ele conhece também seu lugar e seu papel no Universo. A moral do
peregrino não é um conjunto de regras que um dia aprendeu. Não é também apenas
uma higiene interior. Todas as suas ações são orientadas pelo desejo de
perfeição espiritual. O ascetismo é condição de contemplação. Não tem sentido
em si mesmo. Assim a vida espiritual retoma sua unidade. Da fé vêm as obras,
mas, sem as obras não há fé. Vindo o mundo da queda, da ignorância e da
fraqueza, o peregrino caminha para a Nova Jerusalém, na qual entrará por
inteiro, corpo e alma, na consumação dos séculos. Reunindo todas as forças de
seu espírito para contemplar o Ser Absoluto, ele recebe, às vezes, de Cristo, o
novo Adão, alguns dos privilégios do primeiro Adão. Ele chega a ignorar o frio,
a fome, a dor, até a própria natureza lhe parece transfigurada: “Árvores,
ervas, pássaros, Terra, ar, luz, tudo me dizia que tudo existe para o homem,
que tudo testemunha o amor de Deus pelo homem, tudo reza, tudo canta a glória
de Deus”. Esse otimismo que liberta não é um privilégio do Oriente cristão. É a
tendência profunda do cristianismo. Que a criação seja boa e que, depois da
queda, ela deva ser englobada inteiramente na via da salvação, disto Santo
Agostinho (354-430) e, depois dele, os grandes doutores medievais, não duvidam
mais que São Gregório de Nissa (335-394). Se na Idade Média no Ocidente está
mais ligada sobretudo ao mistério do pecado e da Cruz, é porque as maravilhosas
implicações da Encarnação já foram reveladas à consciência cristã pelos Padres
da Igreja. Foram somente as crises e as rupturas do mundo moderno que
obscureceram esse senso “cósmico” da Teologia patrística, sem o qual não se
pode compreender o pensamento dos grandes doutores do Ocidente. É a essas
perspectivas tão amplas que o peregrino pode levar aqueles que o escutam com
sinceridade. Será isso roubar-lhe seu caráter russo? De maneira alguma, ao
contrário. Pois ele é um perfeito tipo de piedade russa. Esta não formou uma
Escola de Pensamento. Uma doutrina própria. Como um ícone de Novgorod – Rússia,
de cores vivas e fortes , que renova os modelos recebidos de Bizâncio (cidade
da Grécia antiga), a piedade russa deu, às doutrinas do Oriente cristão, um tom
original e novo. O senso inato do mistério do homem, a compaixão, a piedade
diante da dor e do pecado, a simplicidade de coração que purifica
espontaneamente as doutrinas da Idade Média bizantina, a imitação direta e a
quase mímica da vida de Cristo e das verdades evangélicas – tais são os traços
fundamentais da piedade russa. Existe assim na Rússia um imenso potencial
religioso, uma poderosa força popular que não chegou a exprimir-se em uma
doutrina própria. Até ao século XIX não existe uma teologia russa: tudo é
traduzido, decalcado (reproduzido) do grego ou, secundariamente, do latim. Com
exceção talvez da Idade Média russa, a fusão, a síntese entre o pensamento
religioso e a corrente da piedade popular só aconteceu em casos individuais, de
que o peregrino é um exemplo. Na Vida da Igreja, essa ausência de unidade
confere à ideia religiosa russa seu caráter trágico, fonte de crises violentas.
Abandonada a si mesma, a Igreja russa logo veio a conhecer a ingerência do
Estado. Por falta de apoio, ela sucumbiu, o cisma (separação, divisão)
despedaçou-a, ela se desfez pouco a pouco. Nas florestas em que se erguera a
meditação solitária de Nil Sorski, acendem-se no século XVII (1601-1700) as
trágicas fogueiras dos (fundada pelo Papa Gregório IX o Tribunal do Santo
Ofício da Inquisição mandou para a fogueira milhares de pessoas que
supostamente foram consideradas herege – praticantes de heresias; doutrinas ou
práticas contrárias ao que era definido pela Igreja Católica – por
imaginariamente praticarem atos considerados bruxaria, heresia, ou simplesmente
por serem adeptos de outra religião que não o catolicismo) dos Velhos Crentes.
A força espiritual se refugia nos eremitérios, junto aos monges; ela se irradia
às vezes para o povo, mas a unidade orgânica está esfacelada. Os gigantescos
esforços dos leigos para criar, no século XIX (1801-1900), uma doutrina
religiosa russa, se apoiam apenas em uma realidade difusa, falta-lhes solidez e
permanecem isolados. De certo a alma russa permanece sobretudo religiosa. Mas à
fé sucede a religiosidade sobre a qual nascem terríveis abcessos (inchaço,
tumor) de fanatismo obscuro, de niilismo total, de ateísmo militante, potência
das trevas! Voltado para o absoluto, por uma misteriosa vocação, o povo russo –
como todos os povos da Europa – falhou à sua missão histórica, a de uma
civilização progressivamente impregnada pela Verdade, em um equilíbrio ativo
entre os abismos do pecado e a infinita graça divina. A visão de uma Rússia que
reconciliaria o Oriente com o Ocidente, por um instante entrevista por Wladimir
Soloviev (1853-1900), parece ter desaparecido para sempre. Mas um bem infinito
pode nascer de um mal radical. É no temor e no tremor que se prepara a
ressurreição. “Chora, chora, povo miserável, canta o Inocente de Mussorgski,
esse irmão do peregrino. Chora, povo faminto, Deus terá pena de ti”. Jean
Gauvain (1945-2007). Genebra – Suíça, na festa da Ressurreição do Senhor em 25 de abril de
1943. Livro Relato de Um Peregrino Russo. Abraço. Davi.
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