segunda-feira, 30 de abril de 2018

O SANTO DE DOIS CORPOS


Autobiografia de Um Iogue – Paramahansa Yogananda (1893-1952). Capítulo 3. O SANTO DE DOIS CORPOS. PAPAI, SE EU PROMETER VOLTAR PARA CASA DE LIVRE e espontânea vontade, poderei fazer uma excursão a Benares? Meu pai raramente punha obstáculos ao meu acentuado amor por viagens. Permitiu-me, ainda menino, visitar muitas cidades e lugares de peregrinação. Em geral, um ou dois amigos me acompanhavam, viajávamos confortavelmente com passes de primeira classe, fornecidos por papai. Sua posição de alto funcionário na ferrovia era bastante satisfatória para os nômades da família. Papai prometeu estudar meu pedido. No dia seguinte, chamou-me e deu-me uma passagem de ida e volta de Bareilly a Benares, algumas notas de rupia e duas cartas. Tenho um negócio a propor a um amigo em Benares, Kedar Nath Babu. Infelizmente perdi seu endereço, mas acredito que você poderá lhe entregar esta carta por intermédio de nosso amigo em comum. Swami Pranabananda. Esse Swami, que é meu condiscípulo, alcançou elevada estatura espiritual. A companhia dele lhe será benéfica; esta segunda carta lhe servirá de apresentação. Piscando um olho, papai acrescentou: Lembre-se, nada de fugir de casa novamente! Parti com o entusiasmo de meus doze anos (embora a idade nunca tenha diminuído meu prazer em ver novas paisagens e rostos desconhecidos). Ao chegar a Benares me dirigi imediatamente à residência do Swami. A porta de entrada estava aberta; subi a um quarto, longo como um corredor, no segundo andar. Um homem robusto, usando apenas uma tanga, estava sentado em posição de lótus, numa plataforma pouco acima do chão. Sua cabeça tinha sido raspada e a face sem rugas, barbeada; um sorriso de beatitude pairava em seus lábios. Para banir meu pensamento de estar sendo um intruso, cumprimentou-me como a um velho amigo. Baba anand (bem-aventurança para o meu querido). Suas boas-vindas foram expressas calorosamente, com voz infantil. Ajoelhei-me e toquei-lhe os pés. O senhor é Swami Pranabananda? Ele moveu a cabeça afirmativamente. Você é o filho de Bhagabati? Suas palavras foram ditas antes que eu tivesse tempo de retirar do bolso a carta de papai. Espantado, estendi-lhe a carta de apresentação, que agora parecia supérflua. Naturalmente localizarei Kedar Nath Babu para você. O santo de novo me surpreendeu por sua clarividência. Passou os olhos pela carta e fez algumas referências afetuosas a meu pai. Sabe, estou desfrutando duas aposentadorias. Uma, por recomendação de seu pai, para quem já trabalhei na ferrovia. Outra, por recomendação de meu Pai Celestial, para quem terminei conscientemente meus deveres terrenos nesta vida. Achei muito obscura esta última frase. Senhor, que tipo de aposentadoria recebe do Pai Celestial? Ele atira dinheiro no seu colo? O Swami riu. Refiro-me a uma aposentadoria de paz insondável, recompensa por muitos anos de meditação profunda. Agora não anseio mais por dinheiro. A satisfação de minhas escassas necessidades materiais está sobejamente garantida. No futuro você entenderá o significado de uma segunda aposentadoria. Terminando a conversa de repente, o santo imobilizou-se, sério. Um ar de esfinge o envolveu. A princípio, seus olhos brilharam como se observassem algo interessante, depois se tornaram opacos. Seu mutismo deixou-me desconcertado; ele ainda não havia dito como eu poderia encontrar o amigo de papai. Um tanto inquieto, circunvaguei o olhar pelo quarto vazio; exceto por nós, estava deserto. Meus olhos errantes pousaram em suas sandálias de madeira, que estavam sob o estrado. Senhorzinho (1), não se preocupe. O homem que gostaria de ver estará aqui em meia hora – O iogue estava lendo meu pensamento, um feito não muito difícil naquele momento!  Novamente ele se interiorizou num silêncio impenetrável. Quando meu relógio indicou a passagem de trinta minutos, o Swami saiu de seu silêncio. Acho que Kedar Nath Babu está se aproximando da porta – disse ele. Ouvi alguém subindo as escadas. Um misto de incompreensão e espanto surgiu em mim; meus pensamentos voavam, confusos. Como é possível que o amigo de meu pai tenha sido chamado aqui sem o auxílio de um mensageiro? Desde que cheguei, o Swami só falou comigo! Sem cerimônia, abandonei o quarto e desci a escada. A meio caminho encontrei um homem magro, de pele clara e de média estatura. Parecia estar com pressa. O senhor é Kedar Nath Babu? A agitação dava colorido à minha voz. Sim. E você não é o filho de Bhagabati que está esperando por mim? Ele sorriu amigavelmente. Senhor, como lhe ocorreu vir aqui? Eu sentia frustração e ressentimento por não poder explicar sua presença. Hoje tudo é misterioso! Há menos de uma hora, eu estava saindo do banho no rio Ganges quando Swami Pranabananda se aproximou. Não tenho a menor ideia de como soube que eu me achava ali àquela hora. Ele me disse: O filho de Bhagabati está à sua espera em meu apartamento. Pode vir comigo? Concordei alegremente. Caminhamos lado a lado, mas o estranho é que o Swami, com suas sandálias de madeira, tomou a dianteira, apesar de eu estar calçando estes sapatos resistentes. Quanto tempo levará para chegar à minha casa? Pranabananda parou de súbito para fazer-me esta pergunta. Cerca de meia hora. Ele me olhou enigmaticamente. Tenho outra coisa para fazer agora, vou deixa-lo para trás. Nós nos encontraremos em minha casa, onde o filho de Bhagabati e eu estaremos à sua espera. Antes que eu pudesse responder, ele passou por mim velozmente e desapareceu entre a multidão. Vim para cá o mais depressa possível. Esta explicação apenas aumentou meu assombro. Perguntei há quanto tempo ele conhecia o Swami. Nós nos encontramos algumas vezes no ano passado, mas não recentemente. Foi com prazer que o revi no ghat de banhos esta manhã. Não posso crer no que ouço! Estarei ficando louco? O senhor encontrou Pranabananda numa visão ou realmente o viu, tocou-lhe a mão e escutou o ruído de seus passos? Não sei onde está querendo chegar! Ele ficou rubro de indignação. Não estou mentindo. Não pode compreender que só por intermédio do Swami eu poderia ter sabido que você me esperava aqui? Pois eu lhe asseguro que esse homem, Swami Pra nabanada, não se afastou de minha vista um só instante desde que entrei aqui há uma hora. Contei-lhe toda a história, repetindo a conversa que tivera com o Swami. Ele arregalou os olhos. Estamos vivendo nesta era materialista ou estamos sonhando? Nunca esperei testemunhar tal milagre em minha vida! Julguei que o Swami era apenas um homem comum e agora descubro que pode materializar um corpo extra e agir com ele. Entramos juntos no quarto do santo. Kedar Nath Babu apontou com o dedo para o calçado sob o estrado. Olhe, são as mesmas sandálias que ele usava no ghat – segredou-me. E vestia apenas uma tanga, exatamente como agora. Quando o visitante se inclinou diante dele, o santo voltou-se para mim com um sorriso divertido. Por que se espanta com tudo isso? A sutil unidade do mundo dos fenômenos não se acha oculta aos verdadeiros iogues. Eu vejo e converso instantaneamente com meus discípulos na distante Calcutá. Eles também podem transcender à vontade qualquer obstáculo de matéria densa. Foi provavelmente para avivar o ardor espiritual em meu jovem peito que o Swami condescendeu em falar-me de seus poderes de rádio e televisão astrais (2). Mas, em vez de entusiasmo, senti apenas terror. Talvez porque eu estivesse destinado a empreender minha busca divina sob a orientação de determinado guru – Sri Yukteswar, a quem ainda não havia encontrado – não me senti disposto a aceitar Pranabananda como meu instrutor. Olhei-o com desconfiança, conjecturando se era ele ou seu segundo corpo o que eu tinha à minha frente. O mestre procurou dissipar minha inquietude lançando-me um olhar de alento espiritual e dizendo algumas palavras inspiradoras sobre seu guru. Lahiri Mahasaya foi o maior iogue que conheci. Ele era a própria Divindade revestida de carne. Se um disciípulo, refleti, pode materializar uma forma carnal extra à vontade, que milagres não estarão ao alcance de seu mestre? Vou lhe dar uma ideia do quanto é inestimável a ajuda de um guru. Eu costumava meditar com outro discípulo durante oito horas, todas as noites. Tínhamos de trabalhar no escritório da ferrovia durante o dia. Eu desejava dedicar todo o meu tempo a Deus, e tinha dificuldade em cumprir meus deveres diurnos. Durante oito anos perseverei, meditando metade da noite. Obtive maravilhosos resultados, tremendas percepções espirituais me iluminaram a mente. Mas sempre um véu delgado persistia entre mim e o Infinito. Mesmo fazendo esforços sobre humanos, a união irrevogável e final me era negada. Certa noite, fiz uma visita a Lahiri Mahasaya e supliquei sua divina intercessão. Continuei a importuná-lo a noite toda. Angélico guru, minha angústia é tanta que não posso mais suportar a vida sem ver o Bem-amado Supremo face a face. Que posso fazer? Você precisa meditar mais profundamente. Estou apelando a Ti, ó Deus meu Mestre! Vejo-te materializado à minha frente em corpo físico, abençoa-me para que te possa perceber em teu aspecto infinito! Lahiri Maharasaya estendeu a mão num gesto afável: Agora você pode ir e meditar. Intercedi por você junto a Brahma (3). Em estado de elevação incomensurável, voltei para casa. Ao meditar, naquela mesma noite, alcancei o ardente Ideal de minha vida. Agora desfruto incessantemente da aposentadoria espiritual. Desde aquele dia o Criador Beatífico nunca mais ficou oculto de meus olhos por trás do véu da ilusão. A face de Pranabananda irradiava luz divina. A paz de um outro mundo penetrou em meu coração: todo o medo voara para longe. O santo fez ainda outra confidência: Alguns meses depois voltei a visitar Lahiri Mahasaya e tentei agradecer por me haver concedido a dádiva infinita. Na mesma ocasião mencionei outro problema. Guru divino, não posso mais trabalhar no escritório. Por favor, liberte-me. Braham me mantém constantemente inebriado. Peça sua aposentadoria à Estrada de Ferro. Que razão invocarei, se tenho poucos anos de serviço? Diga o que sente. No dia seguinte fiz o requerimento. O médico procurou saber que fundamento havia para a solicitação prematura. Durante o trabalho experimento uma sensação avassaladora subindo pela espinha dorsal, permeando meu corpo inteiro e me incapacitando para o cumprimento dos deveres (4). Sem mais perguntas, o médico me fez alta recomendação para a aposentadoria, que recebi sem demora. Sei que a vontade divina de Lahiri Mahasaya operou através do médico e dos chefes da ferrovia, seu pai inclusive. Eles obedeceram automaticamente à direção espiritual do grande guru e me deixaram livre para uma vida de ininterrupta comunhão com o Bem-amado. Depois dessa extraordinária revelação, Swami Pranabananda mergulhou num de seus longos silêncios. Quando me despedi, tocando-lhe os pés com reverência, ele me deu sua bênção. Sua vida pertence à senda da renúncia e da yoga. Uma dia ainda o verei juntamente com seu pai. Os anos trouxeram a confirmação destas duas previsões (5). Kedar Nath Babu caminhava a meu lado na escuridão crescente. Entreguei-lhe a carta de meu pai e meu companheiro a leu sob um lampião na rua. Seu pai sugere que eu aceite um emprego no escritório da ferrovia em Calcutá – Índia. Que agradável é a perspectiva de ter pelo menos uma das aposentadorias de que goza Swami Pranabananda! Mas é impossível; não posso sair de Benares. Infelizmente, ainda não tenho dois corpos! REFERÊNCIAS: (1) Alguns santos indianos usavam a expressão Choto Mahasaya ao se dirigirem a mim. Ela significa “senhorzinho” – little sir. (2) A ciência física está, por seus próprios métodos, confirmando a validade de leis descobertas pelos iogues por meio da ciência mental. Por exemplo, na Universidade de Roma – Itália, em 26 de novembro de 1934, foi demonstrado que o homem possui poderes de clarividência. O doutor Giuseppe Calligaris, professor de neuro psicologia, comprimiu certas partes do corpo de um indivíduo, que descreveu minuciosamente pessoas e objetos situados atrás de uma parede. O doutor Calligaris disse aos outros professores que quando certas áreas de pele são estimuladas a pessoas adquire percepção extra sensorial, tornando-se capaz de ver objetos que, de uma maneira, não poderia perceber. Para fazer o indivíduo discernir objetos situados atrás de uma parede, o doutor Calligaris comprimiu um ponto no lado direito do tórax  durante quinze minutos. Afirmou o doutor Calligaris que quando certos pontos do corpo são estimulados as pessoas podem ver objetos a qualquer distância, mesmo no caso de nunca terem visto tais objetos antes. (3). Deus em seu aspecto de Criador, da raiz sânscrita Brih, expandir. Quando o poema BRAHMA, de Ralph Waldo Emerson (1803-1882), foi publicado no Atlântic Mountly em 1857, a maioria dos leitores escandalizou-se. Emerson riu ironicamente: Digam Jeová em lugar de Brahma e não sentirão perplexidade alguma. (4). Em meditação profunda, a primeira experiência do Espírito é percebida no altar da espinha dorsal e depois no cérebro. Uma torrente de bem-aventurança domina o iogue, mas ele aprende a controlar suas manifestações exteriores. Na época de nosso encontro, Pranabananda era, de fato, um mestre plenamente iluminado. Mas os últimos anos de sua vida profissional haviam ocorrido muitos antes, quando ele ainda não se estabelecera irrevogavelmente em nirbikalpa samadi. Nesse perfeito e imutável estado de consciência, o iogue não encontra dificuldade em desempenhar seus deveres mundanos. Depois que se aposentou, Pranabananda escreveu Pranah Gita, profundo comentário sobre o Bhagavad Gita, publicado em híndi e bengali (línguas hindus). O poder de aparecer em mais de um corpo é um siddhi (poder iogue) mencionado nos Yoga Sutras de Patanjali. É o fenômeno da bi locação, registrado na vida de muitos santos através dos séculos. A. P. Schimberg, em The Story of Therese Neumann, descreve  diversas ocasiões em que essa santa cristã apareceu a pessoas distantes que necessitavam de sua ajuda e com elas conversou. Livro Autobiografia de Um Iogue – Parahamsa Yogananda. Abraço. Davi  


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