Autobiografia
de Um Iogue – Paramahansa Yogananda (1893-1952). Capítulo 3. O SANTO DE DOIS
CORPOS. PAPAI, SE EU PROMETER VOLTAR PARA CASA DE LIVRE e espontânea vontade,
poderei fazer uma excursão a Benares? Meu pai raramente punha obstáculos ao meu
acentuado amor por viagens. Permitiu-me, ainda menino, visitar muitas cidades e
lugares de peregrinação. Em geral, um ou dois amigos me acompanhavam,
viajávamos confortavelmente com passes de primeira classe, fornecidos por
papai. Sua posição de alto funcionário na ferrovia era bastante satisfatória
para os nômades da família. Papai prometeu estudar meu pedido. No dia seguinte,
chamou-me e deu-me uma passagem de ida e volta de Bareilly a Benares, algumas
notas de rupia e duas cartas. Tenho um negócio a propor a um amigo em Benares,
Kedar Nath Babu. Infelizmente perdi seu endereço, mas acredito que você poderá
lhe entregar esta carta por intermédio de nosso amigo em comum. Swami
Pranabananda. Esse Swami, que é meu condiscípulo, alcançou elevada estatura
espiritual. A companhia dele lhe será benéfica; esta segunda carta lhe servirá
de apresentação. Piscando um olho, papai acrescentou: Lembre-se, nada de fugir
de casa novamente! Parti com o entusiasmo de meus doze anos (embora a idade
nunca tenha diminuído meu prazer em ver novas paisagens e rostos
desconhecidos). Ao chegar a Benares me dirigi imediatamente à residência do
Swami. A porta de entrada estava aberta; subi a um quarto, longo como um
corredor, no segundo andar. Um homem robusto, usando apenas uma tanga, estava
sentado em posição de lótus, numa plataforma pouco acima do chão. Sua cabeça
tinha sido raspada e a face sem rugas, barbeada; um sorriso de beatitude
pairava em seus lábios. Para banir meu pensamento de estar sendo um intruso,
cumprimentou-me como a um velho amigo. Baba anand (bem-aventurança para o meu
querido). Suas boas-vindas foram expressas calorosamente, com voz infantil.
Ajoelhei-me e toquei-lhe os pés. O senhor é Swami Pranabananda? Ele moveu a
cabeça afirmativamente. Você é o filho de Bhagabati? Suas palavras foram ditas
antes que eu tivesse tempo de retirar do bolso a carta de papai. Espantado,
estendi-lhe a carta de apresentação, que agora parecia supérflua. Naturalmente
localizarei Kedar Nath Babu para você. O santo de novo me surpreendeu por sua
clarividência. Passou os olhos pela carta e fez algumas referências afetuosas a
meu pai. Sabe, estou desfrutando duas aposentadorias. Uma, por recomendação de
seu pai, para quem já trabalhei na ferrovia. Outra, por recomendação de meu Pai
Celestial, para quem terminei conscientemente meus deveres terrenos nesta vida.
Achei muito obscura esta última frase. Senhor, que tipo de aposentadoria recebe
do Pai Celestial? Ele atira dinheiro no seu colo? O Swami riu. Refiro-me a uma
aposentadoria de paz insondável, recompensa por muitos anos de meditação
profunda. Agora não anseio mais por dinheiro. A satisfação de minhas escassas
necessidades materiais está sobejamente garantida. No futuro você entenderá o
significado de uma segunda aposentadoria. Terminando a conversa de repente, o
santo imobilizou-se, sério. Um ar de esfinge o envolveu. A princípio, seus
olhos brilharam como se observassem algo interessante, depois se tornaram
opacos. Seu mutismo deixou-me desconcertado; ele ainda não havia dito como eu
poderia encontrar o amigo de papai. Um tanto inquieto, circunvaguei o olhar
pelo quarto vazio; exceto por nós, estava deserto. Meus olhos errantes pousaram
em suas sandálias de madeira, que estavam sob o estrado. Senhorzinho (1), não
se preocupe. O homem que gostaria de ver estará aqui em meia hora – O iogue
estava lendo meu pensamento, um feito não muito difícil naquele momento! Novamente ele se interiorizou num silêncio
impenetrável. Quando meu relógio indicou a passagem de trinta minutos, o Swami
saiu de seu silêncio. Acho que Kedar Nath Babu está se aproximando da porta –
disse ele. Ouvi alguém subindo as escadas. Um misto de incompreensão e espanto
surgiu em mim; meus pensamentos voavam, confusos. Como é possível que o amigo
de meu pai tenha sido chamado aqui sem o auxílio de um mensageiro? Desde que
cheguei, o Swami só falou comigo! Sem cerimônia, abandonei o quarto e desci a
escada. A meio caminho encontrei um homem magro, de pele clara e de média
estatura. Parecia estar com pressa. O senhor é Kedar Nath Babu? A agitação dava
colorido à minha voz. Sim. E você não é o filho de Bhagabati que está esperando
por mim? Ele sorriu amigavelmente. Senhor, como lhe ocorreu vir aqui? Eu sentia
frustração e ressentimento por não poder explicar sua presença. Hoje tudo é
misterioso! Há menos de uma hora, eu estava saindo do banho no rio Ganges
quando Swami Pranabananda se aproximou. Não tenho a menor ideia de como soube
que eu me achava ali àquela hora. Ele me disse: O filho de Bhagabati está à sua
espera em meu apartamento. Pode vir comigo? Concordei alegremente. Caminhamos
lado a lado, mas o estranho é que o Swami, com suas sandálias de madeira, tomou
a dianteira, apesar de eu estar calçando estes sapatos resistentes. Quanto
tempo levará para chegar à minha casa? Pranabananda parou de súbito para
fazer-me esta pergunta. Cerca de meia hora. Ele me olhou enigmaticamente. Tenho
outra coisa para fazer agora, vou deixa-lo para trás. Nós nos encontraremos em
minha casa, onde o filho de Bhagabati e eu estaremos à sua espera. Antes que eu
pudesse responder, ele passou por mim velozmente e desapareceu entre a
multidão. Vim para cá o mais depressa possível. Esta explicação apenas aumentou
meu assombro. Perguntei há quanto tempo ele conhecia o Swami. Nós nos
encontramos algumas vezes no ano passado, mas não recentemente. Foi com prazer
que o revi no ghat de banhos esta manhã. Não posso crer no que ouço! Estarei
ficando louco? O senhor encontrou Pranabananda numa visão ou realmente o viu,
tocou-lhe a mão e escutou o ruído de seus passos? Não sei onde está querendo
chegar! Ele ficou rubro de indignação. Não estou mentindo. Não pode compreender
que só por intermédio do Swami eu poderia ter sabido que você me esperava aqui?
Pois eu lhe asseguro que esse homem, Swami Pra nabanada, não se afastou de
minha vista um só instante desde que entrei aqui há uma hora. Contei-lhe toda a
história, repetindo a conversa que tivera com o Swami. Ele arregalou os olhos.
Estamos vivendo nesta era materialista ou estamos sonhando? Nunca esperei
testemunhar tal milagre em minha vida! Julguei que o Swami era apenas um homem
comum e agora descubro que pode materializar um corpo extra e agir com ele.
Entramos juntos no quarto do santo. Kedar Nath Babu apontou com o dedo para o
calçado sob o estrado. Olhe, são as mesmas sandálias que ele usava no ghat –
segredou-me. E vestia apenas uma tanga, exatamente como agora. Quando o
visitante se inclinou diante dele, o santo voltou-se para mim com um sorriso
divertido. Por que se espanta com tudo isso? A sutil unidade do mundo dos
fenômenos não se acha oculta aos verdadeiros iogues. Eu vejo e converso
instantaneamente com meus discípulos na distante Calcutá. Eles também podem
transcender à vontade qualquer obstáculo de matéria densa. Foi provavelmente
para avivar o ardor espiritual em meu jovem peito que o Swami condescendeu em
falar-me de seus poderes de rádio e televisão astrais (2). Mas, em vez de
entusiasmo, senti apenas terror. Talvez porque eu estivesse destinado a
empreender minha busca divina sob a orientação de determinado guru – Sri
Yukteswar, a quem ainda não havia encontrado – não me senti disposto a aceitar
Pranabananda como meu instrutor. Olhei-o com desconfiança, conjecturando se era
ele ou seu segundo corpo o que eu tinha à minha frente. O mestre procurou
dissipar minha inquietude lançando-me um olhar de alento espiritual e dizendo
algumas palavras inspiradoras sobre seu guru. Lahiri Mahasaya foi o maior iogue
que conheci. Ele era a própria Divindade revestida de carne. Se um disciípulo,
refleti, pode materializar uma forma carnal extra à vontade, que milagres não
estarão ao alcance de seu mestre? Vou lhe dar uma ideia do quanto é inestimável
a ajuda de um guru. Eu costumava meditar com outro discípulo durante oito
horas, todas as noites. Tínhamos de trabalhar no escritório da ferrovia durante
o dia. Eu desejava dedicar todo o meu tempo a Deus, e tinha dificuldade em
cumprir meus deveres diurnos. Durante oito anos perseverei, meditando metade da
noite. Obtive maravilhosos resultados, tremendas percepções espirituais me
iluminaram a mente. Mas sempre um véu delgado persistia entre mim e o Infinito.
Mesmo fazendo esforços sobre humanos, a união irrevogável e final me era
negada. Certa noite, fiz uma visita a Lahiri Mahasaya e supliquei sua divina
intercessão. Continuei a importuná-lo a noite toda. Angélico guru, minha
angústia é tanta que não posso mais suportar a vida sem ver o Bem-amado Supremo
face a face. Que posso fazer? Você precisa meditar mais profundamente. Estou
apelando a Ti, ó Deus meu Mestre! Vejo-te materializado à minha frente em corpo
físico, abençoa-me para que te possa perceber em teu aspecto infinito! Lahiri
Maharasaya estendeu a mão num gesto afável: Agora você pode ir e meditar.
Intercedi por você junto a Brahma (3). Em estado de elevação incomensurável,
voltei para casa. Ao meditar, naquela mesma noite, alcancei o ardente Ideal de
minha vida. Agora desfruto incessantemente da aposentadoria espiritual. Desde
aquele dia o Criador Beatífico nunca mais ficou oculto de meus olhos por trás
do véu da ilusão. A face de Pranabananda irradiava luz divina. A paz de um outro
mundo penetrou em meu coração: todo o medo voara para longe. O santo fez ainda
outra confidência: Alguns meses depois voltei a visitar Lahiri Mahasaya e
tentei agradecer por me haver concedido a dádiva infinita. Na mesma ocasião
mencionei outro problema. Guru divino, não posso mais trabalhar no escritório.
Por favor, liberte-me. Braham me mantém constantemente inebriado. Peça sua
aposentadoria à Estrada de Ferro. Que razão invocarei, se tenho poucos anos de
serviço? Diga o que sente. No dia seguinte fiz o requerimento. O médico
procurou saber que fundamento havia para a solicitação prematura. Durante o
trabalho experimento uma sensação avassaladora subindo pela espinha dorsal,
permeando meu corpo inteiro e me incapacitando para o cumprimento dos deveres
(4). Sem mais perguntas, o médico me fez alta recomendação para a
aposentadoria, que recebi sem demora. Sei que a vontade divina de Lahiri
Mahasaya operou através do médico e dos chefes da ferrovia, seu pai inclusive.
Eles obedeceram automaticamente à direção espiritual do grande guru e me
deixaram livre para uma vida de ininterrupta comunhão com o Bem-amado. Depois
dessa extraordinária revelação, Swami Pranabananda mergulhou num de seus longos
silêncios. Quando me despedi, tocando-lhe os pés com reverência, ele me deu sua
bênção. Sua vida pertence à senda da renúncia e da yoga. Uma dia ainda o verei
juntamente com seu pai. Os anos trouxeram a confirmação destas duas previsões
(5). Kedar Nath Babu caminhava a meu lado na escuridão crescente. Entreguei-lhe
a carta de meu pai e meu companheiro a leu sob um lampião na rua. Seu pai
sugere que eu aceite um emprego no escritório da ferrovia em Calcutá – Índia.
Que agradável é a perspectiva de ter pelo menos uma das aposentadorias de que
goza Swami Pranabananda! Mas é impossível; não posso sair de Benares.
Infelizmente, ainda não tenho dois corpos! REFERÊNCIAS: (1) Alguns santos
indianos usavam a expressão Choto Mahasaya ao se dirigirem a mim. Ela significa
“senhorzinho” – little sir. (2) A ciência física está, por seus próprios
métodos, confirmando a validade de leis descobertas pelos iogues por meio da
ciência mental. Por exemplo, na Universidade de Roma – Itália, em 26 de
novembro de 1934, foi demonstrado que o homem possui poderes de clarividência.
O doutor Giuseppe Calligaris, professor de neuro psicologia, comprimiu certas
partes do corpo de um indivíduo, que descreveu minuciosamente pessoas e objetos
situados atrás de uma parede. O doutor Calligaris disse aos outros professores
que quando certas áreas de pele são estimuladas a pessoas adquire percepção
extra sensorial, tornando-se capaz de ver objetos que, de uma maneira, não
poderia perceber. Para fazer o indivíduo discernir objetos situados atrás de
uma parede, o doutor Calligaris comprimiu um ponto no lado direito do
tórax durante quinze minutos. Afirmou o
doutor Calligaris que quando certos pontos do corpo são estimulados as pessoas
podem ver objetos a qualquer distância, mesmo no caso de nunca terem visto tais
objetos antes. (3). Deus em seu aspecto de Criador, da raiz sânscrita Brih,
expandir. Quando o poema BRAHMA, de Ralph Waldo Emerson (1803-1882), foi
publicado no Atlântic Mountly em 1857, a maioria dos leitores escandalizou-se.
Emerson riu ironicamente: Digam Jeová em lugar de Brahma e não sentirão perplexidade
alguma. (4). Em meditação profunda, a primeira experiência do Espírito é
percebida no altar da espinha dorsal e depois no cérebro. Uma torrente de
bem-aventurança domina o iogue, mas ele aprende a controlar suas manifestações
exteriores. Na época de nosso encontro, Pranabananda era, de fato, um mestre
plenamente iluminado. Mas os últimos anos de sua vida profissional haviam
ocorrido muitos antes, quando ele ainda não se estabelecera irrevogavelmente em
nirbikalpa samadi. Nesse perfeito e imutável estado de consciência, o iogue não
encontra dificuldade em desempenhar seus deveres mundanos. Depois que se
aposentou, Pranabananda escreveu Pranah Gita, profundo comentário sobre o
Bhagavad Gita, publicado em híndi e bengali (línguas hindus). O poder de aparecer
em mais de um corpo é um siddhi (poder iogue) mencionado nos Yoga Sutras de
Patanjali. É o fenômeno da bi locação, registrado na vida de muitos santos
através dos séculos. A. P. Schimberg, em The Story of Therese Neumann, descreve diversas ocasiões em que essa santa cristã
apareceu a pessoas distantes que necessitavam de sua ajuda e com elas
conversou. Livro Autobiografia de Um Iogue – Parahamsa Yogananda. Abraço.
Davi
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