sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

UMA RESPONSABILIDADE UNIVERSAL DO INDIVÍDUO

Budismo. Texto de Samdhong Rinpoche (1939 -  ). Traduzido por Cassia Mesquita. UMA RESPONSABILIDADE UNIVERSAL DO INDIVÍDUO. Não vou falar sobre alta filosofia ou religião, sobre o misticismo tibetano, que é muito comercial hoje em dia. Compartilharei com vocês alguns pensamentos meus sobre os problemas humanos modernos e cotidianos, particularmente aqueles que impedem a humanidade de evoluir espiritualmente. A maioria das pessoas tornou-se escrava das considerações econômicas e monetárias, não tendo liberdade para pensar na sua própria responsabilidade e poder de ação para atingir níveis mais elevados de evolução. Embora muito do meu vocabulário seja extraído do Budismo, o tema básico desta discussão não se apoia no ensinamento budista, nem em assunto religioso. Trata apenas dos problemas humanos comuns sobre os quais podemos pensar e examinar juntos. De acordo com a tradição budista, o Universo manifesta-se por meio da força cármica coletiva e individual de todos seus seres sencientes. A força cármica favorável gera formas em sintonia com o processo de vida, e o Universo vivo cria um Universo não vivo em sintonia com ele. Essa força cármica positiva tem o poder de converter formas que não estão em sintonia com o Universo em formas sintonizadas com tal harmonia. Durante o surgimento, desenvolvimento e vida madura de um planeta individual, existe coesão entre suas formas de vida e sua própria natureza. É a Idade do Ouro, ou Satya Yuga. Mas, após um período de tempo específico, essa força cármica positiva retrocede gradualmente e uma força cármica negativa e não aglutinadora ganha força, criando conflitos e contradições entre seres vivos e não vivos, e fazendo com que esses seres e o próprio planeta fiquem fora de sintonia com o Universo, levando-o à deterioração e à total aniquilação. Isso é chamado Kali Yuga, ou a Era da Decadência. Hoje este pequeno planeta Terra está sofrendo de falta de coesão, o que acarreta conflitos, e seus seres sencientes – que percebe pelos sentidos ou recebe impressões – estão sujeitos à enorme miséria e medo. Isso está basicamente ligado à força cármica negra coletiva dos seres vivos, não muito fácil de melhorar ou corrigir. No entanto, não podemos esperar pela transformação da força cármica coletiva da sociedade como um todo para resolver os problemas que estamos enfrentando em nossa vida cotidiana. Devemos, portanto, estar mais predispostos a uma abordagem individual, e não coletiva, a fim de regenerar a nós mesmos e ao mundo em geral. O método de “sair fora do fluxo” é a única saída prática e viável para os indivíduos na situação atual. Quando a poderosa corrente de uma inundação leva alguém embora, ele pode não ser capaz de deter ou reverter o fluxo da inundação, mas tem a liberdade, a capacidade e talvez a responsabilidade de nadar na direção da margem e escapar do fluxo. Sendo capaz de fazer isso, o indivíduo pode ter capacidade de ajudar e resgatar muitos outros. Hoje, cada um de nós, individualmente, deve sair da corrente da civilização moderna e cumprir sua responsabilidade universal. Dessa maneira, cada indivíduo pode se sintonizar com o Universo e também colocar o Universo em sintonia consigo mesmo. Presentemente, parece não haver solução para os inúmeros problemas que afligem nosso globo e seus seres sensíveis. Mahatma Gandhi (1869-1948), o santo secular da Índia, disse corretamente que nossos problemas são o resultado direto da civilização moderna e seu materialismo e ganância. Dentre os pensadores contemporâneos e líderes espirituais com quem me deparei, somente ele teve visão e a coragem de denunciar a influência maligna da modernidade como um todo. Uma ideia similar foi expressa nas famosas palavras do chefe indígena norte americano cacique Seattle (1786-1866) ao presidente dos Estados Unidos Franklin Pierce (1804-1869) em 1855. Seu discurso, uma obra clássica da literatura, e o livreto de Mahatma Gandhi, de 1909, Hind Swaraj, são escritos de forma simples, mas profunda, diagnosticando sem rodeios a tragédia humana atual e suas raízes, bem como seus remédios. O mundo de hoje está enfrentando cinco grandes desafios: 1. AUMENTO DESCONTROLADO, da população humana, particularmente nos chamados países do terceiro mundo. 2. A CRESCENTE DISPARIDADE econômica entre ricos e pobres. 3. VIOLÊNCIA E TORTURA, guerras e medo de guerras, muitas formas de terrorismo, uso cada vez maior de armas de destruição em massa e consequências de guerras. 4. DEGRADAÇÃO AMBIENTAL, como o aquecimento global, danos à camada de ozônio e escassez crescente de ar puro e água limpa, necessidades básicas para sustentar sistemas de vida. 5. POR ÚLTIMO, mas não menos importante, intolerância cultural e religiosa. A religião, que deveria ser fonte de salvação e felicidade foi convertida em fonte de conflito e divisão. Todos conhecem esses problemas, pois os enfrentamos todos os dias de nossas vidas. Cada um deles é um desafio ameaçando a paz, a felicidade e o bem-estar dos seres vivos, podendo acabar com a aniquilação total deles e da Terra. Todo desafio possui diversas perspectivas, interligadas e inter-relacionadas. Como mencionado anteriormente, a causa raiz desses problemas pode estar nas forças cármicas negativas coletivas e individuais. Mas as condições imediatas que facilitam essa causa principal a gerar seus efeitos por completo é a chamada civilização moderna, ultramoderna e pós-moderna ou, mais precisamente, a descivilização baseada na ciência e na tecnologia. O desenvolvimento da ciência e da tecnologia modernas proporcionou a um seleto segmento da humanidade dois poderes sem precedentes e profanos: São eles: 1. A EXCESSIVA PRODUÇÃO de commodities muito além das reais necessidades do povo. 2. O MONOPÓLIO SOBRE ESTA produção sob a forma de capital ou do chamado know-how tecnológico. Esses dois poderes preparam o caminho para que poucos acumulassem riquezas e explorassem a natureza e os seres vivos de forma constante e indiscriminada. Alguns indivíduos não iluminados e com sede de poder, independente da ideologia política e dos sistemas sociais, dominam esses poderes. A acumulação de riqueza por esses poucos tornou-se mais fácil, e o processo natural de distribuição igualitária com base na própria capacidade de produzir foi completamente destruído. As pessoas tornaram-se progressivamente dependentes de outros para adquirir diversos produtos, degradando a dignidade da mão-de-obra e a vontade de realizar trabalho físico. A produção industrial em massa exige consumidores e a promoção comercial é sua consequência lógica. Produtores astuciosos consideram conveniente explorar as emoções negativas da humanidade a seu favor – emoções como o anseio por conforto físico, a atração pela miragem do lazer e o encolhimento do trabalho físico, que são diretas manifestações de apego (raga) e desejo (trshna). A base para a eterna multiplicação de apegos e desejos apoia-se na educação e na estrutura social modernas, doutrinando as pessoas na arte da competição desde a infância. Gerando ódio (dvesha) de diversas maneiras. Competir simplesmente significa a vitória do eu sobre os outros, o que nada mais é do que egoísmo e desconsideração pelos outros. Assim, nenhuma competição pode ser livre ou justa. Do ponto de vista budista, a competição é imoral, sendo uma das piores formas de comportamento humano. Para haver justiça, a igualdade deve ser o objetivo principal, pois ninguém compete para perder ou para deixar os outros vencer. No mundo de hoje, as pessoas perderam o poder de discernir sobre suas necessidades reais, ou a capacidade de distinguir entre o que é bom e o que é ruim. O que é supostamente bom para nós tem sido determinado pelos produtores, que nos dizem também quais são nossas necessidades – e isso ainda a nosso custo. Usando a terminologia moderna, isso é uma violação do nosso direito de autodeterminação. Devemos ser livres para determinar nossas próprias necessidades reais, bem como o que consideramos supérfluo. Mas esse direito nos foi tirado. Somos levados a crer que precisamos de doze pares de sapatos e dezesseis ternos para circular na sociedade atual e manter o status social. Se alguém acumula riqueza para consumo supérfluo necessariamente terá de tirar da parte de outros, não sendo menos do que um ladrão comum. É impossível para tal pessoa praticar um meio de vida correto. Se alguém não pode acumular riqueza, nos padrões do mundo moderno, ela não pode levar uma “vida digna”. Tal pessoa é classificada como aqueles que estão abaixo da linha da pobreza, para quem mais assistência, mais fundo de desenvolvimento e mais oportunidades de emprego devem ser encontrados. Por conseguinte, são necessários mais subsídios, mais empréstimos, mais know-how técnico nos termos e condições determinados pelo Banco Mundial, pelo Fundo Monetário Internacional, pela Organização Mundial do Comércio ou pelos governos das chamadas nações desenvolvidas. Assim, as nações do terceiro mundo estariam sempre oprimidas como o peso do subsídio e das dívidas, resultando em uma perda de soberania política e cultural. O sistema econômico moderno não apenas nos priva de nossa sabedoria e discernimento, mas também tira o nosso senso de dignidade e autoestima. Hoje, a maioria culta dos jovens não é capaz de imaginar como ser seu próprio mestre ou ser autossuficiente. Estão todos à procura de emprego, querendo se tornar servidores de outra pessoa, e assalariados à mercê de alguns capitalistas. Toda a geopolítica da era atual e os sistemas socioculturais são governados por um único  fator, isto é, pela economia de mercado. Os outros ideais políticos e sociais tais como a democracia, os direitos humanos, a diversidade cultural e a liberdade de consciência são meras palavras, desprovidas de significado, usadas ornamentalmente ou metaforicamente e, se necessário, como hipocrisia. O colonialismo político do passado chegou ao fim em virtude do despertar de pessoas sujeitas a tal dominação durante os últimos séculos. Hoje, isso foi substituído pela colonização econômica, que é muito mais perigosa. A ocupação política pode ser derrubada em dias. Mas requer diversas décadas ou séculos para se recuperar da dominação econômica, presumindo-se que haja chance de recuperação da liberdade econômica. Como as prioridades econômicas superaram tudo mais hoje em dia, isso faz com que o indivíduo se torne egoísta, violento e desprovido de fundamentos morais e éticos. As influências negativas tornam as pessoas egocêntricas e gananciosas. O estilo de vida moderno destruiu as inclinações espirituais da maioria das pessoas, tornando-as não religiosas. A essência da religião tem sido ignorada, e a religião e suas instituições estão sendo mal utilizadas para aumentar e fortalecer o egoísmo, o ódio, a intolerância e o conflito. As pessoas pensam que espiritualidade, moralidade e ética são obstáculos ao desenvolvimento e sucesso materiais. Muitos dizem abertamente que “a religião é um veneno” em termos de progresso. Uma minúscula minoria pode não concordar totalmente com isso, mas também dizem humildemente: se precisamos sobreviver, a saída é ceder. Na ausência de sabedoria e coragem para se opor ao mal, a questão natural é: “O que podemos fazer?” Esta é uma questão muito importante e lembro-me da expressão do Tathagata – o Budha Sakyamuni: “Somos nosso próprio Mestre; quem mais pode ser o Mestre?” – Atta hi attano natho, ko hi natho paro siya. Similar é o princípio de Mahatma Gandhi sobre o Satyagraha individual, e recomendo às pessoas que, inspiradas por ele, abandonem o estilo de vida materialista moderno, com seu consumismo excessivo e imoral, dando-se conta de sua responsabilidade individual em relação ao bem-estar Universal. O macro Universo é constituído pelos microuniversos individuais, e tudo o que um indivíduo faz tem relevância e efeito sobre o Universo. Portanto, por meio da dissociação individual do mal, um Universo em desarmonia pode se sintonizar, e um planeta fora de sintonia com o Universo pode recuperar sua harmonia com ele. Algumas sugestões práticas surgem no NOBRE CAMINHO ÓCTUPLO DO BUDHA. Este caminho não visa apenas a elevação espiritual, porém também um viver justo, que cria uma sociedade coesa e não violenta, promovendo assim a espiritualidade. O PRIMEIRO PASSO é ter UMA VISÃO CORRETA e uma PERCEPÇÃO CLARA da sociedade materialista e egoísta atual, com todos os seus vícios, assim como uma visão de como se dissociar dela. Uma vez alcançada tal visão, O SEGUNDO PASSO deve ser a FIRME DETERMINAÇÃO. Deve-se iniciar um estilo de VIDA NÃO VIOLENTO, NÃO CONSUMISTA e autocontrolado, aceitando e enfrentando com perseverança as dificuldades e inconveniências, incluindo a dor física, que pode ocorrer no CAMINHO ou ser infligida por forças negativas. O TERCEIRO PASSO seria FALAR SOBRE ISSO SEM MEDO. As duas PRIMEIRAS ETAPAS pertencem ao indivíduo. Compartilhá-la com outros seres vivos significa transmitir a visão e a determinação via um DISCURSO CORRETO. Se não falamos sobre os males da NOSSO SOCIEDADE VIOLENTA, podemos ser considerados parte dela. O QUARTO PASSO  seria CONSOLIDAR E ESTABILIZAR O ESFORÇO. A preguiça e a negligência não devem ser permitidas para desencorajar o esforço de viver com correção, especialmente nos dias de hoje. UMA VIDA CORRETA requer um grande esforço. Do contrário, podemos ser facilmente desviados pelas forças do mal. O QUINTO e mais IMPORTANTE PASSO É UM MEIO DE VIDA CORRETO. É esta a ação básica do “afastamento”  e da verdadeira realização individual da responsabilidade Universal. Hoje em dia, é mais difícil perseguir um MEIO DE VIDA CORRETO e sem manchas. O ensinamento prático de Mahatma Gandhi sobre a “autossuficiência” e os PRINCÍPIOS DO AUTODOMÍNIO, na minha opinião, é a única resposta para o estilo de vida consumista atual. O SEXTO PASSO envolve insistir na ATENÇÃO PLENA RETA. No mundo de hoje, a violência e a desonestidade são a norma. SEM A CORRETA ATENÇÃO PLENA, pode-se cair no poço materialista sem se dar conta. OS PASSOS DE NÚMERO SETE E OITO, ou seja, CONCENTRAÇÃO E AÇÃO CORRETAS, são consistentemente necessários para um modo de vida não violento. Em resumo, se O NOBRE CAMINHO ÓCTUPLO for colocado em prática, podemos nos afastar do sistema doentio atual e levar uma vida exemplar. E talvez, desta maneira, seja possível, como indivíduos, saímos fora e cumprir nossa responsabilidade Universal individual. Podemos colocar em prática as seguintes sugestões a fim de adquirir uma mente espiritual ou religiosa, uma mente transformada; 1. ESTAR CONSCIENTE dos desvios da civilização moderna como um todo e de seu caráter violento direto, indireto e estrutural, bem como de sua natureza exploradora. Isto é VISÃO CORRETA. 2. ESTAR DETERMINADO a permanecer dissociado deste modo de vida avarento e egoísta, apesar dos inconvenientes e das dificuldades. Isto é DETERMINAÇÃO CORRETA. 3. REDUZIR AS NECESSIDADES para um nível mínimo mais básico e evitar qualquer desperdício de recursos. Mahatma Gandhi disse corretamente que a Mãe Terra é capaz de satisfazer as necessidades de todos, mas nunca conseguirá satisfazer a ganância de um único indivíduo. Devemos conhecer as necessidades e anular a ganância. 4. RENUNCIAR ÀS NORMAS MODERNAS DE ABUNDÂNCIA, e aceitar seletivamente aquilo que é apropriado. Aceitação seletiva inclui os meios de comunicação, viagens, computadores e outros males menores, sem os quais não se é capaz de funcionar no mundo moderno. 5. UTILIZAR TECNOLOGIA INOVADORA ADEQUADA e os meios  e métodos de consumo sustentável, do contrário a Terra pode não sobreviver. 6. PROMOVER UMA MENTE GENUINAMENTE ESPIRITUAL capaz de transformar o indivíduo, e assim, seu universo. Este é o objetivo supremo da vida humana, e não envolve necessariamente seguir qualquer tradição religiosa conhecida. Até mesmo um incrédulo, que não segue nenhuma tradição religiosa, pode possuir uma MENTE RELIGIOSA. Nos dias de hoje, até mesmo pessoas que afirmam ser autoridades em tradições religiosas tornaram-se muito mundanas e ilegítimas, manchadas por diversas emoções negativas. A prática de uma tradição religiosa tornou-se ritualizada e institucionalizada, razão pela qual Jiddu Krishnamurti (1895-1986) sempre rejeitou todas as tradições. Ele não rejeitou a essência da tradição, apenas a tradição predominante. É, portanto, necessário compreender o que é uma mente verdadeiramente religiosa e o que é religião verdadeira, livre de todos os dogmas e rituais, tradição e linhagem. Em uma declaração muito curta, Krishnaji resume a totalidade do ensinamento religioso, a qual gostaria de compartilhar com vocês: RELIGIÃO É ALGO QUE INCLUI TUDO, não exclui nada. Uma mente religiosa não tem nacionalidade. Não é provinciana e não pertence a nenhum grupo organizado. Não é o resultado nem de dez nem de dois mil anos de propaganda. Não possui nenhum dogma, nem crença. Trata-se de uma mente que se move de fato a fato, uma mente que compreende a qualidade integral do pensamento – não apenas o pensamento óbvio, superficial, culto. Mas também o pensamento inculto, o pensamento inconsciente interior e as causas. Quando uma mente examina a totalidade de algo, quando ela percebe através dessa investigação o que é falso e o nega por ser falso, então a totalidade daquela negação provoca uma nova qualidade naquela mente, que é religiosa, que é revolucionária. A frase: TRATA-SE DE UMA MENTE QUE SE MOVE DE FATO A FATO é muito importante. Repetimos o lema: “Não há religião superior a Verdade”, mas na vida real estamos aprisionados a uma ou outra religião. O repúdio à falsidade e a realização da verdade, do fato, que provoca uma revolução, uma transformação, é que é, na verdade uma mente religiosa, e devemos cultivar tal mente para o benefício de todos os seres sencientes. Extraído de The Theosophist. Abraço. Davi. 

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