Mitologia.
Texto de Thomas Bulfinch (1796-1867) Capítulo Dois. PROMETEU E PANDORA. A
CRIAÇÃO DO MUNDO É UMA QUESTÃO que, de modo natural, desperta o mais vivo
interesse do homem, seu habitante. Os pagãos da Antiguidade, desconhecendo a
informação sobre o assunto que obtemos nas páginas das Escrituras Sagradas,
tinham a sua própria forma de contar a história, apresentada como segue. Antes
que a Terra, o mar e o céu tivessem sido criados, todas as coisas tinham um
único aspecto, ao qual denominamos Caos – uma massa confusa e disforme, nada
além de peso morto, na qual, entretanto, repousavam as sementes das coisas.
Terra, mar, e ar misturavam-se na mesma substância; de modo que a Terra não era
sólida, o mar não era líquido, e o ar não era transparente. Deus e a Natureza
finalmente se interpuseram, pondo um fim a essa discórdia, separando a Terra do
mar, e o céu de ambos. A parte abrasada, sendo a mais leve, espalhou-se e
constituiu o firmamento. O ar foi próximo em peso e localização. A Terra, sendo
mais pesada, desceu, e a água alojou-se no nível inferior, fazendo-a boiar.
Nesse ponto, algum deus – não se sabe qual – concedeu os seus bons ofícios a
fim de organizar e dispor a Terra. Ele escolheu os lugares em que ficariam os
rios e as baías, elevou as montanhas, cavou os vales, distribuiu as florestas,
as fontes, os campos férteis e as planícies rochosas. Quando o ar clareou, as
estrelas começaram a aparecer, os peixes se apossaram do mar, os pássaros
tomaram o ar, e as bestas de quatro patas dominaram a Terra. Entretanto um
animal mais nobre era desejado, e o homem foi feito. Não se sabe se o criador o
fez de materiais divinos ou se o constitui na Terra, que, havia tão pouco
tempo, estava separada do céu, e ainda se escondiam por ali algumas sementes
celestiais. PROMETEU tomou um pouco dessa Terra, e, modelando-a com água, fez o
homem à imagem dos deuses. Deu a ele uma postura ereta, de tal modo que,
enquanto os outros animais voltavam suas faces para baixo, olhando para a
Terra, o homem ergue o rosto para o céu, e divisa as estrelas. PROMETEU era um
dos titãs, uma raça de gigantes que habitava a Terra antes da criação do homem.
Ele e seu irmão EPIMETEU foram incumbidos de fazer o homem e de dotá-lo, bem
com a todos os outros animais, das faculdades necessárias à sua preservação.
EPIMETEU comprometeu-se a fazê-lo, e PROMETEU encarregou-se de supervisionar a
conclusão do trabalho do irmão. EPIMETEU distribuiu aos diferentes animais os
vários dons de coragem, força, agilidade, sagacidade; asas a um, garras a
outro, uma carapaça protetora ao terceiro, etc. Entretanto, EPIMETEU foi tão
generoso ao distribuir seus recursos que, quando chegou o momento de prover o
homem com faculdades que o fizessem superior a todos os outros animais, nada
mais havia sobrado para legar-lhe. Perplexo, recorreu ao irmão PROMETEU, que,
com o auxílio do Sol, e trouxe o fogo para o homem. Com esse dom o homem
tornou-se muito mais capaz que os outros animais. O dom deu ao homem a
possibilidade de criar armas com as quais pôde subjugar os outros animais,
instrumentos para cultivar a Terra, para aquecer sua morada, para que se
emancipasse em relação às variações climáticas, e, finalmente, para criar a
arte e cunhar moedas, os meios para realizar negócios e o comércio. A mulher
ainda não havia sido feita. A história – muito inverossímil – é que JÚPITER a
fez e a enviou a PROMETEU e a seu irmão, para puni-los pela presunção de roubar
o fogo do céu; e ao homem por ter aceitado o presente. A primeira mulher
chamava-se PANDORA. Ela foi feita no céu, e cada deus contribuiu com algo para
aperfeiçoá-la. VÊNUS deu-lhe a beleza. MERCÚRIO, a persuasão. APOLO, a música,
etc. Assim equipada, foi conduzida à Terra, e apresentada a EPIMETEU, que
alegremente a aceitou, embora fosse avisado por seu irmão para ter cuidado com
JÚPITER e seus presentes. EPIMETEU tinha em sua casa uma caixa, na qual
guardava certos artigos nocivos, aos quais ainda não tinha recorrido enquanto
preparava o homem para a sua nova morada. PANDORA foi tomada por uma impaciente
curiosidade de conhecer o conteúdo dessa caixa e, certo dia, abriu a tampa para
ver o que havia lá. Imediatamente, escaparam dali miríades de pragas sobre os
homens – tais como a gota, o reumatismo e a cólica para o seu corpo, e a
inveja, o despeito e a vingança para o seu espírito – que se espalharam para
longe e por toda parte. PANDORA apressou-se em colocar a tampa de volta sobre a
caixa, mas, infelizmente, o conteúdo inteiro já havia escapado, tendo apenas
restado uma única coisa no fundo dela, a ESPERANÇA. Então vemos hoje que,
embora haja tantos males, a ESPERANÇA jamais nos abandona; e, enquanto a
tivermos, nenhuma soma de outras enfermidades pode nos fazer inteiramente
infelizes. Outra história diz que PANDORA foi enviada em boa-fé, por JÚPITER,
para abençoar o homem; que havia recebido uma caixa, com os seus presentes de
casamento, nos quais todos os deuses haviam inserido suas dádivas. PANDORA
abriu a caixa inadvertidamente e todas as dádivas escaparam, com exceção da
ESPERANÇA. Essa versão parece mais provável que a primeira; pois como poderia a
esperança, que é tão preciosa quanto uma joia, ter sido mantida dentro de uma
caixa cheia de todos os tipos de males, como na primeira hipótese? O mundo,
sendo então povoado, a primeira Era foi de inocência e felicidade, conhecida
como IDADE DE OURO. A verdade e o direito prevaleciam, sem que fossem impostos
por lei, nem havia nenhum magistrado para ameaçar ou punir. A madeira das
florestas ainda não havia sido roubada para se fazer tábuas de construção ou
cascos de embarcações, nem os homens haviam ainda construído fortificações em
torno de suas cidades. Não havia nada parecido com espadas, lanças ou
capacetes. A Terra produzia todas as coisas necessárias ao homem, sem que ele
tivesse de arar ou semear. Uma primavera perpétua vigorava, flores
desabrochavam sem sementes, os rios fluíam com leite e vinho, e mel dourado era
destilado dos carvalhos. Então se sucedeu a IDADE DE PRATA, inferior à IDADE DE
OURO, mas melhor que a de IDADE DE COBRE. JÚPITER encurtou a primavera e
dividiu o ano em estações. Foi a primeira vez que o homem teve de resistir aos
extremos do calor e do frio, e as casas se tornaram necessárias. As cavernas
foram as primeiras moradas, as coberturas foram feitas de folhas das florestas,
e as cabanas foram tecidas de ramos. Surgiu a necessidade de plantar para
colher. O agricultor passou a ser obrigado a arar e a semear a Terra com o
trabalho do boi. Em seguida veio a IDADE DO BRONZE, com uma têmpera mais
agressiva, mais afeita ao uso das armas, embora ainda não fosse inteiramente
má. A mais dura e a pior das IDADES foi a do FERRO. Uma torrente de crimes eclodiu;
a modéstia, a verdade e a honra desapareceram. Em seu lugar vieram a fraude, a
dissimulação, a violência e a ambição sem limites. Então os marinheiros
ergueram suas velas aos ventos, e as árvores foram tiradas das montanhas para
servir de quilhas aos navios, que arranharam a face do oceano. A Terra, que até
agora tinha sido cultivada coletivamente, começou a ser dividida em
propriedades. Os homens, não satisfeitos com aquilo que a superfície produzia,
resolveram rasgar as entranhas do Terra para tirar de lá os minérios e metais.
O ferro nocivo e o ainda mais nocivo ouro foram produzidos. Estouraram as
guerras utilizando-se de ambos como armas; o hóspede já não se sentia seguro na
casa de seu amigo; e os genros e sogros, irmãos e irmãs, maridos e esposas não
podiam mais confiar uns nos outros. Filhos desejavam que seus pais estivessem
mortos, de modo que pudessem receber a herança; o amor familiar caiu prostrado.
A Terra estava molhada pelo sangue dos massacres, e os deuses a abandonaram, um
por um, até restar apenas ASTREIA, que finalmente partiu também. ASTREIA é a
deusa da inocência e da pureza. Após deixar a Terra, ganhou um lugar no céu
entre as estrelas, onde tornou-se a constelação de Virgo – a Virgem. Ao ver
esse estado de coisas, JÚPITER ardeu em fúria. Reuniu os deuses em conselho.
Atendendo ao chamado, eles tomaram a estrada para o palácio no céu. A estrada,
que qualquer um pode enxergar em noite clara, se estende através da face do
céu, e é chamada de VIA LÁCTEA. Às margens da estrada erguem-se palácios de
deuses ilustres; a plebe celestial vive à parte, de ambos os lados da estrada.
JÚPITER dirigiu-se à assembleia, relatando as condições assombrosas das coisas
na Terra, e terminou revelando suas intenções de exterminar todos os seus
habitantes e de criar uma nova raça diferente da primeira. Uma raça que seria
mais digna de vier e mais devota aos deuses. Assim dizendo, tomou um raio nas
mãos e já estava prestes a lança-lo para destruir o mundo pelo fogo, mas
lembrando-se do perigo que tal conflagração poderia representar caso o próprio
céu se incendiasse, mudou os seus planos e resolveu inundar o planeta. O vento
norte que espalha as nuvens foi seguro; o vento sul foi enviado, e logo cobriu
a superfície do céu com um anto de negra escuridão. As nuvens, carregadas em
bloco, ressoaram com grande estrondo; chuvas torrenciais caíram; as plantações
foram arrasadas. O trabalho de um ano do agricultor pereceu em uma hora.
JÚPITER, não satisfeito com suas próprias águas, chamou o seu irmão NETUNO para
ajudá-lo. Este deixou que os rios se derramassem sobre a Terra. Ao mesmo tempo,
a sacudiu com um terremoto, e trouxe para os litorais o refluxo dos oceanos.
Rebanhos, homens e casas foram varridos, e os templos com seus objetos sagrados
foram profanados. E algum edifício permaneceu de pé, foi encoberto pelas águas
e suas torres se encontram ocultas sob as ondas. Agora tudo se tornou mar, mar
sem litoral. Aqui e ali alguns indivíduos sobreviveram sobre o topo das
montanhas, e alguns outros em barcos, puxando remos onde costumavam puxar o
arado. Os peixes agora nadam entre as copas das árvores; a âncora está presa em
um jardim. No lugar em que os graciosos carneirinhos brincavam, as focas
desajeitadas fazem malabarismos. O lobo nada entre as ovelhas, os leões amarelos
e os tigres se debatem na água. A força do javali não mais serve, nem a
ligeireza do cervo. Com as asas exaustas, os pássaros caem dentro da água, sem
encontrar Terra em que possam descansar.
Os seres vivos que a água poupara caem em decorrência da fome. De todas as
montanhas, apenas o Parnaso ultrapassa a altura das ondas; e ali DEUCALIÃO e
sua esposa PIRRA, da raça de PROMETEU, encontraram refúgio – ele, um homem
justo, e ela, uma fiel adoradora dos deuses. JÚPITER, quando viu que ninguém
havia sobrevivido além desse casal e recordando-se da inofensiva vida deles e
de sua conduta piedosa, ordenou aos ventos do norte que levassem as nuvens para
longe e revelassem os céus para a Terra e a Terra para os céus. Igualmente,
NETUNO deu ordens a TRITÃO que soasse a sua concha, provocando o recuo das
águas. As águas obedeceram, e o mar voltou aos seus limites, e os rios
retornaram aos seus leitos. Então DEUCALIÃO assim dirigiu-se a PIRRA: “Oh
esposa, única mulher sobrevivente, unida a mim primeiro pelos laços de
parentesco e do casamento, e agora pela experiência de um perigo comum,
tivéssemos nós o poder de nosso ancestral, PROMETEU, e renovaríamos a raça tal
como ele fez a princípio! Mas, como não podemos, vamos àquele templo consultar
os deuses sobre o que nos resta fazer”.
Eles entraram no templo, deformado que estava, cheio de lodo, e se
aproximaram do altar, no qual não ardia fogo algum. Ali caíram prostrados em
terra e rogaram à deusa que lhes informasse o modo de reaver sua miserável
vida. O ORÁCULO respondeu: “Deixai o templo com a vossa cabeça coberta por um
véu e com as vestes abertas, e lançai para trás de vós os ossos de vossa mãe”.
Eles ouviram essas palavras com assombro. PIRRA quebrou o silêncio: “Não
podemos obedecer; não ousamos profanar os restos de nossos pais”. Eles
procuraram um lugar seguro na floresta e ali refletiram sobre o que lhes
dissera o ORÁCULO. Mais tarde, DEUCALIÃO disse: “ou a minha sagacidade me
engana, ou devemos obedecer a ordem sem receio. A Terra é a grande mãe de todos;
as pedras são seus ossos; são essas que devemos lançar para trás; penso que
esse é o significado do que nos disse o ORÁCULO. Pelo menos não haverá dano em
tenta-lo”. Eles colocaram o véu sobre as faces, abriram as vestes, apanharam
pedras e as jogaram atrás de si. As pedras – maravilhosamente – tornaram-se
macias e assumiram formas, que em diferentes graus, se assemelhavam à silhueta
humana, como obras inacabadas nas mãos de um escultor. A umidade e o lodo, que
estavam próximos, tornaram-se carne. As pedras tornaram-se ossos; os veios
tornaram-se veias, mudando o seu uso e mantendo o nome semelhante. As pedras
lançadas pelo homem deram origem a homens, e aquelas lançadas pela mulher
tornaram-se mulheres. Era uma raça robusta, bem adaptada ao trabalho, tal como
somos nós hoje, fato que denuncia claramente a nossa origem. A comparação de
Eva com PANDORA é óbvia demais para ter escapado a John Milton, ele a inseriu
no livro IV de Paraíso Perdido: “Mais amável que PANDORA, a quem os deuses,
Dotaram com todos os seus dons; e, Oh! Semelhante também, No infortúnio, quando
para o insensato filho, De Jafete, trazido por Hermes, ela fascinou, A
humanidade com sua beleza, ficando assim vingado, O roubo do autêntico fogo de
JOVE. PROMETEU e EPIMETEU eram filhos de JAPETO, que Milton mudou para Jafete.
PROMETEU tem sido um dos temas preferidos dos poetas. Ele é representado como o
amigo da humanidade, aquele que por esta intercedeu quando JÚPITER estava
enfurecido contra os homens, aquele que também ensinou a civilização as artes.
Porém, ao fazê-lo, PROMETEU transgrediu a vontade de JÚPITER, atraindo para si
a ira do governante dos deuses e dos homens. JÚPITER ordenou que PROMETEU fosse
acorrentado a um rochedo do monte Cáucaso, onde um abutre comia seu fígado, que
se regenerava assim que era devorado. Esse estado de tormenta seria suspenso no
instante em que PROMETEU se submetesse voluntariamente aso seu opressor; isso
porque ele tinha a posse de um segredo que envolvia a estabilidade do trono de
JÚPITER, e, se estivesse disposto a revela-lo, poderia ser finalmente
favorecido. Mas PROMETEU desdenhou dessa hipótese, e desde então se tornou o
símbolo da resistência magnânima ao sofrimento imerecido, e da força de vontade
que resiste à opressão. Byron e Percy Bysshe Shelley (1792-1822) trataram desse
tema. Os versos seguintes pertencem a Byron: “Aos olhos imortais de Titã, Os
sofrimentos da mortalidade, Vistos em sua realidade triste, Pelos deuses não
são desprezados; Qual foi a recompensa de tua piedade? Um sofrimento silencioso
e intenso, O rochedo, o abutre e a corrente; Toda a dor que atinge os
orgulhosos; A agonia que eles não exibem, O sufocante sofrimento da desgraça.
Teu divino crime foi ser bom, Foi servir com teus preceitos menos, A uma das
misérias humanas, E fortalecer o homem com sua própria mente. E, confundido
como tu foste pelo Alto. Ainda assim, na tua enérgica paciência, Na resistência
e na repulsão, Que a Terra e o céu não puderam abalar, Uma poderosa lição
herdamos nós”. Byron também emprega a mesma alusão em sua Ode a Napoleão
Bonaparte (1769-1821): “Ou, como o ladrão do fogo do céu, Resistirás sem medo,
E compartilharás com o imortal, O abutre e o rochedo?”. O Livro da Mitologia.
Abraço. Davi.
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