Espiritualidade. Texto de N. Sri Ram (1889-1973). O INTERESSE
HUMANO. JAMAIS HOUVE NA HISTÓRIA do mundo uma época em que organizações de todo
tipo - e para todos os propósitos - tenham participado tanto da vida humana.
Com o desenvolvimento dos meios de comunicação, os contatos se multiplicaram; e
cada atividade estruturada na cooperação de inúmeras pessoas inclui um número
cada vez maior, tanto em sua própria busca quanto dentro da esfera de sua
influência e relações. A extensão da atividade - e a quantidade que ela abrange
- exigem um grau de organização proporcionalmente complexo e dividido. Se é uma
questão de emprestar, ou pedir emprestado, temos atualmente um sistema de
crédito possibilitado pela facilidade de comunicação e transporte que, apesar
da sujeição e interesses nacionais, assumiu um caráter internacional intrincado
e amplo. O cidadão comum, que tem suas próprias necessidades e desejos, vê-se
com pouca chance de levar alguma vantagem com sua cidadania, a não ser que se
junte a outros e funda sua individualidade ou de uma sociedade, grupo ou
partido para propósitos afins com o seu. Se tem de proteger seu estoque e suas
ações ou negociar seu produto, ou ainda obter seu suprimento de necessidades,
ele tem de se adaptar à organização apropriada, sujeitando-se às suas formas e
regras, e colocando-se à disposição para atuar em suas atividades. Certamente
que essas organizações para propósitos múltiplos são necessárias nas
circunstâncias atuais. Mas, inevitavelmente, isso também significa que o homem
comum, em vez de ser o indivíduo comparativamente livre que era em um ambiente
simples, está agora envolvido em cada uma das organizações construídas à sua
volta para seu benefício. Ele tem de compartilhar de suas atividades e,
naturalmente, tende a assumir um tanto dos aspectos e das parcialidades da
organização. Em discussões sobre algum problema que diga respeito a seu
bem-estar, o pensamento e o interesse que encontram expressão, geralmente dizem
mais respeito aos objetivos dos partidos e das organizações que tocam o
problema e suas atividades, do que às necessidades dos seres humanos
individuais. O interesse é transferido do indivíduo para os grupos com suas
psicologias opostas e rivais. Na grande confusão de ideias criadas pelas
correntes de opinião em discordância, o INTERESSE DO HOMEM em si, esquecido,
afunda nas profundezas. A Natureza formou um todo a partir de diversos
elementos ao criar a figura do homem físico e psicológico. E, na caixa de
surpresas de seu cérebro, existe uma unidade em meio à complexidade, a qual
torna cada homem consistente consigo mesmo ou, se inconsistente, pelo menos
consciente do fato e sem detrimento de sua individualidade. Este homem
indivisível é representado na arte como uma figura física harmoniosamente
equilibrada, a psicologia equipara-o a uma integridade de mente cuja
individualidade, como uma entidade consciente, é capaz de absorver os efeitos
de milhares de impactos de caráter mais variado. Mas esse homem recua cada vez
mais para o fundo entre os sistemas criados para seu próprio benefício, cada um
dos quais busca subdividi-lo segundo aquilo que dele deseja. "Que peça
maravilhosa é o homem! Como é nobre em raciocínio. Como é infinito em
faculdades. E ao se mover, como ele se expressa e como é admirável. Em ação,
como parece um anjo. Na apreensão, como parece um Deus". Mas será este
homem um democrata ou um comunista, um conservador ou socialista, um hindu,
muçulmano ou judeu, cristão, médico, banqueiro, barbeiro ou atleta? Fazemos
distinção entre o homem e a fera baseada não na transcendência do homem sobre
os desejos bestiais, mas em sua capacidade de viver uma vida na qual seu
intelecto desembaraçado pode suprir os instintos da fera no homem. Mas existe uma
distinção a mais a ser traçada entre o homem e as coisas que ele usa. Quanto a
isso, será exagero dizer que o interesse do homem comum é menor em relação ao
seu próximo e maior em relação às coisas que ele possui ou secretamente cobiça?
Atualmente, o trabalho está reivindicando seu direito como elemento humano, mas
já não haverá uma atitude de considerar os homens apenas como muitas mãos e pés
para a produção das coisas de que gostamos, das coisas desfrutadas por aqueles
que podem pagar por elas e na fabricação redunda em lucro para aqueles que
possuem uma parcela nos processos de produção? Mesmo quando amamos aqueles que
são nossos familiares ou amigos, o interesse que temos neles não está
destituído daquele elemento de posse encontrado em nossa atitude com relação às
coisas. Assim, o interesse possessivo e o interesse por coisas inanimadas - às
vezes evocados por um senso de admiração ou de curiosidade intelectual, mas
cada vez mais e com mais frequência para seu desfrute e senso de segurança -
têm precedência sobre o interesse humanitário e humano. Existem muito mais
coisas sendo feitas atualmente, muito mais coisas das quais estamos cercados no
mundo moderno, do que eram conhecidas no mundo de ontem. A atração que essas
coisas exercem e a distorção que causam no campo psicológico estão refletidas
no desequilíbrio da atual situação humana. No homem comum tem havido uma
acentuada queda de interesse naquelas situações e nos relacionamentos humanos
que, no passado, embora postas num campo muito limitado, proviam a maior parte
do material de sua experiência. Vivemos na era da máquina, do transporte, e
existe uma mentalidade correspondente que atribui menos importância ao viver
individual do que às opiniões produzidas em massa e à habilidade para vender,
que tem a pressão exercida pela propaganda. As comunicações modernas, assim
como a ideia de democracia - que surge do poder inerente em números absolutos -
aumentaram tanto o escopo quanto a tendência de todo político ou homem de
negócios interessado em fazer as pessoas acreditarem no que eles querem que
elas acreditem. Existem aqueles que sentem que é seu dever - ou que é
proveitoso para si - ajustar tudo e todos ao seu modo de pensar e distribuir ao
público sofredor, o vocabulário que irá servir para condicionar seu pensamento.
As ramificações do comércio espalham-se em todas as direções, e parte da luta
pela existência assume a forma de uma competição bruta, que busca adiantar-se
aos outros e ser o primeiro do mercado a comprar ou vender. Em um mundo no qual
a mente comum está sendo submetida à firme pressão da persuasão em tons e vozes
de toda altura e nuance concebíveis, cada apelo a uma forma ou outra de
autogratificação e auto interesse, consideração pelo bem-estar e pela
felicidade dos outros, assume um lugar estritamente subordinado e cada vez mais
insignificante. O INTERESSE HUMANO não é algo que possa ser manufaturado, mas
deve crescer naturalmente no solo daquelas experiências pessoais vivas e nos
relacionamentos pessoa a pessoa, a partir dos quais surgem suas apreensões e
realizações espontâneas. O indivíduo, por mais limitada que seja sua
capacidade, tem de pensar e sentir-se separado da massa, de modo que seu
verdadeiro interesse possa realmente corresponder AO INTERESSE HUMANO. É sobre
esse interesse - quando evidencia uma capacidade de auto busca e preocupação
para com os outros e reflete a pujança das emoções que surgem a partir dos
relacionamentos pessoais íntimos, e do sentimento de dor e humilhação do outro,
pelo menos momentaneamente, como se fossem próprios - que os mestres da
literatura sempre amaram descrever e discorrer longamente. A vida moderna, com
seu ritmo frenético, dá pouco tempo para se penetrar os estados emocional e
mental das outras pessoas, exceto da maneira mais casual e superficial. Quando
aceleramos nossos carros de grande potência, seja a negócio ou por diversão,
com a intenção de transformar cada momento em alguma vantagem imaginada,
sobra-nos pouco tempo para inquirirmos quanto às causas de algum acidente pelo
qual possamos passar, ou para pensar seriamente a respeito de oferecer ajuda.
Também não sentimos a necessidade de nos dar ao trabalho de parar um ato de
crueldade que poderia impor-se à nossa visão. Tudo que precisamos fazer para
enganar nossa consciência (se ela for de algum modo sensível) é passar a
informação para alguma organização que exista para esse fim, ou para o policial
mais próximo que pode ou não ter tempo e inclinação para tomar conhecimento. O
INTERESSE HUMANO desaparece progressivamente à medida que encontramos as razões
convenientes para nos esquivar de nossas responsabilidades. Com o aumento do
conhecimento, suas implicações são cada vez mais numerosas, e existe um aumento
no número de especialistas em cada departamento de estudo e ação. O interesse
de cada um deles está em seu próprio campo limitado, em seu próprio jargão
particular, e ele olha para tudo de seu ponto de vista especial e relativo.
Mesmo quando tenta compreender o homem à luz da moderna psicologia, ele assim o
faz com uma teoria ou técnica na qual certos elementos têm sido exagerados em
detrimento de outros. Quanto mais há de técnica, especialização e análise,
menos há daquela visão total na qual jaz a compreensão humana somente. Essa
visão total só é possível para alguém cujo interesse esteja no ser humano como
ser humano, em estudá-lo como ele é, e que busque compreendê-lo em todos os
seus aspectos. O INTERESSE HUMANO é um elixir precioso do qual uma pequena gota
pode ir longe. É preciso tanto nutrir o relacionamento quanto das às atividades
práticas um fim edificante, sem o qual se pode fracassar. Apesar de todas as
máquinas que foram inventadas e das formas científicas descobertas, O HOMEM NÃO
CONSEGUE SER FELIZ SEM AMAR SEU PRÓXIMO E EVOCAR UM INTERESSE RECÍPROCO. Entre
as inúmeras medidas propostas para a melhoria do homem ainda é tão difícil -
como sempre foi - abordar o problema humano de maneira simplista e sem algum
elemento de auto interesse ou auto serviço. Livro O Interesse Humano. Abraço.
Davi
Nenhum comentário:
Postar um comentário