Bhagavad Gita. Capítulo Dois. II. A VERDADEIRA NATUREZA DO
ESPÍRITO.
33. Se desistires da legítima
luta pela verdade e pelo direito, cometerás um grande crime contra a tua honra,
contra o teu dever e contra o teu povo.
34. Os homens de perto e de
longe falarão de ti com desprezo, classificando de vergonhoso o teu proceder; e
a vergonha e a desonra são piores do que a morte para quem é de nobre
nascimento.
35. Todos os generais pensarão
que foi por medo que fugiste do campo de batalha, e te tratarão como covarde; e
aqueles que até agora te estimam, desprezar-te-ão.
36. Os teus inimigos espalharão
má fama a teu respeito; com burla (engano) e com desdém falarão de ti e de tua
falta de coragem. Poderia acontecer-te coisa pior?
37. Se fores morto em batalha,
o céu dos guerreiros será a tua recompensa; se fores o vencedor, será teu o
domínio sobre a Terra. Tem, pois, coragem, ó filho de Kunti, e decide-te a combater
com ânimo firme!
38. Com a mente tranquila,
aceita como igual o prazer e a dor, o ganho e a perda, a vitória e a derrota.
Cinge-te para a peleja, cumpre o teu dever, e evita assim o pecado.
39. O que te expus, ó Arjuna, é
a doutrina de Sankya, filosofia especulativa da vida e das coisas. Agora,
prepara-te também para ouvir a doutrina de uma Escola, chamada Yoga. Se com a
devida profundeza e concentração, chegares a compreender estas verdades,
libertar-te-ás das cadeias das ações.
40. Nada de teus esforços se
perde neste caminho; já a menor porção desta ciência e prática (1) nos livra de
grande medo e perigo.
(1). Yoga - significa
"União", não só no sentido de doutrina filosófica, como também na
prática - o saber teórico sem a realização prática não tem valor.
41. Neste ramo de ciência , há
um só objeto em que a mente pode concentrar-se com segurança, muito ao
contrário de outros campos de esforço mental, cheios de múltiplos ramos,
numerosos caminhos e divergentes fins.
42. Muitos há que, saciando-se
com as letras (ou com o sentido exterior, superficial) das Sagradas Escrituras
(1) e doutrinas, e não podendo perceber o seu verdadeiro sentido interior,
acham grande deleite em controvérsias técnicas a respeito do texto, em
definições monstruosas e abstrusas interpretações. (1). Aqui evidentemente é
uma alusão as Escrituras hindus: Vedanta, Rig Veda, Sama Veda, Atharva Veda,
Shruti, Mahabharata, Upanishad, Yoga Sutra e outras.
43. Os corações desses homens
estão cheios de desejos e esperanças pessoais; o seu mais alto ideal é um céu,
onde acham todos os objetos de seus prazeres, a satisfação do seu sensualismo,
e não se elevam a altura de onde se percebe a união de todos os seres. Usam
palavras floreadas, inventam várias cerimônias e falam muito dos prêmios que
esperam aqueles que as observam, e dos castigos em que caem os que são de
outras opiniões.
44. Fica, porém, sabendo que
laboram em erro; é lhes desconhecido o uso da Razão concentrada, e estranhas
lhes são as alturas da consciência espiritual.
45. Os Vedas, tratam das três
gunas ou qualidades da Natureza e instruem os pensadores a se elevarem acima
delas. Liberta-te, ó Arjuna, dessas gunas; sê livre dos contrastes das forças
opostas da natureza, que pertencem à vida finita e às coisas sujeitas à mudança.
Procura para teu descanso a consciência do teu Eu Real, a Verdade eterna. Deixa
longe de ti os cuidados mundanos e a avidez de possessões materiais.
Concentra-te em ti mesmo, e não te entregues às ilusões do mundo finito.
46. Como de um tanque, em que
de todos os lados aflui água, pode-se tirar o fluido cristalino para encher-se
com ele muitos vasos de diferentes formas e dimensões, assim as doutrinas dos
livros sagrados fornecem à mente do estudante sério, tudo aquilo de que ele
precisa para chegar ao conhecimento das coisas divinas, conforme o grau e o
caráter de seu desenvolvimento.
47. Seja, pois, o motivo das
tuas ações e dos teus pensamentos sempre o cumprimento do dever, e faze as tuas
obras sem procurares recompensa, sem te preocupares com o teu sucesso ou
insucesso, com o teu ganho ou o teu prejuízo pessoal. Não caias, porém, em
ociosidade e inação, como acontece facilmente aos que perderam a ilusão de
esperar uma recompensa das suas ações.
48. Coloca-te no meio entre
esses dois extremos, ó príncipe, e cumpre, em tranquila resignação, o dever por
ser dever, e não pela expectativa da recompensa. Conserva ânimo igual na
ventura ou desventura: assim é que faz o yogi.
49. Por muito importante que
seja a tua reta ação, o primeiro lugar pertence sempre ao reto pensamento.
Procura, portanto, o teu refúgio na paz e na calma do reto pensar, ó Arjuna:
porque aqueles que baseiam o seu bem-estar só nas ações, com estas
necessariamente perdem a felicidade e a paz, e caem na miséria e no
descontentamento.
50. Quem atingiu a consciência
do yogi é capaz de elevar-se acima dos resultados bons e maus. Esforça-te por
atingir esta consciência, porque ela é a chave que abre o mistério da ação.
51. Os sábios, que renunciam
mentalmente os frutos possíveis de suas retas ações, libertam-se das cadeias
dos renascimentos e se encaminham para a morada eterna.
52. Quando te tiveres elevado
acima da trama das ilusões, não te inquietarás com os cuidados e questões a
respeito das doutrinas, nem com as disputas sobre ritos, cerimoniais e outros
enfeites dispensáveis da vestimenta da ideia espiritual.
53. Livre serás, então, de
todas as opiniões alheias, tanto das que se acham nos livros sagrados, como das
dos teólogos eruditos ou dos que ousam interpretar o que não compreendem; em
lugar disso, fixarás a tua mente na mais séria contemplação do Espírito, e assim
alcançarás a harmonia com o teu Eu real, que é a base de tudo.
54. Diz Arjuna:
"Explica-me, ó Mestre
cujos raios de saber tudo penetram, quais são os sinais distintivos que
caracterizam os homens sábios, aqueles que são firmes e constantes no
conhecimento e fixos na contemplação; como se comportam e como agem? Como se
pode reconhecê-los"?
55. Fala o Verbo Divino:
Quando um homem, ó príncipe,
quebrou os vínculos dos desejos do seu coração e está internamente satisfeito
consigo, atingiu a Consciência Espiritual e firmou-se no conhecimento.
56. A sua mente não é turbada
nem pela adversidade nem pela prosperidade; aceita ambas, sem apegar-se a
nenhuma. Nele não tem parte a ira, nem o medo, nem as paixões; ele merece o
nome de sábio.
57. Com equanimidade suporta as
vicissitudes da vida, tanto as favoráveis como as desfavoráveis; não se entrega
nem à alegria excessiva, nem à tristeza. Nada lhe rouba a liberdade.
58. Quando um homem chegou a
possuir a verdadeira sabedoria espiritual, é semelhante à tartaruga que encolhe
para dentro da sua casa os seus membros: Assim o homem sábio é capaz de desviar
os seus sentidos dos objetos que neles produzem impressão, e abrigá-los das
ilusões do mundo exterior, protegendo-os pela armadura do Espírito.
59. É verdade que o homem que
se abstém dos excessos sensuais, é capaz de negar a satisfação aos sentidos;
tal homem, porém, ainda é inquietado pelos desejos de gratificação. Mas aquele
que achou o seu Eu Real dentro de si é livre até do desejo e de toda tentação
que desaparecem como a sombra ante a luz meridiana.
60. O homem que se abstém, às
vezes sucumbe ainda ao ataque repentino de um desejo tumultuoso; mas quem
conhece que o seu Eu Real é a única realidade, esse é senhor de si mesmo, de
seus desejos e de seus sentidos.
61. Tendo vencido os sentidos,
pode descansar em minha Divindade, contemplando o Ser Real; o irreal, o
ilusório, não existe para ele.
62. Quem anela objetos dos
sentidos, nos quais pensa e os quais contempla, fica atraído e enlaçado por
esses objetos; desta atração e deste enlace provém o desejo, e o desejo gera a
paixão.
63. A paixão é a causa da
perturbação mental e da temeridade; estas trazem a confusão e a perda da
memória (das verdades já reconhecidas); da perda da memória resulta a perda da
razão, e, com isso, perde-se o homem totalmente.
64. Mas quem, senhor de si
mesmo, encontra os objetos dos sentidos, sem a eles anelar e sem deles fugir,
esse alcança a Paz.
65. E na Paz que é superior a
todo intelecto, ele encontra a sua libertação de todas as aflições e
dores da vida. Quando, porém, a sua mente está livre destes elementos de
inquietação, fica aberta ao influxo da sabedoria e da ciência.
66. Não podem chegar à
verdadeira ciência aqueles que não entraram nessa Paz, pois, sem a Paz e sem a
calma não é possível existir sabedoria, nem felicidade.
67. Onde não há Paz,
encontra-se somente a tormenta dos desejos sensuais, que destrói a faculdade do
saber, assim como um feroz vento borrascoso (ventania violenta e pouca duração)
impede o forte navio que caminha pelas ondas do Oceano.
68. Por isso, ó príncipe, só
aquele cujos sentidos são plenamente livres de atração dos objetos sensuais e
protegidos pelo saber do Espírito, tem o verdadeiro conhecimento.
69. Aquilo que parece ser claridade
de dia à massa do povo é, para ele, escuridão e ignorância; e aquilo que é
noite para a multidão, ele reconhece como luz meridiana. Isto quer dizer que
aquilo que à gente do mundo sensorial parece ser real e verdadeiro, para o
sábio é ilusão; e aquilo que a maior parte dos homens julga ser irreal e não
existente, o sábio conhece como o único que é Real e existente.
70. O homem, cujo coração é
como o Oceano, a que afluem todos os rios e que, apesar disso, permanece
constante e não sai dos seus limites - o homem que sente o ímpeto dos desejos,
das paixões e inclinações, mas que, todavia, fica imóvel - esse alcança a Paz
(1). Aquele, porém, que se entrega aos desejos, não conhece a Paz, e é escravo
dos desejos inquietantes.
(1). Tal estado, em que todos
os desejos e todos os pensamentos "dormem", mas em que se sente
a mais elevada consciência da Divindade, chama-se (com o termo sanscrito)
Samadhi.
71. Aquele que se separou dos
efeitos dos desejos, e abandonou os prazeres da carne, tanto em pensamento como
em ação, caminha diretamente para a Paz. Quem deixou atrás de si o orgulho, a
vanglória e o egoísmo, caminha diretamente para a Bem-aventurança.
72. Este é, ó príncipe de Pandu,
o estado da união com o Ser Real, o estado bem-aventurando da Consciência
Espiritual. Quem o atingiu, não se deixa embaraçar nem desviar pela ilusão. E
quem, havendo-o atingido, nele permanece na hora da morte, entra diretamente em
Nirvana (2), em Brahma, (3), no seio do Pai-Eterno.
(2). A palavra Nirvana designa
a desaparição de todas as ilusões; é o domínio completo do espírito sobre a
matéria. (3). Brahma - Deus Criador. Livro Bhagavad Gita - A Mensagem do
Mestre. Abraço. Davi.
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