Budismo.
Texto de Alexander Berzin. I. A ÉTICA SEXUAL BUDISTA – AS PRINCIPAIS QUESTÕES
I. Os textos clássicos sobre ética sexual budista incluem uma ampla variedade
de condutas sexuais inadequadas. Motivados por emoções perturbadoras, como o
desejo obsessivo, desenvolvemos potenciais kármicos que no futuro amadurecem
como infelicidade. Aqui, analisamos se a inadequação de determinadas condutas
sexuais é simplesmente uma questão cultural ou esses comportamentos
inevitavelmente geram problemas. Qual será nossa margem de manobra ao tentarmos
enquadrar a ética sexual budista nos costumes da sociedade ocidental moderna? Os Sistemas Éticos Ocidentais: Legalista e Humanista. O
tópico para esta noite é sobre a perspectiva budista acerca da ética sexual. Em
geral, no budismo, tentamos sempre seguir o caminho do meio e, assim, com
relação à sexualidade, queremos evitar dois extremos. Um extremo é o de sermos
muito austeros e severos e de considerarmos a sexualidade como algo
fundamentalmente sujo e mau. Mas também queremos evitar o outro extremo, que é
a atitude em relação ao sexo em que tudo é OK: “Estamos apenas nos
expressando”. No
budismo, o caminho do meio ensina uma abordagem ética com relação à sexualidade
que evita estes dois extremos. Para segui-lo, no entanto, precisamos de
compreender a perspectiva budista em relação à ética. Como existem muitos
sistemas éticos diferentes, precisamos ter o cuidado de não projetar no budismo
os nossos próprios sistemas éticos. Por exemplo, a ética bíblica ensina um
conjunto de leis dadas por uma autoridade superior, por Deus. O comportamento
ético, então, é uma questão de obediência às leis. Se obedecermos às leis de
Deus somos “boas pessoas” e seremos recompensados. Se desobedecermos, somos
“maus” e seremos punidos. No
Ocidente, o outro principal sistema ético que herdámos é o da Grécia antiga.
Este é muito semelhante ao bíblico, mas em vez das leis serem emanadas de Deus,
eram emanadas de uma legislatura eleita para o governo. Uma vez mais, a ética é
uma questão de obediência. Se obedecermos às leis civis somos “bons cidadãos”;
se desobedecermos, somos “maus cidadãos”, criminosos e somos postos na cadeia. Podemos
ver que estes dois sistemas éticos legalistas envolvem a culpa e fazem com que
a sintamos. Ou seja, ambos são baseados no julgamento. Há certos atos que são
julgados como moralmente “maus” e outros que são julgados como moralmente
“bons”. Se cometermos algo “mau”, somos culpados. Quando transpomos para a sexualidade
este tipo de abordagem ética de julgamento, então verificamos que
frequentemente sentimento de culpa acompanham o nosso comportamento sexual,
mesmo que ninguém nos agarre fazendo algo de “mal”. Isto acontece porque nos
transformamos em juízes e nos julgamos a nós próprios, mesmo que ninguém nos
esteja julgando. Uma
terceira forma da ética ocidental é a moderna ética humanista. Esta é baseada
segundo o princípio de não se fazer mal a ninguém. Podemos fazer seja o que for
desde que não causemos mal. Se prejudicarmos alguém, isso não é ético.
Geralmente, misturamos a ética humanista com a legalista de modo que se
ferirmos alguém nos sentimos mal e muito culpados com isso. A Ética Budista do Não Julgamento. A ética budista é completamente diferente de todas
as três. Não é baseada na obediência à lei. Nem é apenas baseada na tentativa
de evitar ferir os outros, embora naturalmente tentemos, tanto quanto possível,
não prejudicar ninguém. A ética budista é mais profunda do que isso. De acordo
com o budismo, a base para sermos uma pessoa ética reside no evitar de ações
motivadas pelo desejo, raiva ou ingenuidade e em se ter uma consciência
discernente correta, ou seja, a habilidade para se discernir entre as
motivações e as ações construtivas e destrutivas. Aqui, as motivações e os
comportamentos construtivos e destrutivos se referem aos que constroem
tendências e hábitos nos nossos continuums mentais que algum
dia, no futuro, farão com que experienciemos como sua consequência a felicidade
ou o sofrimento. Ninguém
criou regras com relação ao que é construtivo ou destrutivo. Indicam apenas a
maneira natural do universo: algumas ações nos causam sofrimento e outras não.
Por exemplo, se pusermos a nossa mão no fogo, nos queimamos e isso faz doer.
Essa é uma ação destrutiva, não é? Ninguém criou essa regra; simplesmente, é o
modo natural como as coisas funcionam. Assim, se alguém quiser colocar sua mão
no fogo, isso não faz dela uma má pessoa. Talvez faça dela uma pessoa tola ou
alguém que não compreende a causa e o efeito, mas certamente não faz dela uma
pessoa “má”. Assim,
o princípio fundamental da ética budista é o de tentarmos compreender os tipos
de motivação e de comportamento que são destrutivos e os que são construtivos.
Ou seja, precisamos aprender a distinguir entre o que nos vai causar
infelicidade e o que nos vai trazer a felicidade. E depois a decisão é nossa; a
responsabilidade do que iremos experienciar no futuro é nossa. É como, por
exemplo, aprendermos tudo sobre os perigos do tabaco e depois a decisão, de
fumar ou não, é nossa. Se alguém agir destrutivamente e causar mal a si
próprio, será objeto de adequada compaixão. Seria impróprio olharmos para esse
alguém com desprezo, com uma atitude moralista ou com pena. Essa não é a
atitude budista. É triste que não compreendam a realidade. O
budismo tem esta mesma abordagem com a ética sexual. É uma abordagem de não
julgamento. Determinados tipos de comportamento e motivação sexuais são
destrutivos e nos causam infelicidade, enquanto que outros são construtivos e
nos trazem felicidade. E, torno a repetir, é conosco. Se quisermos ter um
montes de problemas devido ao nosso comportamento sexual, vamos em frente e
cedemos aos nossos desejos. Mas, se não quisermos ter problemas, então há
certas coisas que precisamos de evitar. Podemos facilmente compreender a
diferença com este exemplo. Se quisermos praticar sexo desprotegido com uma
prostituta, bem, isso é ingénuo e muito tolo porque corremos provavelmente o
risco de ficarmos infectados com SIDA ou AIDS (Síndrome da Imuno Deficiência
Adquirida). Mas isso não faz de nós uma má pessoa. A escolha é nossa. Repare, é
uma atitude completamente diferente com relação ao sexo. Essa é a chave para
compreendermos a abordagem budista. Distinguindo o Comportamento
Construtivo do Destrutivo. A fim de
examinarmos detalhadamente a ética sexual budista, precisamos de compreender a
diferença entre o que é construtivo e o que é destrutivo de acordo com a
perspectiva budista. Em geral, o budismo faz distinção entre as ações com
confusão e as sem confusão. Essas expressões são geralmente traduzidas como
“ações contaminadas” e “não contaminadas” – contaminadas com a confusão sobre a
nossa própria natureza, a natureza dos outros e a natureza da realidade em
geral. A confusão contaminante conduz ao desejo, à raiva ou simplesmente à
ingenuidade que motiva então as nossas ações. As ações sem confusão requerem a
cognição não conceptual da vacuidade – a compreensão de que as nossas fantasias
projetadas sobre a realidade não se referem a algo real. É muito difícil ter
este tipo de compreensão, mesmo conceitualmente. Assim, para a maioria de nós,
todas as nossas ações envolvem a confusão. Surgem da confusão e são
acompanhadas pela confusão. Estes são os tipos de ações envolvidas com o que
chamamos “karma.” Fazem com que continuemos a experienciar renascimentos
incontrolavelmente recorrentes – samsara – cheios de problemas. As ações
confusas podem ser destrutivas, construtivas ou ainda outras não-especificadas
pelo Bhuda. As ações destrutivas estão sempre misturadas com confusão e são
aquelas que amadurecem na infelicidade e sofrimento. As ações construtivas
misturadas com confusão amadurecem na felicidade, mas na felicidade que não
dura e que nunca satisfaz. As ações não especificadas também podem estar
misturadas com a confusão. Amadurecem nos sentimentos neutros, sem felicidade
nem infelicidade. Já vimos exemplo de uma ação destrutiva, o de se fazer sexo
desprotegido com uma prostituta. Tal comportamento está claramente ligado à
confusão sobre a realidade, ingenuidade e geralmente ânsia de desejo. Como
exemplo de uma ação construtiva misturadas com confusão, considerem o caso de
uma mãe que constantemente tenta mimar seu filho de 24 anos, preparando
refeições agradáveis. Criar seu filho é um ato de amor e uma ação construtiva.
Amadurece em sua experiência de felicidade e bem estar. No entanto, ela também
cozinha para ele porque isso lhe faz sentir útil e prestável. É aqui onde surge
a confusão. O filho de 24 anos talvez não queira ser tratado como uma criança
que quando não vem comer a casa é abordado com “por que você não veio comer em
casa? Eu fiz para você uma refeição tão gostosa. Você não tem consideração
nenhuma.” A preparação da refeição está misturadas com a confusão do
agarramento ao “eu, eu, eu. Eu me quero sentir útil, eu quero ter a sensação
carinhosa. Qualquer felicidade que ela possa sentir como consequência das suas
ações carinhosas será precária e instável. Nunca irá durar muito e nunca será
satisfatória. Além disso, sua motivação autocentrada irá inevitavelmente lhe
trazer frustração, infelicidade e sofrimento. Uma ação não especificada ou
neutra, tal como escovar os dentes, pode estar misturada com a confusão de que
podemos tornar nosso hálito fresco e nos tornarmos atrativos. Mas nós nunca
poderemos tornar fresco esse nosso hálito para sempre, dado que os nossos
dentes depressa se sujam e ficamos com um mau hálito desagradável outra vez. Há
aqui uma confusão sobre a realidade, um certo nível de ingenuidade e um forte
interesse autocentrado sobre a nossa aparência. Embora escovar os dentes
resulte num sentimento nem feliz nem infeliz – estamos apenas fazendo o que
precisamos fazer – estamos no entanto perpetuando nossa situação samsárica.
Precisamos de repetidamente escovar nossos dentes para o resto da nossa vida.
Não entendam mal este ponto. Isto não quer dizer que o melhor que temos a fazer
é deixar de escovar os dentes. Simplesmente significa que as ações neutras e
repetitivas de cuidarmos dos nossos corpos samsáricos, quando ligadas ao agarramento
a um “eu” sólido, perpetua a nossa repetitiva existência samsárica, com todos
os seus problemas. O Amadurecimento do Karma e a Lei da Infalibilidade. Precisamos
compreender com mais clareza aquilo que o budismo quer dizer com a afirmação de
que as ações misturadas com confusão “amadurecem” na infelicidade, na
felicidade samsárica ou num sentimento neutro que não é felicidade nem
infelicidade. Este princípio diz respeito a todo nosso comportamento
quotidiano, incluindo também o nosso comportamento sexual. O budismo fala da
lei da infalibilidade cármica, da certeza de que as ações destrutivas
amadurecem no sofrimento, a menos que purifiquemos as tendências cármicas que
elas acumularam. Ou, no sentido contrário, se estivermos experienciando o sofrimento
agora, esta experiência amadureceu das tendências cármicas acumuladas pelo
nosso próprio comportamento destrutivo no passado. A mesma lei é verdadeira em
relação à nossa felicidade normal e às ações construtivas misturadas com
confusão. Na lei da infalibilidade, é importante compreendermos a palavra
“amadurecer”. “ Amadurecer” em sofrimento não é simplesmente “resultar” em
sofrimento, dado que as nossas ações têm muitos resultados e a maioria deles
são incertos. Por exemplo, quando agimos é incerto se iremos experienciar
felicidade ou infelicidade. Por exemplo, pisar uma barata; podemos pisá-la e
sentirmos um grande prazer em matar o que consideramos uma coisa horrível. Ou,
ao pisá-la, podemos sentir horror e aversão. Quando ajudamos alguém a fazer uma
tarefa difícil, podemos nos sentirmos felizes ou podemos sentir ressentimento
pela trabalheira. O que iremos sentir imediatamente após à nossa ação é também
incerto. Após praticarmos sexo desprotegido com uma prostituta, podemos nos
sentir felizes por termos praticado sexo, ou aterrorizados porque poderemos ser
infectados com SIDA. Depois de termos dado uma oferta em dinheiro a alguém,
podemos ficar felizes ou nos arrependermos de o ter feito e ficarmos infelizes
por causa disso. Também são incertos a curto prazo os resultados das nossas
ações. Se assaltarmos um banco, podemos ser apanhados pela polícia ou podemos
nunca vir a ser apanhados. Se formos honestos no nosso trabalho, podemos ser
promovidos e ser felizes ou, apesar do nosso bom trabalho, podemos ser postos
na rua e ficarmos infelizes. Todos estes tipos de resultados são incertos. A
lei da infalibilidade cármica não se refere a eles. Nem sequer é certo se o
nosso ato irá causar felicidade ou infelicidade à pessoa a quem cometemos o ato
– quer durante o ato, logo após o ato, a curto ou a longo prazo. Podemos mentir
a alguém sobre suas capacidades, dizendo que são mais competentes do que
realmente são. Isto pode fazê-lo feliz, tanto quando estamos falando com ele
como logo a seguir à conversa. A curto ou mesmo a longo prazo pode lhe dar a
autoconfiança para o sucesso. Mas, em vez disso, pode lhe fazer sentir mal
porque sabe que estamos apenas tentando lisonjeá-lo e que o que dissemos não é
verdade. Mesmo se acreditar em nós, pode, como consequência, vir a se esforçar
demasiado e lamentavelmente a falhar no seu trabalho futuro. Por outro lado, se
lhe dissermos a verdade, pode se sentir deprimido e, devido à sua perda de
autoconfiança, vir a falhar em tudo o que tente realizar. Ou pode se sentir
feliz porque fomos honestos com ele e, se aplicando a tarefas menos ambiciosas,
vir a ter muito sucesso na vida e a ser feliz. Deste modo, é totalmente
imprevisível o que irá acontecer em relação a estes tipos de resultados das
nossas ações. É por isso que dizemos que a ética budista não está meramente
baseada em não se fazer mal aos outros, visto que nunca podemos garantir os
efeitos das nossas ações nos outros. Naturalmente, tentamos não prejudicar
ninguém. Mas, a não ser que sejamos Budas, nunca podemos saber quais serão
esses efeitos. Assim, quando falamos no “amadurecimento” das ações destrutivas
em sofrimento, estamos falando sobre um processo complexo através do qual os
nossos modos de agir, falar e pensar acumulam certas tendências e hábitos nos
nossos continuums mentais que irão afetar as nossas
experiências futuras. Por exemplo, se tivermos aventuras extraconjugais,
acumulamos ou reforçamos o hábito do descontentamento para com os nossos
parceiros sexuais e o de andarmos sempre de parceiro em parceiro. Estarmos
insatisfeitos e agitados em relação à nossa vida sexual é uma experiência de
infelicidade, não é? E se nunca estamos satisfeitos com os nossos maridos e
mulheres, se estamos infelizes com esses relacionamentos, também não vamos
ficar satisfeitos com os nossos amantes. Esses relacionamentos também não irão
durar muito e continuaremos a procurar outros. Além disso, os nossos parceiros
também irão ser infiéis. Se nós não somos fiéis porque haveriam eles de ser
fiéis? Assim, há muitas repercussões e muitos problemas que surgem a longo
prazo. Isso é que é certo quando agimos destrutivamente. Motivações para o Comportamento Destrutivo. Vamos agora examinar um pouco mais profundamente o
que é destrutivo – o que irá desenvolver os hábitos negativos que causam os nossos
problemas futuros a longo prazo. O fator principal que determina se uma ação é
destrutiva ou não é o estado mental que a motiva. As ações destrutivas podem
ser motivadas pela ânsia do desejo – por exemplo, pela obsessão com o sexo, que
faz com que alguém vá de aventura sexual a aventura sexual. Também podem ser
motivadas pela raiva ou pela hostilidade, como no exemplo de alguém que viola
uma série de mulheres porque está irritado com elas e as quer ferir. O
comportamento destrutivo pode ser também motivado pela ingenuidade – seja
ingenuidade sobre a causa e efeito ou sobre a realidade, tal como no exemplo
que já mencionámos, de praticar sexo desprotegido com uma prostituta. A
ingenuidade está frequentemente misturada com o desejo obsessivo ou a hostilidade.
As ações destrutivas também são sempre acompanhadas por outras atitudes
fundamentais. Estas são: a ausência de um sentido de auto dignidade ética – não
nos importarmos como o nosso comportamento se reflete em nós – e o desinteresse
em como o nosso comportamento se reflete nos outros, tal como nas nossas
famílias, nos nossos professores espirituais, nos nossos compatriotas e assim
por diante. Podemos compreender isto se pensarmos no exemplo do presidente
americano Bill Clinton (1946- ) e na sua
aventura extraconjugal que tanto escândalo causou; por pouco não lhe custando o
impeachment. Outras emoções perturbadoras, tais como o ciúme, que acompanham
estas motivações destrutivas são similarmente destrutivas, assim como são as
próprias ações motivadas por elas. Assim, em geral, podemos dizer que o samsara
– renascimentos incontrolavelmente recorrentes – também é destrutivo. Motivação Causal e Motivação Contemporânea. A apresentação budista da ética também diferencia
a motivação causal da contemporânea. A motivação causal é aquela que
inicialmente nos leva a agir. A motivação contemporânea ocorre no momento em
que agimos. No exemplo das ações eticamente neutras por natureza – as que o
Buda não especificou como construtivas ou destrutivas – é a motivação contemporânea
que determina se a ação é construtiva ou destrutiva e não a original motivação
causal. No caso das ações que Bhuda especificou como construtivas ou
destrutivas, a motivação contemporânea é a que tem o efeito mais forte no peso
ou na leveza do resultado cármico. Consideremos a prática do sexo com o nosso
parceiro; isto é, em si, um ato eticamente neutro. Podemos estar causalmente
motivados por uma razão construtiva. Podemos querer fazer o nosso parceiro
feliz ou podemos querer ter um filho. Mas quando iniciamos o ato sexual em si,
se a obsessão pelo prazer e o desejo se tornar mais forte e se transformar na
nossa motivação contemporânea, a ação torna-se destrutiva apesar da positiva
motivação causal original. Fazer amor com obsessão pelo sexo acumula um hábito
negativo que, a longo prazo, irá causar infelicidade. A própria motivação
causal pode também ser destrutiva. A obsessão (apego excessivo) pelo sexo pode
nos conduzir à prática sexual e também pode ser a motivação contemporânea. No
entanto, a motivação causal também pode ser neutra. Podemos querer praticar
sexo a fim de adormecermos mais facilmente. Mas quando o iniciamos, ficamos
oprimidos pelo desejo e obsessão pelo sexo. Uma vez mais, o ato sexual se torna
destrutivo. Ânsia Obsessiva do Desejo e Consideração Incorreta. Visto que para a maioria das pessoas a emoção
perturbadora que torna o ato sexual destrutivo é a ânsia obsessiva do desejo,
vamos agora examinar mais profundamente o que significa esse estado mental. A
ânsia obsessiva do desejo é uma emoção perturbadora fixada em algo que não
possuímos; é o forte desejo de se possuir esse algo, baseado na superestima das
boas qualidades do objeto. Isto tanto pode ocorrer quando não possuímos
qualquer quantidade desse objeto ou quando já possuímos alguma quantidade, mas
estamos ávidos por mais. O apego é semelhante. É uma emoção perturbadora fixada
em algo que já possuímos e, com base na superestima das boas qualidades do
objeto, não o queremos largar. Além de engrandecer as boas qualidades de algo
com atitudes do gênero “você é a pessoa mais bonita e mais perfeita do mundo”,
a ânsia do desejo projeta sobre o objeto qualidades que este não possui. Na
terminologia budista, a ânsia do desejo é acompanhada pela “consideração
incorreta.” Um exemplo de consideração incorreta a respeito de um parceiro
sexual é nós considerarmos como limpo algo sujo. A um nível muito básico, é
exemplificado pela atitude “se for o copo do meu amante, ele está limpo.
Beberei dele alegremente. Se for o copo do empregado, está sujo; seria
repugnante colocar meus lábios no seu copo”. Se pensarmos sobre isto, não há
nenhuma diferença entre os dois copos. Ambos são copos de outras pessoas, dos
quais beberam um pouco. Ou, desculpem-me o exemplo mais drástico, podemos achar
que é tão gostoso quando o nosso amante, ao nos beijar, põe sua língua na nossa
boca mas se ele cuspisse nela, que é praticamente o mesmo, acharíamos isso
repugnante. Pôr a sua língua na nossa boca ao nos beijar é tanto um exemplo de
exagerar as qualidades de algo, tornando-o no ato sexy mais gostoso, como de o
considerar incorretamente como limpo, ou pelo menos como algo não sujo. Outro
tipo de consideração incorreta é considerarmos o sofrimento como felicidade.
Por exemplo, se o nosso amado massagear a nossa mão, achamos isso maravilhoso.
Mas, se ele continuar massageando exatamente no mesmo sítio durante cinco
minutos, isso se torna doloroso. Não obstante, podemos continuar a considerá-lo
felicidade e não pedir ao nosso amado para parar. Ou, de certeza que já todos
tivemos essa experiência, nos deitamos abraçando alguém e nosso braço se tornar
dormente sob a pessoa. Isso se torna muito incómodo, mas continuamos lá
deitados na mesma. Ou abraçamos alguém ao tentarmos adormecer ao seu lado, e
depois ficamos completamente incomodados e não conseguimos adormecer, mas não
queremos deixar de a abraçar. Isto é “considerar o sofrimento como felicidade”
- um exemplo de consideração incorreta que acompanha a obsessão pelo contato
físico e o abraço sexual. Desejo Biológico e Desejo Obsessivo. É importante diferenciarmos a ânsia obsessiva do
desejo do desejo biológico. São duas coisas completamente diferentes. É como no
caso da comida. Quando temos fome biológica, satisfazer o nosso desejo de comer
não é destrutivo. Podemos fazê-lo sem exagerar as boas qualidades dos alimentos
ou sem termos deles uma consideração incorreta. Mas, se tivermos um desejo
obsessivo por determinado alimento – tal como, por exemplo, chocolate -, se o
engrandecermos na coisa mais deliciosa do mundo e nos empanturrarmos com ele,
isso seria destrutivo e provocaria muitos problemas: ficaríamos obesos e
poderíamos até ficar doentes por comer demais. É a mesma coisa com o sexo. O
normal desejo biológico pelo sexo, baseado nos hormônios, é
diferente do desejo obsessivo. O budismo não está dizendo que é destrutivo
satisfazer o ímpeto biológico, desde que não se exagere as suas boas
qualidades. Mas, como no caso da comida, faz parte do samsara: é aquilo que vem
com os nossos corpos samsáricos e causará inevitavelmente problemas a
determinado nível. Mesmo se permanecermos celibatários, o ímpeto de praticar
sexo continua. E se não formos celibatários, então, nunca iremos ter sexo que
chegue. Tê-lo apenas uma vez nunca bastará, assim como se comêssemos só uma
vez. Queremos tê-lo repetidamente. Assim, esta é a situação samsárica – uma
situação incontrolavelmente recorrente que nunca satisfaz. É obviamente uma
forma de sofrimento. De fato, se examinarmos os votos tântricos a respeito do
comportamento sexual, o mais importante é não considerarmos o sexo como um
caminho à liberação ou à iluminação. É simplesmente um ato samsárico! Praticar
sexo com a moderna ideia de que se conseguíssemos o orgasmo perfeito iríamos
resolver todos os nossos problemas é um bom exemplo de como violamos os nossos
votos tântricos. Agir dessa maneira revela uma confusão total sobre a realidade
e sobre a causa e efeito comportamentais. Mesmo se não tivermos votos
tântricos, o foco principal para a maioria de nós, praticantes budistas, deverá
ser o de se evitar este engrandecimento do sexo. Não vamos agora sair por aí
violando todas as pessoas de uma cidade que conquistámos pelas armas. Desenvolvimento Histórico Do Que Se Considera Impróprio Comportamento
Sexual. Quando examinamos os pormenores da
enumeração budista dos diferentes tipos de comportamentos sexuais impróprios,
descobrimos que praticar sexo mais de cinco vezes consecutivas é considerado
destrutivo porque ser obsessivo. Isto implica que praticar sexo quatro vezes consecutivas
não é obsessivo. Agora, não está claramente explicitado se esta afirmação se
refere a quatro ou cinco vezes sucessivas durante um encontro sexual ou a
quatro ou cinco dias seguidos. Se for o primeiro caso, como interpretam algumas
pessoas, implica uma ideia muito estranha do que é obsessivo. Do mesmo modo, a
masturbação ou o sexo oral, mesmo que uma só vez, seria destrutivo porque
também é considerado obsessivo. Assim, vemos que a obsessão pelo sexo é uma
questão complexa e que na sua definição podem estar envolvidos critérios
culturais. Para compreendermos esta questão, pode ser útil analisarmos, na
literatura budista, o desenvolvimento histórico a respeito do que é um ato
sexual destrutivo ou impróprio. Tal estudo nos pode orientar quanto à interpretação
da ética sexual budista dentro da nossa sociedade moderna. Muitos budistas
ocidentais gostariam de rever diversos aspectos da ética budista por forma a
enquadrá-los na nossa mentalidade atual. Mas precisamos de ter muito cuidado
com isto. Se o fizermos, precisamos de o fazer com base no conhecimento do
alcance completo dos ensinamentos budistas sobre a ética, de como
historicamente se desenvolveram e de como foram aplicados nas várias sociedades
asiáticas em que o budismo se difundiu. Na literatura budista mais antiga, em
pali e sânscrito, no Sri Lanka (antigo Ceilão) e na Índia, a única coisa a
respeito do comportamento sexual especificada como imprópria é a prática sexual
com um parceiro impróprio. O enfoque principal está em mulheres impróprias.
Esta categoria inclui mulheres casadas ou noivas, ou as que estão sob o
controle de outra pessoa, tal como uma filha solteira controlada pelos pais, ou
ainda monjas comprometidas pelos seus votos. Se um homem praticasse sexo com
qualquer uma destas mulheres, a motivação seria geralmente o desejo obsessivo.
Embora pelos padrões sociais da época e da cultura, a mulher seja tida como uma
pessoa imprópria para a prática sexual, ele no entanto insiste em praticar sexo
com ela porque o seu desejo é muito obsessivo. Os textos não mencionam se o
homem já tem uma parceira, nem quanto aos desejos da mulher imprópria. O Quarto
Concílio Budista ocorreu em Caxemira (região localizada entre dois países Índia
e Paquistão), no final do primeiro século da era moderna. Naquela época, uma
dinastia da Ásia Central governava a região que vai desde o noroeste da Índia
até ao Irã Oriental. Os representantes das regiões budistas correspondentes ao
atual Afeganistão foram ao concílio e relataram que se praticavam, nas suas
terras natais, certos costumes da cultura persa que eles achavam contrárias ao
espírito da ética budista. Eles achavam que, acerca disso, havia necessidade de
ser incluída uma menção explícita nos textos sobre ética budista que estavam
sendo compilados naquela altura. A partir desta altura, vários costumes que
eram socialmente aceites em determinadas culturas não indianas vieram a ser
lentamente adicionados à lista dos tipos destrutivos de comportamento, como por
exemplo, a eutanásia e o incesto. Embora muitas destas ações já devessem ter
ocorrido na Índia, elas nunca eram discutidas abertamente. No entanto, ao ouvir
falar delas em culturas estrangeiras, isso lhes deu a oportunidade de as
mencionar explicitamente nos textos budistas, sem perderem a “face social”. Por
conseguinte, em termos de comportamento sexual impróprio, a já ampla lista de
parceiros impróprios foi expandida para incluir as nossas mães e filhas.
Gradualmente, outras formas de comportamento sexual foram adicionadas como
sendo impróprias. Por exemplo, determinados orifícios do corpo foram listados
como impróprios para o intercurso sexual, tal como a boca e o ânus, mesmo com a
nossa própria esposa. Por trás disto estava indubitavelmente o princípio de que
a prática sexual em orifícios impróprios é motivada pelo desejo obsessivo.
Insatisfeito com o sexo vaginal com sua esposa, a pessoa se tornaria num
explorador e aventureiro sexual, convencido que tinha de experimentar todas as
posições e todos os orifícios a fim de ter mais prazer. Momentos impróprios
para a prática sexual também foram adicionados, tal como durante a gravidez e a
amamentação. As mães dormiam sempre com seus bebês e por isso seria impróprio
separá-las deles para fazer sexo. Além disso, havia também lugares impróprios
para a prática sexual, tal como dentro dos templos, e momentos impróprios, como
durante o dia, altura em que alguém poderia entrar e envergonhar toda a gente.
Mesmo hoje em dia, entre os tibetanos, quase ninguém tranca a porta quando está
no seu quarto, e os tibetanos nunca batem à porta antes de entrar. A
homossexualidade e a masturbação também rapidamente foram adicionadas à lista
de comportamentos sexuais impróprios. Quando os textos budistas foram
traduzidos para o chinês, as concubinas alheias foram adicionadas à lista de
parceiras impróprias. Este é um claro exemplo de como os tradutores e os
mestres modificaram os textos sobre a ética de modo a irem de encontro à nova
sociedade em que o budismo se estava difundindo. A tradicional sociedade
chinesa permitia que os homens tivessem várias esposas e concubinas. Isso não
era considerado impróprio. Só era impróprio a prática sexual com as concubinas
dos outros. No Tibete, a poligamia (homem tem mais de uma esposa ao mesmo
tempo) e a poliandria (mulher tem vários homens ao mesmo tempo) também eram
comuns. Ter-se várias esposas ou maridos nunca foi considerado sexo com
parceiros impróprios. Durante todo este processo, o que está sempre acontecendo
é que mais e mais coisas vão sendo adicionadas à lista daquilo que é impróprio.
Hoje em dia, muitos de nós gostaríamos que certas coisas fossem eliminadas da
lista, mas, em termos históricos, foram sempre adicionadas coisas. No entanto,
com isto, a questão que se coloca é se estas adições foram culturalmente
influenciadas e antigamente os atos mencionados não eram considerados
impróprios, ou se sempre foram considerados impróprios, mas não explicitamente
mencionados. Ou também pode ser o caso em que as adições às listas foram feitas
ad hoc, apenas quando surgiam dificuldades sobre certas questões dentro da
comunidade budista. Afinal, foi assim que Buda
gradualmente expandiu os votos monásticos. www.studybuddism.com.
Abraço. Davi.
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