Xintoísmo. bushidor.com. MITOLOGIA E
INFLUÊNCIA na formação da cultura e o caráter do povo japonês. Parte IV.
[...]. Os avós, pelas suas próprias virtudes durante a apagada existência, e
pelas propiciações que os vivos lhes tributam, no desempenho dos ritos
familiares, alcançam a bem-aventurança; e os seus espíritos agradecidos pagam
em afetuosa proteção os cuidados rituais que se lhes votaram, guiando os vivos
nos seus passos sobre a terra, aplanando as dificuldades, encaminhando os
também para a bem-aventurança esperada. Vive-se, pois, pode dizer-se, para
morrer; e morre-se para viver (MORAES, 1924, p. 82-83). À família imperial
cabe-lhe outros rituais como o Niinamesai, a comunicação da maioridade e
assunção do título de príncipe herdeiro. O imperador deve reportar
periodicamente à deusa Amaterasu, no santuário de Ise, os principais
acontecimentos do país (HERBERT, 1964, p. 250).
A maioria dos casamentos são celebrados no ritual xintoísta e as
cerimônias fúnebres, no budista. O jesuíta português Luís Almeida ao visitar o
Japão em 1565, observou: "os japoneses rezam aos kami (divindades) pedindo
longevidade, saúde, riqueza, fama e todos os outros benefícios terrenos, voltando-se,
no entanto, para Hotoke (Buda) para implorar a sua salvação religiosa
pessoal", característica da religiosidade desse povo que permanece ainda atualmente
(YUSA, 2002, p. 17). Poucos são os que
optam por enterrar seus mortos em cemitérios xintoístas, preferindo a cremação.
Enquanto o xintoísmo é otimista e está ligado a festivais, o budismo acabou
assumindo o papel de oficiante dos funerais. Isso deve-se à proibição da
presença de cadáveres nos santuários - local dedicado exclusivamente aos kami -
e a falta de hábito de ritos funerários dos monges xintoístas - também de
dedicação exclusiva aos kami - , devendo qualquer outro assunto ser tratado
fora do santuário (ONO, op. cit., p. 110). A dinastia Tokugawa (1603-1867), com
a perseguição aos cristãos, ordenou que os sepultamentos fossem realizados
apenas por monges budistas (idem). Tida como a religião da natureza, o
xintoísmo é a religião que comemora os fatos da vida, celebra e vivifica-os em
rituais de renovação: a colheita, as estações do ano, os festivais, adquirindo
por esse motivo o ar alegre e festivo das comemorações da comunidade, chamadas
matsuri. No Xintô a vida vivida em comunhão com a vontade divina está protegida
(ONO, op. cit., p. 50); por isso, o mundo é bom, uma dádiva dos deuses ao qual
o homem deve responder com gratidão à sua família, a seus ancestrais e ao kami,
assumindo "suas obrigações com a sociedade e contribuindo para o desenvolvimento
de tudo que lhe foi confiado" (ibidem p. 103). A vida quotidiana é
considerada como um serviço para o kami, isto é, o matsuri (idem). Intimamente
ligado à natureza, que se renova visivelmente a cada estação, a renovação se dá também na reconstrução dos
santuários no Parque de Ise, na província. É a mais importante cerimônia do
xintô que ocorre em 23 de novembro quando o imperador, como sacerdote supremo
do xintô, em nome do povo japonês, partilha arroz novo e saquê branco e preto
com a deusa Amaterasu. (HERBERT, 1964, p. 71) 20 .de Mie. Desde o ano 690 no
reinado da imperatriz Jito (686-697) os santuários são reconstruídos a cada 20
anos, poucas vezes interrompida por guerras ou dificuldades financeiras da
família imperial. (ibidem p. 28). Para essa reconstrução, chamada de sengu, são
utilizadas 130 mil árvores de hinoki (cipreste japonês) de 200 anos, (ibidem p.
29) para que "a deusa do sol, Amaterasu (a divina ancestral da casa
imperial) e a deusa da colheita, Toyouke, adquiram renovado vigor, garantindo a
vitalidade da linha imperial e da cultura do arroz, sem os quais seria
impossível a sobrevivência da nação"(LITTLETON, op. cit., p.62-63). As
peças dos santuários desconstruídos são utilizadas para construção de outros
santuários (idem). A última reconstrução se deu em 1993, o que indica este ano
de 2013 como a próxima reconstrução (idem).
A pureza no Xintô. Para o Xintô “a vida só tem sentido e só encontra o
seu verdadeiro estado na pureza, e a vida que perde a sua pureza não agrada às
divindades e transforma-se assim numa vida anti xintoísta cheia de pecados, de
manchas e de desgraças”(ROCHEDIEU, op. cit., p. 60). As cerimônias de início de
atividade – inaugurações em geral –
festivais populares ou torneios esportivos geralmente são precedidos por
ato de purificação. A purificação diz respeito não apenas ao corpo, mas também
ao espírito. Para os xintoístas, a purificação é o ato cerimonial mais
importante pois é o que aproxima nosso espírito do espírito puro dos deuses e
para alguns é o que permite atingir a Realidade Última, porém, esta união só se
dá na presença de um coração puro e claro (ROCHEDIEU, op. cit., p. 61). Para o
Xintô, os ritos e a liturgia são elementos secundários diante da importância
que assume a atitude de se manter claro e puro o coração (idem). Nos santuários
xintoístas está disposta invariavelmente uma pia com água corrente, servida por
uma concha de bambu para a higiene da boca e das mãos, antes de o fiel entrar
no santuário. Purifica-se o corpo externa e internamente antes de entrar na
presença dos deuses (LITTLETON, op. cit., p. 61-62). Para a purificação é
preciso que ocorra: (ROCHEDIEU, op. cit., p. 97-100)- a vontade e o poder
divino que purifica e- o esforço do homem que busca a purificação. A mancha
atrai os maus espíritos e faz o homem dependente destes. São ritos de
purificação: 1. O harai – destinado a limpar as manchas advindas do mal
cometido. 2. O misogi – destinado a remover as impurezas advindas de outros
males que não as de cunho moral como por exemplo, contato com coisas impurezas
como o cadáver. Usa-se em geral a água como elemento purificador. Mais do que o
rito de purificação, o misogi abrange “todo o processo de disciplina mental”.
3. O imi – refere-se a observância de condutas de purificação com evitar a
ingestão de certos alimentos, ações e contatos com o intuito de se preservar a
pureza total do culto. Neste estado de imi devem estar não apenas o oficiante,
mas também os encarregado da preparação da cerimônia. É proibido ainda como
atos preparatórios para o imi, ouvir música, ingestão de bebidas alcoólicas ou
de alimentos que não tenham sido cozidos em fogo puro e ocupar-se de atividades
que causem preocupação, fadiga ou sofrimento. Acredita-se que o homem receba
avisos do descontentamento dos deuses quanto à sua conduta, devendo então
empregar todos os seus esforços para recuperar seu estado normal de pureza. São
faltas ou más condutas: (SIEFFERT, op. cit., p. 12) 1. O tsumi – atitude em que
há vontade deliberada de praticar o mal. 2. O wazawai – é a desgraça, a
provação e a calamidade, cuja ocorrência independe da vontade; 3. O kegari – a
impureza, a mancha ocasionada pelos fatores já vistos. Apenas o tsumi é de
inteira responsabilidade individual, havendo, entretanto, responsabilidade na
conduta por negligência ou imprudência se formos abatidos por tsumi ou kegari.
De fato, mesmo inconscientemente, a invasão de território proibido, de domínio
do kami constitui tsumi, adverte Sieffert que, melhor esclarece o conceito de
tsumi, desconsiderando o que o Ocidente geralmente traduz por pecado ou falta:
é "a transgressão de certos limites nem sempre formalmente proibidos nem
definidos, mas carregados de um potencial mágico perigoso devido à simples
presença de um kami" (idem). Carregar no corpo ou na alma qualquer das
faltas, torna-nos inapropriados para entrar nos santuários, devendo o fiel,
antes, realizar a purificação da boca e das mãos com água corrente disposta na
entrada chamada temizuya (ONO, op. cit., p. 34). Na época dos samurais, antes
dos combates, alguns se purificavam com essa água, vertendo-a também na lâmina
de suas espadas. Entre os atos que chocam a sensibilidade e que não se aplicam
apenas às más ações, está o cortar a pele viva ou morta, do homem ou de
animais, daí serem considerados impuros o manejo do sangue e de seres
mortos, ou ainda infligir cortes e perfurações
na pele como as tatuagens ou piercings. O corpo, assim como as vestimentas,
deve ser puro, sem mácula (GRIFFIS, op. cit., p. 85). Nos banhos públicos há
avisos proibindo a entrada de pessoas alcoolizadas ou tatuadas. São impuros o
ofício do açougueiro ou do coveiro, geralmente executados por párias. O parto,
a doença, o moribundo e o doente terminal são considerados impuros. William
Elliot Griffis (1843-1928) relata que no Japão antigo eram construídas cabanas
para parturientes ou moribundos que eram depois queimadas, finalizadas o uso
(GRIFFIS, op. cit., p. 85). Perverso costume que penalizava a parturiente e o
doente, quando mais precisavam de cuidados e apoio. Esse costume permaneceu
ainda em algumas regiões do Japão até 1878 (idem). Nota-se o cuidado com a
limpeza em todos os lugares: nos locais públicos, nas casas, nas escolas, onde
desde pequenas as crianças aprendem a cuidar da limpeza da classe e das dependências
da escola. Discorrendo sobre o que via, o português Wenceslau de Moraes
escreve, surpreso, observando as ruas de um Japão ainda de vida pacata:
"muito limpas; são os moradores que as varrem, com escrúpulos de minúcia,
cada qual na parte que fica em frente à sua casa; o ofício de varredor
municipal é desconhecido no Japão" (MORAES, op. cit, p. 75). E em outro
trecho: "pode-se dizer que, na habitação japonesa, o principal luxo,
muitas vezes o único, é a limpeza; mas esta tão requintada, que embriaga!..."
(ibidem p. 77). Ainda nos dias de hoje, curiosamente o Japão não tem varredores
nem lixeiras nas ruas, mesmo nas grandes cidades como Tóquio. Sujar lugar
público é desrespeitar o próximo que também utiliza o espaço. Manchar ou ferir
nosso corpo, cortando, perfurando, ferindo ou ministrando-lhe drogas que
desvirtuem sua natureza, isto é, tudo que nos desvie de um comportamento bom,
respeitoso, contrário, segundo um teólogo xintoísta, “ao que foi desejado pelo
espírito divino” – significação de nossa vida terrestre - , significa ser
desrespeitoso com a divindade que em nós habita. Assim também, uma conduta que
ofenda nosso próximo por palavras, ações ou pensamentos, mostra a mácula do
espírito, o distanciamento do natural Caminho. O espírito ofensor está
duplamente em falta: consigo e com a divindade que está abrigada no próximo. É
mancha que lançamos ou permitimos que se lance sobre nós, obstando a volta ao
estado natural, vale dizer, de retornarmos ao estado de bons, de retornarmos ao
Caminho. Wenceslau relata-nos sua surpresa quanto à língua japonesa: Neste
momento, deixemos assomar, se nos apraz, aos lábios um sorriso, como único
comentário; mas sorriso benevolente, de simpatia por esta gramática japonesa, a
mais cortês de todas as gramáticas conhecidas. De fato, resulta pelo menos uma
vantagem evidente; na língua japonesa não existem palavras insultuosas,
obscenas; o termo mais rude que um japonês pode proferir é baka, imbecil. A
gramática nipônica faz-nos lembrar uma corte 23 .atarefada, meticulosa, na qual
os cortesãos em chusma - substantivos, adjetivos, advérbios, verbos,
posposições e todo o resto - palpitam, rodopiam incessantemente em mesuras, em
cortesias, em requebros, em reverências, seguindo regras de precedência da mais
complicada pragmática imaginável, ou antes inimaginável...[...] e a língua
japonesa é incontestavelmente uma das mais belas línguas hoje faladas, como
também uma das mais difíceis (ibidem p. 40-41). As ações do Xintô, os ritos de
purificação e as ideias de mácula procuram alcançar um ideal de pureza corporal
e espiritual, destacando-se o esforço ao retorno do “estado normal”, isto é,
estado divino, estado de bom. Corolário natural desta concepção, para o
xintoísmo não somos maus, apenas estamos mau. Estar nesse estado é estar
impuro, com o coração manchado, anuviado; é afastarmo-nos da nosso verdadeiro
Eu ou permitir que nos afastem. O homem não é responsável pelos males que se
abatem sobre sua vida, salvo aqueles produzidos por sua voluntária conduta, mas
é somente sua a responsabilidade de viver uma vida reta, honesta, ética e
clara, como é o desejo dos deuses. A
Natureza e o senso estético no Xintô Se observarmos as fases de desenvolvimento
por que passaram as religiões, é de indubitável conclusão o primitivismo do
Xintô, a fase ainda "das ideias infantis" dessa religião como afirma
Griffis (GRIFFIS, op. cit., p. 69). "Estagnado" nessa fase de
desenvolvimento, a Natureza - por força da crença de que os homens, a Natureza
e os deuses, provêm de um único ancestral - é objeto de profunda apreciação,
respeito e inúmeros festivais por todo o país. A comunhão com o divino e com a
própria Natureza se funde num único sentimento, assim descrito emocionadamente
por Rochedieu: [...] o Japão sabe conservar certos lugares unicamente pela
beleza, e é muitas vezes surpreendente e comovedor para o Ocidental ver nos
parques grandes templos, ou simplesmente presenciar num jardim público um pai
acompanhado do filho parar em silêncio ao pé de um lago, de uma pequena ponte,
de uma cascata ou das flores e ter uma atitude de recolhimento porque, para o
japonês, a comunhão com o divino obtém-se as mais das vezes através da união de
todo o seu ser com as belezas naturais, com obras de arte selecionadas, com a
harmonia que emana
de um monumento. Não é o valor ou a grandeza da matéria utilizada
que cria a
beleza, mas o amor
com que
o artista se debruça sobre a
sua obra, nela
trabalhando por vezes durante anos, mas incutindo desse modo, no objeto
que cinzela ou no quadro que pinta, algo da sua alma, algo de si próprio, e
esse algo que procura transmitir através da obra de arte é sempre aquilo que de
melhor há em si (ROCHEDIEU, op. cit., p.37). A beleza natural é fundamental
para a veneração dos kami nos santuários, independentemente do kami aí
cultuado. Segundo Ono, é esse refinado senso estético da beleza que enleva o
homem, conduzindo-o do mundo profano ao sagrado, que o faz 24 .experienciar o
viver em comunhão com "o alto e profundo mundo do divino" (ONO, op.
cit., p. 97). As leis xintoístas não provêm de um deus único, dado aos homens
por revelação como nas grandes religiões do Ocidente. São descobertas dentro da
Natureza onipresente, encantadora e ao mesmo tempo mística que se lhe mostra. A
Natureza não é hostil como na mitologia judaico-cristã que expulsa o homem do
Paraíso; pelo contrário, ela existe abençoada pelos deuses e se desenvolve com
harmonia e cooperação (ibidem p. 103). É, portanto, dádiva divina, presente dos
deuses para os homens. Página 25. Abraço. Davi
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