segunda-feira, 21 de outubro de 2024

MITOLOGIA E INFLUÊNCIA. Parte IV

 

Xintoísmo. bushidor.com. MITOLOGIA E INFLUÊNCIA na formação da cultura e o caráter do povo japonês. Parte IV. [...]. Os avós, pelas suas próprias virtudes durante a apagada existência, e pelas propiciações que os vivos lhes tributam, no desempenho dos ritos familiares, alcançam a bem-aventurança; e os seus espíritos agradecidos pagam em afetuosa proteção os cuidados rituais que se lhes votaram, guiando os vivos nos seus passos sobre a terra, aplanando as dificuldades, encaminhando os também para a bem-aventurança esperada. Vive-se, pois, pode dizer-se, para morrer; e morre-se para viver (MORAES, 1924, p. 82-83). À família imperial cabe-lhe outros rituais como o Niinamesai, a comunicação da maioridade e assunção do título de príncipe herdeiro. O imperador deve reportar periodicamente à deusa Amaterasu, no santuário de Ise, os principais acontecimentos do país (HERBERT, 1964, p. 250).  A maioria dos casamentos são celebrados no ritual xintoísta e as cerimônias fúnebres, no budista. O jesuíta português Luís Almeida ao visitar o Japão em 1565, observou: "os japoneses rezam aos kami (divindades) pedindo longevidade, saúde, riqueza, fama e todos os outros benefícios terrenos, voltando-se, no entanto, para Hotoke (Buda) para implorar a sua salvação religiosa pessoal", característica da religiosidade desse povo que permanece ainda atualmente (YUSA, 2002, p. 17).  Poucos são os que optam por enterrar seus mortos em cemitérios xintoístas, preferindo a cremação. Enquanto o xintoísmo é otimista e está ligado a festivais, o budismo acabou assumindo o papel de oficiante dos funerais. Isso deve-se à proibição da presença de cadáveres nos santuários - local dedicado exclusivamente aos kami - e a falta de hábito de ritos funerários dos monges xintoístas - também de dedicação exclusiva aos kami - , devendo qualquer outro assunto ser tratado fora do santuário (ONO, op. cit., p. 110). A dinastia Tokugawa (1603-1867), com a perseguição aos cristãos, ordenou que os sepultamentos fossem realizados apenas por monges budistas (idem). Tida como a religião da natureza, o xintoísmo é a religião que comemora os fatos da vida, celebra e vivifica-os em rituais de renovação: a colheita, as estações do ano, os festivais, adquirindo por esse motivo o ar alegre e festivo das comemorações da comunidade, chamadas matsuri. No Xintô a vida vivida em comunhão com a vontade divina está protegida (ONO, op. cit., p. 50); por isso, o mundo é bom, uma dádiva dos deuses ao qual o homem deve responder com gratidão à sua família, a seus ancestrais e ao kami, assumindo "suas obrigações com a sociedade e contribuindo para o desenvolvimento de tudo que lhe foi confiado" (ibidem p. 103). A vida quotidiana é considerada como um serviço para o kami, isto é, o matsuri (idem). Intimamente ligado à natureza, que se renova visivelmente a cada estação,  a renovação se dá também na reconstrução dos santuários no Parque de Ise, na província. É a mais importante cerimônia do xintô que ocorre em 23 de novembro quando o imperador, como sacerdote supremo do xintô, em nome do povo japonês, partilha arroz novo e saquê branco e preto com a deusa Amaterasu. (HERBERT, 1964, p. 71) 20 .de Mie. Desde o ano 690 no reinado da imperatriz Jito (686-697) os santuários são reconstruídos a cada 20 anos, poucas vezes interrompida por guerras ou dificuldades financeiras da família imperial. (ibidem p. 28). Para essa reconstrução, chamada de sengu, são utilizadas 130 mil árvores de hinoki (cipreste japonês) de 200 anos, (ibidem p. 29) para que "a deusa do sol, Amaterasu (a divina ancestral da casa imperial) e a deusa da colheita, Toyouke, adquiram renovado vigor, garantindo a vitalidade da linha imperial e da cultura do arroz, sem os quais seria impossível a sobrevivência da nação"(LITTLETON, op. cit., p.62-63). As peças dos santuários desconstruídos são utilizadas para construção de outros santuários (idem). A última reconstrução se deu em 1993, o que indica este ano de 2013 como a próxima reconstrução (idem).  A pureza no Xintô. Para o Xintô “a vida só tem sentido e só encontra o seu verdadeiro estado na pureza, e a vida que perde a sua pureza não agrada às divindades e transforma-se assim numa vida anti xintoísta cheia de pecados, de manchas e de desgraças”(ROCHEDIEU, op. cit., p. 60). As cerimônias de início de atividade – inaugurações em geral –   festivais populares ou torneios esportivos geralmente são precedidos por ato de purificação. A purificação diz respeito não apenas ao corpo, mas também ao espírito. Para os xintoístas, a purificação é o ato cerimonial mais importante pois é o que aproxima nosso espírito do espírito puro dos deuses e para alguns é o que permite atingir a Realidade Última, porém, esta união só se dá na presença de um coração puro e claro (ROCHEDIEU, op. cit., p. 61). Para o Xintô, os ritos e a liturgia são elementos secundários diante da importância que assume a atitude de se manter claro e puro o coração (idem). Nos santuários xintoístas está disposta invariavelmente uma pia com água corrente, servida por uma concha de bambu para a higiene da boca e das mãos, antes de o fiel entrar no santuário. Purifica-se o corpo externa e internamente antes de entrar na presença dos deuses (LITTLETON, op. cit., p. 61-62). Para a purificação é preciso que ocorra: (ROCHEDIEU, op. cit., p. 97-100)- a vontade e o poder divino que purifica e- o esforço do homem que busca a purificação. A mancha atrai os maus espíritos e faz o homem dependente destes. São ritos de purificação: 1. O harai – destinado a limpar as manchas advindas do mal cometido. 2. O misogi – destinado a remover as impurezas advindas de outros males que não as de cunho moral como por exemplo, contato com coisas impurezas como o cadáver. Usa-se em geral a água como elemento purificador. Mais do que o rito de purificação, o misogi abrange “todo o processo de disciplina mental”. 3. O imi – refere-se a observância de condutas de purificação com evitar a ingestão de certos alimentos, ações e contatos com o intuito de se preservar a pureza total do culto. Neste estado de imi devem estar não apenas o oficiante, mas também os encarregado da preparação da cerimônia. É proibido ainda como atos preparatórios para o imi, ouvir música, ingestão de bebidas alcoólicas ou de alimentos que não tenham sido cozidos em fogo puro e ocupar-se de atividades que causem preocupação, fadiga ou sofrimento. Acredita-se que o homem receba avisos do descontentamento dos deuses quanto à sua conduta, devendo então empregar todos os seus esforços para recuperar seu estado normal de pureza. São faltas ou más condutas: (SIEFFERT, op. cit., p. 12) 1. O tsumi – atitude em que há vontade deliberada de praticar o mal. 2. O wazawai – é a desgraça, a provação e a calamidade, cuja ocorrência independe da vontade; 3. O kegari – a impureza, a mancha ocasionada pelos fatores já vistos. Apenas o tsumi é de inteira responsabilidade individual, havendo, entretanto, responsabilidade na conduta por negligência ou imprudência se formos abatidos por tsumi ou kegari. De fato, mesmo inconscientemente, a invasão de território proibido, de domínio do kami constitui tsumi, adverte Sieffert que, melhor esclarece o conceito de tsumi, desconsiderando o que o Ocidente geralmente traduz por pecado ou falta: é "a transgressão de certos limites nem sempre formalmente proibidos nem definidos, mas carregados de um potencial mágico perigoso devido à simples presença de um kami" (idem). Carregar no corpo ou na alma qualquer das faltas, torna-nos inapropriados para entrar nos santuários, devendo o fiel, antes, realizar a purificação da boca e das mãos com água corrente disposta na entrada chamada temizuya (ONO, op. cit., p. 34). Na época dos samurais, antes dos combates, alguns se purificavam com essa água, vertendo-a também na lâmina de suas espadas. Entre os atos que chocam a sensibilidade e que não se aplicam apenas às más ações, está o cortar a pele viva ou morta, do homem ou de animais, daí serem considerados impuros o manejo do sangue e de seres mortos,  ou ainda infligir cortes e perfurações na pele como as tatuagens ou piercings. O corpo, assim como as vestimentas, deve ser puro, sem mácula (GRIFFIS, op. cit., p. 85). Nos banhos públicos há avisos proibindo a entrada de pessoas alcoolizadas ou tatuadas. São impuros o ofício do açougueiro ou do coveiro, geralmente executados por párias. O parto, a doença, o moribundo e o doente terminal são considerados impuros. William Elliot Griffis (1843-1928) relata que no Japão antigo eram construídas cabanas para parturientes ou moribundos que eram depois queimadas, finalizadas o uso (GRIFFIS, op. cit., p. 85). Perverso costume que penalizava a parturiente e o doente, quando mais precisavam de cuidados e apoio. Esse costume permaneceu ainda em algumas regiões do Japão até 1878 (idem). Nota-se o cuidado com a limpeza em todos os lugares: nos locais públicos, nas casas, nas escolas, onde desde pequenas as crianças aprendem a cuidar da limpeza da classe e das dependências da escola. Discorrendo sobre o que via, o português Wenceslau de Moraes escreve, surpreso, observando as ruas de um Japão ainda de vida pacata: "muito limpas; são os moradores que as varrem, com escrúpulos de minúcia, cada qual na parte que fica em frente à sua casa; o ofício de varredor municipal é desconhecido no Japão" (MORAES, op. cit, p. 75). E em outro trecho: "pode-se dizer que, na habitação japonesa, o principal luxo, muitas vezes o único, é a limpeza; mas esta tão requintada, que embriaga!..." (ibidem p. 77). Ainda nos dias de hoje, curiosamente o Japão não tem varredores nem lixeiras nas ruas, mesmo nas grandes cidades como Tóquio. Sujar lugar público é desrespeitar o próximo que também utiliza o espaço. Manchar ou ferir nosso corpo, cortando, perfurando, ferindo ou ministrando-lhe drogas que desvirtuem sua natureza, isto é, tudo que nos desvie de um comportamento bom, respeitoso, contrário, segundo um teólogo xintoísta, “ao que foi desejado pelo espírito divino” – significação de nossa vida terrestre - , significa ser desrespeitoso com a divindade que em nós habita. Assim também, uma conduta que ofenda nosso próximo por palavras, ações ou pensamentos, mostra a mácula do espírito, o distanciamento do natural Caminho. O espírito ofensor está duplamente em falta: consigo e com a divindade que está abrigada no próximo. É mancha que lançamos ou permitimos que se lance sobre nós, obstando a volta ao estado natural, vale dizer, de retornarmos ao estado de bons, de retornarmos ao Caminho. Wenceslau relata-nos sua surpresa quanto à língua japonesa: Neste momento, deixemos assomar, se nos apraz, aos lábios um sorriso, como único comentário; mas sorriso benevolente, de simpatia por esta gramática japonesa, a mais cortês de todas as gramáticas conhecidas. De fato, resulta pelo menos uma vantagem evidente; na língua japonesa não existem palavras insultuosas, obscenas; o termo mais rude que um japonês pode proferir é baka, imbecil. A gramática nipônica faz-nos lembrar uma corte 23 .atarefada, meticulosa, na qual os cortesãos em chusma - substantivos, adjetivos, advérbios, verbos, posposições e todo o resto - palpitam, rodopiam incessantemente em mesuras, em cortesias, em requebros, em reverências, seguindo regras de precedência da mais complicada pragmática imaginável, ou antes inimaginável...[...] e a língua japonesa é incontestavelmente uma das mais belas línguas hoje faladas, como também uma das mais difíceis (ibidem p. 40-41). As ações do Xintô, os ritos de purificação e as ideias de mácula procuram alcançar um ideal de pureza corporal e espiritual, destacando-se o esforço ao retorno do “estado normal”, isto é, estado divino, estado de bom. Corolário natural desta concepção, para o xintoísmo não somos maus, apenas estamos mau. Estar nesse estado é estar impuro, com o coração manchado, anuviado; é afastarmo-nos da nosso verdadeiro Eu ou permitir que nos afastem. O homem não é responsável pelos males que se abatem sobre sua vida, salvo aqueles produzidos por sua voluntária conduta, mas é somente sua a responsabilidade de viver uma vida reta, honesta, ética e clara, como é o desejo dos deuses.  A Natureza e o senso estético no Xintô Se observarmos as fases de desenvolvimento por que passaram as religiões, é de indubitável conclusão o primitivismo do Xintô, a fase ainda "das ideias infantis" dessa religião como afirma Griffis (GRIFFIS, op. cit., p. 69). "Estagnado" nessa fase de desenvolvimento, a Natureza - por força da crença de que os homens, a Natureza e os deuses, provêm de um único ancestral - é objeto de profunda apreciação, respeito e inúmeros festivais por todo o país. A comunhão com o divino e com a própria Natureza se funde num único sentimento, assim descrito emocionadamente por Rochedieu: [...] o Japão sabe conservar certos lugares unicamente pela beleza, e é muitas vezes surpreendente e comovedor para o Ocidental ver nos parques grandes templos, ou simplesmente presenciar num jardim público um pai acompanhado do filho parar em silêncio ao pé de um lago, de uma pequena ponte, de uma cascata ou das flores e ter uma atitude de recolhimento porque, para o japonês, a comunhão com o divino obtém-se as mais das vezes através da união de todo o seu ser com as belezas naturais, com obras de arte selecionadas, com a harmonia  que  emana  de  um  monumento. Não é o valor ou  a grandeza da matéria  utilizada   que  cria  a  beleza,  mas  o  amor com  que  o artista se debruça  sobre  a  sua  obra,  nela  trabalhando por vezes durante anos, mas incutindo desse modo, no objeto que cinzela ou no quadro que pinta, algo da sua alma, algo de si próprio, e esse algo que procura transmitir através da obra de arte é sempre aquilo que de melhor há em si (ROCHEDIEU, op. cit., p.37). A beleza natural é fundamental para a veneração dos kami nos santuários, independentemente do kami aí cultuado. Segundo Ono, é esse refinado senso estético da beleza que enleva o homem, conduzindo-o do mundo profano ao sagrado, que o faz 24 .experienciar o viver em comunhão com "o alto e profundo mundo do divino" (ONO, op. cit., p. 97). As leis xintoístas não provêm de um deus único, dado aos homens por revelação como nas grandes religiões do Ocidente. São descobertas dentro da Natureza onipresente, encantadora e ao mesmo tempo mística que se lhe mostra. A Natureza não é hostil como na mitologia judaico-cristã que expulsa o homem do Paraíso; pelo contrário, ela existe abençoada pelos deuses e se desenvolve com harmonia e cooperação (ibidem p. 103). É, portanto, dádiva divina, presente dos deuses para os homens. Página 25. Abraço. Davi

Nenhum comentário:

Postar um comentário