Budismo. Texto do Yogi Kharishnanda Saraswati
(1922-2001). III. O EVANGELHO DE BUDA. Capítulo três. As três
dores. Os palácio dado ao príncipe pelo rei resplandecia com todo o
luxo da Índia, porque o rei queria que o seu filho fosse feliz. Tudo quanto
parecesse doloroso para ser contemplado, todas as misérias e todas as noções de
sofrimento, forma afastados de Sidharta, para que ele ignorasse os males do
mundo. Porém, assim como o elefante cativo suspira pelas selvas, o príncipe se
impacientava por ver o mundo, e pediu ao rei, seu pai, permissão para
satisfazer o seu ardente desejo. Então, Suddhodana mandou atrelar quatro
magníficos corcéis (cavalos) num carro adornado de pedrarias, e enfeitar os
caminhos por onde Sidharta deveria passar. As casas da cidade foram enfeitadas
com cortinas e bandeiras, e os espectadores, alinhados de cada lado,
contemplavam avidamente o herdeiro do trono. Assim passou Sidharta com Channa,
seu cocheiro, pelas ruas da cidade, e atravessou a campina sulcada de arroios e
povoada de árvores frondosas. Em determinado lugar, encontrou um velho. Quando
o príncipe viu aquele homem de corpo encurvado e rosto envelhecido com um sulco
de dor entre as sobrancelhas, perguntou ao cocheiro: Quem é este? Sua cabeça é
branca, seus olhos tremem e tem o corpo maltratado. Só consegue manter-se em pé
apoiado num bastão! O cocheiro, a princípio embaraçado, atreveu-se por fim a
dizer a verdade, e respondeu: Esses são os sinais da velhice. Esse homem foi
uma criancinha e, depois, um adolescente cheio de entusiasmo e de prazer; porém
os anos se passaram, e agora seu porte esbelto se foi e o vigor do seu corpo
desapareceu. Sidharta, profundamente aflito pelas palavras do cocheiro,
suspirou por causa do sofrimento da velhice e disse de si para si: Que gozo e
que prazer podem experimentar os homens, quando sabem que a velhice virá e os
fará sofrer e andar com tanta fraqueza? Mais adiante, à medida que seguiam,
viram de um lado do caminho um enfermo, ofegante, as feições desfiguradas,
convulso e gemendo de dor. O príncipe perguntou ao cocheiro: Que classe de
homem é essa? E o cocheiro respondeu: Este homem está enfermo. Os quatro
elementos do seu corpo estão confusos e em desordem. Todos nós estamos sujeitos
aos mesmos acidentes: o pobre e o rico, o ignorante e o sábio. Todas as
criaturas que têm corpo estão expostas ao mesmo mal. E Sidharta se comoveu
ainda mais. Todos os prazeres lhe pareciam vãos, e sentiu desgosto pelos
prazeres da vida. O cocheiro fustigou o cavalo para fugir de espetáculo tão
triste, mas logo tiveram de parar em sua rápida carreira. Quatro pessoas
passavam levando um cadáver; e o príncipe, enternecido ante a visão do corpo
privado da vida, perguntou ao cocheiro. O que estas pessoas estão levando? Vejo
umas bandeirolas e umas grinaldas de flores; porém os homens caminham tristes e
pesarosos. O cocheiro lhe informou: É um morto, seu corpo está rígido, a vida
fugiu dele, e seu pensamento se extinguiu. Sua família e seus amigos levam
agora o corpo dele para o sepulcro. E o príncipe, cheio de horror e espanto,
perguntou: Este caso é uma exceção, ou há no mundo outros exemplos semelhantes?
Com o coração oprimido, o cocheiro lhe respondeu: Isto é igual para todos.
Todos os que nascem devem morrer. Ninguém escapa da morte. Com a voz apagada e
balbuciante, o príncipe exclamou: Ó homens mundanos, como é fatal o erro em que
estão! Inevitavelmente o corpo de vocês se transformará em pó, e não obstante
continuam a viver descuidados e despreocupados. O cocheiro, vendo a profunda
impressão que aqueles lúgubres espetáculos causaram no príncipe, deu meia volta
e entrou novamente na cidade. Ao passar pelo palácio da jovem princesa,
sobrinha do rei, esta, surpreendida com a beleza varonil de Sidharta e vendo-o
preocupado, exclamou: Ditoso o pai que o gerou, ditosa a mãe que o criou;
ditosa a mulher que chama de marido um homem tão glorioso. Ao ouvir esse
elogio, o príncipe respondeu: Ditosos são os que encontraram a salvação.
Aspirando à paz do espírito, eu buscarei a felicidade do nirvana. E
ofereceu-lhe seu colar de pérolas preciosas, como para recompensá-la da lição
que lhe havia dado e entrou no seu palácio. Capítulo quatro. A renúncia. Certa
noite, o príncipe estava repousando quando repentinamente levantou-se foi ao
jardim. Ah!, exclamou: o mundo está cheio de trevas e ignorância; ninguém sabe
como curar os males da existência. E suspirou dolorosamente. Yasodhara atirou-se
aos seus pés, suspirando aflita e dizendo: Meu senhor não encontra a felicidade
em mim? Sidharta respondeu: Ah, querida esposa! Sinto a alma dilacerada ao
pensar que essa felicidade terá fim e envelheceremos sem amor, repulsivos,
débeis, encurvados. Sim, ainda que os nossos lábios tenham sido tão fortes
selos da vida e do amor, que noites e dias fosse um só o nosso alento; e se
interrompesse entre ambos o tempo para arrebatar minha paixão e sua beleza,
como a negra noite apaga os rosados raios que brilham no cume dos montes e os
cobre com seu sombrio sendal. Eis o que descobri: meu coração estremeceu de
espanto a essa ideia, e todo o meu ser só pensa em resguardar o amor dos
ataques do tempo implacável, que envelhece os homens. Toda aquela noite o
príncipe passou inconsolável e insone. No dia seguinte pediu a seu pai que o
deixasse ver a cidade tal qual era, sem os enfeites nem os preparativos de uma
festa ilusória, na vida costumeira dos homens que não são reis. O rei
Suddhodana concordou, e na hora em que o sol passa pelo meridiano, Sidharta
saiu disfarçado de mercador, e, juntamente com o cocheiro Channa com hábito de
religioso, caminharam a pé pelas ruas, confundidos entre os cidadãos, olhando
tudo quanto de alegre e triste existia na cidade. Ao chegarem ao rio, viram uma
comitiva de pessoas tristes e chorosas que se aproximavam da margem a passos
apressados. À frente ia um homem agitando uma taça de barro cheia de brasas.
Seguiam-no os parentes mal vestidos e com a cabeça coberta de luto. Depois
vinha o féretro composto de quatro varas com um leito de pedaços de bambus
entrelaçados, onde jazia um cadáver rígido, emagrecido, com os pés para a
frente, a boca cerrada, os olhos vidrados, as mãos crispadas, coberto de um pó
vermelho e amarelo. Os que o carregavam conduziram o féretro (caixão) até a
margem do rio, onde estava disposta uma pira sobre a qual o colocaram,
cobrindo-o com folhas secas. Em seguida, atearam fogo nos quatro lados. A chama
brotou subitamente, lambendo a pira e, com suas sibilantes línguas de fogo,
devorou o cadáver. A pele dessecada rasgou-se e as articulações se
desprenderam. Por fim clareou a fumaça da gordura e as cinzas caíram pardas e
vermelhas, com pó de ossos brancos que salpicavam a cor das cinzas. Era tudo
quanto restava do homem. O príncipe disse: Este é o fim de todos os viventes?
Channa respondeu-lhe: Este é o fim de todos. Aquele que o senhor viu na pira e
cujos restos são tão desprezíveis que os corvos grasnantes desdenhariam como
fútil manjar; já comeu, bebeu, riu, amou e considerou a vida grata e
prazenteira. Porém, o que sobrevém depois? Quem o sabe? Um violento sopro de ar
da selva, um tropeço no caminho, algo suja na cisterna, a picada de uma cobra,
um resfriado, a espinha de um peixe, a queda de uma telha, a vida escapa e o
homem morre. Já não tem apetites, nem prazer nem dores. Nada significa para
ele, um beijo na boca nem uma queimadura nos lábios. Não sente o mau cheiro da
sua carne tostada, nem o perfume do sândalo, nem os aromas que ardem na pira.
Sua boca perdeu o paladar, seus ouvidos não ouvem e seus olhos não veem.
Desolados, gemem aqueles que ele amava, porque também é preferível destruir o
corpo que era a lâmpada da vida, do que oferecer um festim horrendo aos corvos.
Esse é o destino comum de toda carne. Altos e baixos, bons e maus, têm que
morrer; e segundo nos ensinam, renascem depois para uma nova vida (...) onde?
Como? Quem sabe? E outra vez as angústias, a morte e as chamas da pira. Esse é
o destino do homem. Sidharta levantou para o céu os olhos em que brilhavam
lágrimas divinas, e em seguida baixou-os ao chão, inundados de celeste piedade.
Contemplava alternativamente o céu e a terra, como se em voo solitário seu
espírito buscasse alguma visão longínqua que unisse o céu à terra. Depois,
ansiosamente, inflamado pela ardorosa paixão de um amor inefável, de uma
infinita e insaciável esperança, exclamou: Oh, triste mundo! Oh, os seres de
minha carne, conhecidos e desconhecidos, presos nesta rede comum de mortes,
vida e dores que a todos nos atam! Vejo e sinto a imensa agonia do mundo, a
vaidade dos seus prazeres, a ilusão de sua felicidade, a angústia de seu
infortúnio, pois a dor substitui o prazer; a velhice a juventude, a perda do se
amado o amor, a odiosa morte a vida, e a morte em vidas desconhecidas que de novo
atam os homens à sua roda para girar em círculo de deleites ilusórios e
sofrimentos reais. A mim também me alucinou este sonho, e parecia-me agradável
viver a vida como um regato luminoso que flui sem cessar em paz inalterável, e
cujo buliçoso caudal desliza ligeiramente pelos floridos prados para jorrar
mais apressado suas águas no mar impuro. Caiu o véu que me cegava! Sou como
esses homens que em vão imploram aos deuses que não os ouvem. No entanto, algum
auxílio há de existir para eles e para mim, e para todos os que necessitarem de
ajuda. Será que os deuses também estão precisando de auxílio? São tão fracos
que não podem salvar os que os invocam com tristeza nos lábios? Não deixarei
chorar os que puder salvar! Como é possível que Brahma criasse o mundo para
abandoná-lo na miséria? Se é onipotente e o deixa miserável, não é bondoso, e
se não é onipotente, não é Deus. Sidharta sentou-se sob a frondosa arvore bo,
chamada também azvattha, ou banano, e entregou-se aos seus pensamentos,
meditando sobre a vida e a morte, os males e a decrepitude. Concentrando o seu
espírito, libertou-se de toda confusão. Todos os vis desejos desapareceram do
seu coração e uma calma perfeita o inundou completamente. Nesse estado de
êxtase, viu com seu olho mental toda miséria e dor existentes no mundo; viu as
dores causadas pelo prazer e a inevitável certeza da morte que pesa sobre todos
os seres. No entanto, os homens não despertaram ainda para a verdade. E uma
profunda compaixão invadiu a sua alma. Enquanto meditava sobre o problema do
mal, o príncipe viu com o olho do seu espírito, sob as árvores, uma venerável
figura revestida de majestade, calma e dignidade. Perguntou-lhe: De onde vem o
senhor? Quem é? A visão lhe respondeu: Sou um Samana. Atormentado pelos
pensamentos sobre a velhice, a enfermidade e a morte, fui de lugar em lugar
para buscar o caminho da salvação. Todas as coisas se precipitam para a ruína;
só a Verdade é eterna. Tudo muda e nada dura; unicamente as palavras dos Budhas
são imutáveis. Eu aspiro à felicidade inalterável, ao tesouro imperecedouro, à
vida sem princípio nem fim. Por isso, destruí todo pensamento mundano e
retirei-me para o deserto para viver em solidão e mendigar o meu sustento, e
assim me consagrei à única coisa necessária. Sidharta perguntou-lhe: E como
pode alguém obter a paz neste mundo agitado? Já transpus a vaidade e o prazer e
tenho horror à sensualidade. Tudo me entristece e a própria vida se tornou
intolerável para mim. O Samana lhe respondeu: Onde há calor também pode haver
frio. Os seres sujeitos à dor possuem a faculdade de sentir prazer. A origem do
mal ensina que pode existir o bem. Porque essas coisas são correlatas. Assim,
onde há muita desgraça, haverá muita felicidade, contanto que os olhos se abram
para vê-la. Da mesma maneira que aquele que cai na lama procura um lago de
lótus para limpar-se, também, quando existe um caminho santo que conduz ao
nirvana, e o homem sujeito ao pecado não o busca, a falta não está no caminho e
sim no pecador. Se um enfermo não chama o médico que pode curá-lo, se ele
morrer a culpa não será do médico, e sim do enfermo. Do mesmo modo, se o
enfermo da alma não busca o guia espiritual da luz, se o doente da alma
continua enfermo a culpa não será do guia. O príncipe escutou as nobres
palavras do seu visitante e lhe respondeu: O senhor é mensageiro de boas novas,
porém não sei se cumprirei meu propósito. Meu pai me incita a desfrutar a vida
e a sujeitar-me aos deveres mundanos que me dão nobreza e enaltecem minha casa.
Disse que sou muito jovem e que meu coração ainda palpita por demais fortemente
para me entregar à vida religiosa. A venerável aparição moveu a cabeça em sinal
de discordância e respondeu: Jamais houve tempo e falta de tempo para buscar a
verdadeira religião. Com o coração palpitando de alegria, Sidharta disse: Este
é o momento de buscar a verdadeira religião. É o instante propício para romper
os laços que me impedem de alcançar a perfeita iluminação. Esta é a hora de
aceitar a vida mendicante e de encontrar a senda da libertação. O mensageiro celeste,
satisfeito com a resolução de Sidharta, disse-lhe: De fato, esta é a
oportunidade que você depara para encontrar a verdadeira religião. Vá e cumpra
o seu propósito, porque você é o Buda escolhido e destinado a iluminar o
mundo. Você é o perfeito. Tathágata, porque cumprirá toda justiça e será o
verdadeiro rei do Dharma. Você é Bhagavad, o Bendito, porque há de ser salvador
do mundo. Vá e cumpra a perfeição da Verdade. Mesmo que sobre a sua cabeça caia
o raio, não ceda jamais à ilusão que desvia o homem do caminho da Verdade.
Assim como o Sol não se detém em nenhuma das quatro estações do ano, não se
afaste do caminho da justiça. Você será Budha. Persevere em seu caminho e
encontrará o que está buscando. Prossiga até o fim sem se desviar, e alcançará
o prêmio. Combata com coragem e vencerá. Que a benção dos deuses, dos santos,
de todos os que buscam a luz seja contigo, e que a celeste sabedoria guie seus
passos. Você será o Budha nosso Amo e Senhor. Iluminará o mundo e salvará a
humanidade da perdição. Dito isso, a visão celeste desapareceu e a alma de
Sidharta ficou em paz. Do Livro O Evangelho de Budha. Vida e doutrina de
Sidharta Gautama. Abraço. Davi.
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