quarta-feira, 27 de março de 2024

A PALAVRA SECRETA. Parte II

 

Budismo. www.sotozencuritiba.org.br. Por Ryotan Tokuda (1938-  ). A PALAVRA SECRETA. Parte II. O Pai tornou-se Filho, mas isso não significa que é algo ocorrido entre criaturas. Quando falamos "criatura", há imediatamente duas individualidades "criador" e "criatura", e há ainda o tempo. Quando falamos no tempo, surgem todos os defeitos deste mundo. O que nasce, já está condenado a morrer. Somos mortais. Viver eternamente significa transcender. Quando mestre Eckart (1260-1328) usa esta palavra "nascimento", para ele isto significa que Deus nasceu neste mundo sem perder a qualidade de ser Deus que foi capaz de viver a simultaneidade original, transcendental, e a simultaneidade histórica. Jesus Cristo viveu neste mundo por trinta e três anos. Nasceu em Nazaré e morreu. Mas nasceu, viveu e morreu durante esse tempo em uma simultaneidade, ou seja, naquele lugar fundo no chão onde há o absoluto e eterno. Mostrou para nós o corpo físico, sofreu igualmente na cruz, mas alguma coisa mostrou-se transcendente. Dizer que o único filho de Deus nasce dentro da alma limitada significa a possibilidade de nos tornarmos o único filho de Deus. Tornar-se Deus, ou seja, viver neste mundo desde a eternidade. Isto chama-se "satori" ou "iluminação" no Budismo. Isto tem que ocorrer nesta vida. Muitos perguntam, "existe a reencarnação ou não?", ou, "você acredita na reencarnação?". A resposta é "sim e não". De uma certa maneira sim, mas quando há a experiência de nirvana, de silêncio, a experiência do deserto, instala-se a dimensão do eterno e absoluto, então não há mais reencarnação. Jesus Cristo ou esse marido que furou os olhos escolheram este mundo, voltaram para cá, descendo. Em lugar de dizer, "venham até aqui em cima", o que seria difícil para as pessoas, Deus disse, "eu vou", é muito fácil. Deus faz isto quando você está preparado para tal. O que é necessário para a preparação? Apenas que você entre no silêncio, que abandone a si próprio. É necessário abandonar o ego. Abandonar corpo e mente é a experiência fundamental de mestre Dogen. Mestre Eckart também fala, "é preciso abandonar". Abandonar é difícil por quê? Porque há compreensão errada, distorcida. E com isto se sofre. Mestre Eckart diz que abandonar a si próprio não ê sofrimento, é o caminho mais rápido para encontrar com Deus, e então a palavra secreta revela-se. Na verdade, a realidade última deste mundo não está nada escondida. Por isso se diz aqui que Makakasho não escondeu nada. Essa verdade está presente dentro de nós. O paraíso não se dá após a morte, está aqui. Vocês não vêm porque sua visão está contaminada com a ideia de ego, vocês praticam a consciência kármica. É preciso sair disto, arrancando este "olho de ego" e colocando o "olho-de-Buda". Os budistas falam que existem cinco tipos de olhos: olho físico, olho de Darma, olho de sabedoria, olho de Buda e olho de ser. Temos apenas um olho, o físico, e este está contaminado. O que está vendo, será que está vendo verdadeiramente? Está vendo apenas a projeção de sua mente, de sua consciência e de seu inconsciente também. Você vê o que quer. Você não vê o que existe e vê o que não existe, e assim, segue projetando suas consciências. Isso é o que chamamos de karma. Você não consegue ver de nenhuma outra maneira, isto é, o karma. Praticando o silêncio, pratica-se a purificação. O silêncio é escuridão, noite. Como o místico espanhol São João da Cruz (1542-1591), na subida do monte Carmelo, fala na noite da consciência, na noite das ideias, na noite da vontade, na noite das lembranças, na noite do espírito, noite da alma etc., e com isto, subindo montanhas em processo de meditação, passa pelo processo de purificação e chega ao topo da montanha. Na verdade, o topo da montanha está aí, embaixo dos seus pés. Nunca esteve escondido. Nosso problema não é que Deus tenha escondido algo, você é que tem a culpa por sua consciência contaminada que dá nascimento e suporte ao ego. Quando se vivencia a consciência de ego, sente-se, "eu estou aqui e você está aí". Surge imediatamente a dualidade a multiplicidade e a corporalidade. E a questão do físico. Estou tomando este espaço com este corpo, este espaço você não pode tomar, de jeito nenhum. Isso é bom, mas ao mesmo tempo é um limite. Então chega o momento de transcender a corporalidade, a temporariedade e a multiplicidade. Nesse momento ocorrem o deserto, a morte, a unidade - o uno. O rei Salomão encontrou aquela lendária flor, o lírio. Ele tinha enormes riquezas, mas foi justamente dentro de uma flor que encontrou mais riquezas do que todas as suas riquezas reunidas. Por quê? Deus estava ali presente. Deus é um, além dele nada há. Se você entende isto, mesmo dentro de um mosquito você encontrará Deus, e este mosquito, o pernilongo, se tornará, então, mais sublime do que quaisquer dos anjos mais elevados. Nada está escondido, apenas não vemos. Conta-se que um monge estava passando pela frente de um açougue e escutou o diálogo do freguês com o açougueiro. O freguês perguntou, nesta carne é fresca? O açougueiro respondeu, "na minha loja nada há que não seja fresco, de boa qualidade". Quando o monge escutou, "na minha loja é tudo bom, toda a carne é boa", nesse instante atingiu a iluminação. Neste mundo é tudo bom. Nada tem defeito. Por que então tantas dificuldades, tantos problemas entre nós? Porque a mente cria problemas, oculta a verdade. Cria o bem, o bom, o mau. Na verdade, não existe o bem e o mal, isto é apenas uma dualidade, uma discriminação. É preciso penetrar a não discriminação. Tudo está em seu lugar no mundo do Darma, do absoluto. Nada falta. Nós, no entanto, fazemos a discriminação, "isso é bom, isso é ruim" Cada um constrói seu próprio sofrimento ao fazer essa discriminação. Você mesmo sofre com isso. Neste mundo está tudo perfeito, o problema é você mesmo. Aqui e agora você pode encontrar o absoluto, o eterno. Está tudo perfeito, nada há para se queixar. O fato de muitos japoneses terem os olhos puxados conduz muitos a terem complexos. Uma pessoa diz, "eu sou brasileiro, nasci aqui", outro fala, "eu nasci no Japão, sou japonês, tenho olhos puxados", surge então o complexo, "tenho cabelo preto, liso e por isso quero tingir de outra cor, mas isso me deixa mais feio". Quando você aceita os olhos puxados, com isto pode manifestar a glória de Deus! As coisas todas são diferentes umas das outras, as plantas são diferentes entre si, essas diferenças revelam a glória de Deus. Uns são baixinhos, outros feios, uns ricos, outros pobres, ou aleijados, mancos; isso não importa, cada um revela a glória de Deus. Em um determinado momento, repentinamente tudo muda. Tudo se revela, nada permanece escondido. Então o mestre chamou, "ministro!", e este imediatamente respondeu, "sim, mestre!" O que está acontecendo aqui? Nós temos tudo. Há um outro episódio em que um ministro visitou um outro mestre. O mestre estava assando batata-doce nas brasas e assoprava continuamente para avivar o fogo. O ministro chamou, "mestre, mestre!" O mestre, ocupado com o fogo e a batata-doce, e com o nariz que pingava sem parar, não atendeu imediatamente. O ministro zangou-se e, virando-se começou a sair. O mestre então chamou, "ministro!". Este imediatamente parou e voltou-se. Então o mestre concluiu, "porque você respeita os ouvidos e não respeita os olhos?". O ministro ouviu e, sentindo a força da lição, inclinou-se ao mestre. "O que é o caminho?", perguntou então. O mestre respondeu, "está vendo? Nuvens estão no céu e algo está dentro da garrafa". O segredo não tem nenhum segredo. Um monge Zen procura seu mestre e pede-lhe, "por favor, ensine-me o segredo do Budismo". O mestre responde, "sim, se você quiser; quando todos houverem saído, ninguém mais estiver aqui, procure-me aqui e eu lhe ensinarei". O monge responde, "ah, sim", e mais tarde volta e sussurra, "mestre, agora não há mais ninguém aqui, por favor, ensine-me o segredo!" O mestre então leva o discípulo ao jardim e diz, "está vendo? Esta árvore é muito alta e essa outra é muito baixa, entendeu?". "Árvores altas e árvores baixas", com isso ele mostra tudo! Num canteiro, plantando sementes de ameixeiras, cerejeiras, crisântemos ou o que seja, ele lida com estas variedades de plantas. Plantando bambu, é bambu que crescerá, ninguém tem o poder de trocar isso. É isso aí - nós é que complicamos a nós mesmos querendo classificar as coisas e mudar tudo. Eu estava falando sobre os vários tipos de sermões: o sermão da luz radiante, o sermão da atividade com o corpo e ações (...), mas há outro sermão, o sermão de "um tom" ou "uma voz". Quando Buda falava, todos entendiam de acordo com seu estado de consciência e compreensão. Estas histórias podemos também encontrar dentro da Bíblia. Quando Jesus Cristo apareceu e recebeu o Espírito Santo, havia muitas pessoas provenientes de países de línguas diferentes, mas, ainda assim, quando falou com o Espírito Santo, todos entenderam. Lembram dessa passagem? Como pode ocorrer isso? Um tom, um som, uma voz. Até pedras entendem, até paredes e portas escutam, porque é o Darma. Isto é a "palavra secreta". Quando você vai purificando sua mente e torna-se residente do deserto, alguém passa a falar-lhe internamente. Quem é este alguém? É você mesmo! O primeiro capítulo do Evangelho de São João diz: "no princípio era o Verbo". "No princípio" significa o quê? Princípio do tempo? Não! "No princípio significa "origem", o período antes de Deus haver criado este mundo. Jesus Cristo estava à direita de Deus Pai, ele estava vendo o Pai criar o mundo. Ele mesmo estava lá. Daisetz Suzuki (1870-1966) certa vez dirigiu-se a vários pensadores cristãos, dizendo: "Tenho uma pergunta para vocês, cristãos: quando Deus estava criando o mundo, quem estava vendo isso?" Ninguém respondeu e então ele mesmo ofereceu a resposta: "eu". Sempre é importante esta atitude, "eu, agora, aqui". Deus criou este mundo - criou é passado, mas está ainda criando agora, neste exato momento. Estamos constantemente criando o mundo a cada instante. E esta mesa, existe ou não? Não existe? E o que estamos vendo? Se voltarmos aqui amanhã e a encontrarmos? E se morrermos nesse espaço de tempo? Alguém vai vê-la. Mas, ainda assim, esta mesa está sendo criada por nós, agora, a cada momento, a cada instante. Fitando o espelho, vemos nosso envelhecimento. Alguns ficam tristes por ficarem velhos. Não precisam ficar tristes, não. Mestre Eckart diz, "dez anos antes nosso rosto era liso e bonito; agora, dez anos se passaram e apareceram muitas rugas, e surge então a tristeza". Não é preciso olhar assim, essa não é a realidade! Hoje estamos encontrando um novo rosto e fitando-o como da primeira vez, é uma e experiência totalmente nova. Amanhã será também um novo rosto e assim por diante! A cada vez fitamos uma forma totalmente original, a cada vez nos defrontamos com o absoluto! Criamos constantemente o mundo, neste exato momento fazemos isso. Tudo vai mudando sempre, isto é criar. "Um tom", Sermão de "um tom". O que é este "um tom"? Mestre Eckart diz, "escutei a palavra do Pai e vou falar para vocês", Ele mesmo tem que se tornar a palavra e a palavra mesma tem que falar! Não é a boca que fala a palavra, a palavra se fala. A palavra secreta, a palavra de Deus, ela mesma fala a palavra - aí está a diferença. O sermão geralmente apresenta muitas histórias, ensinamentos - a boca está falando. Às vezes eu minto, apenas falo o que aprendi, mas o importante aqui é tornar-me as palavras. Isto significa que aquilo que estava oculto aparece, mostra-se, revela-se. Esta é a função das palavras. Então em "Gotheit", origem de Deus, o Pai está lá, escondido. Quem vê Deus tem que morrer. O Pai entrou no Filho, veio a este mundo, apareceu com corpo físico, nós pudemos ver. Se o único Filho de Deus nasce dentro de sua alma, você escuta a palavra secreta e torna-se o Filho de Deus. Escutando a palavra, você recebe todas as potencialidades, todas as forças. Você pode falar a palavra, pois não mais será a boca apenas que fala, você mesmo é a palavra e fala. Nesse momento você vive este mundo realmente, isso é a realização de si próprio. Há um capítulo do Shobogenzo que diz assim, "você sabe pintar a primavera? Então pinte!" Como é isso? Pintou. "Deixe-me ver (...). Ah, isto não é primavera, é flor de cerejeira (...)" - no Japão as cerejeiras florescem na primavera. "Isto não é primavera não, isto é flor de primavera, isto é flor de cerejeira, por favor, pinte a primavera!" Como pode a primavera ser pintada? Nova tentativa. "Isto é flor de ameixeira, não é primavera." Como podemos pintá-la? Entendeu? Estamos vivendo este mundo, vivendo condenados à morte, mas muitos vivem como uma fumaça, como uma faísca, como espuma ou como uma sombra, não estão vivendo não. Para viver realmente, tem que ser capaz de pintar a primavera, e não cerejeiras ou ameixeiras. E preciso pintar a primavera mesmo. Como? O mestre toma então o pincel, "ah, já pintei a primavera". "Como? O que é isto? Isto é a primavera? Isto é flor de cerejeira, isto é flor de ameixeira!?" "Sim, quando a primavera está presente, a flor de ameixeira abre, a flor de cerejeira desabrocha, então, dentro da flor de ameixeira e de cerejeira está presente a primavera!" Dentro de você, de seu corpo, sejam altos ou magros, baixos, gordos, inteligentes, ignorantes, aí está a primavera, a presença de Deus, de Buda. Fora daí não existem nem a primavera, nem Deus, nem Buda - nada encontrará. Vazio apenas, vasto nada Quando Madalena visitou o corpo sem vida de Cristo, encontrou dois anjos. "O que está procurando?", perguntaram eles. "Se você está procurando aquele Jesus Cristo que morreu, não vai encontrar." Mestre Eckart interpreta essa passagem assim: "Deus não é encontrado em nenhum lugar; para a parte mais elevada da alma, Deus não está em lugar algum, mas para a parte inferior da alma, Deus está presente em todos os lugares." Então, em sua própria vida, você, encontrando-se consigo mesmo, pode manifestar a glória de Deus, revelar o que é Deus. Com dificuldade, com sofrimento, com defeitos. É com isso mesmo que você pode mostrar. Muitas pessoas estão constantemente vivendo com a mente no futuro ou no passado. Jovens dizem, "ah, sou muito pobre, preciso estudar, é importante que eu me forme como engenheiro, como médico, como advogado, etc., só assim vou ganhar dinheiro e estarei realizado (...)". Isto é ainda o futuro, ainda não chegou. Os velhos dizem, "ah, eu já fiz muito nessa vida, sou muito importante, tenho cargos importantes". Isso tudo é passado. E como estão agora todos, velhos e moços, no exato momento presente, neste exato instante? Como estão todos, fora do referencial do tempo passado e do tempo futuro, fora da temporariedade, como estão frente à eternidade? Nada podem mostrar, não estão realizados, vivem confusões apenas! Plenitude é preencher tudo aqui e agora. Com isso se chega ao estado. Isso depende da mente. A mente é que faz o sofrimento, a alegria, a felicidade. www.sotozencuritiba.org.br. Texto gentilmente cedido pelo Centro de Estudos Budistas Bodisatva. Abraço. Davi

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