quarta-feira, 11 de maio de 2022

A CULTURA DA PAZ

 

ESPIRITUALIDADE. Texto de Leonardo Boff (1938-  ). A CULTURA DA PAZ. A cultura dominante, hoje mundializada, se estrutura ao redor da vontade de poder que se traduz por vontade de dominação da natureza, do outro, dos povos e dos mercados. Essa é a lógica dos dinossauros que criou a cultura do medo e da guerra. Praticamente em todos os países as festas nacionais e seus heróis são ligados a feitos de guerra e de violência. Os meios de comunicação levam ao paroxismo (apogeu) a magnificação de todo tipo de violência, bem simbolizado nos filmes de Arnold Schwazenegger (1947-) como o “Exterminador do Futuro”. Nessa cultura o militar, o banqueiro e o especulador valem mais do que o poeta, o filósofo e o santo. Nos processos de socialização formal e informal, ela não cria mediações para uma cultura da paz. E sempre de novo faz suscitar a pergunta que, de forma dramática, Albert Einstein (1879-1955) colocou a Sigmund Freud (1856-1939) nos idos de 1932: é possível superar ou controlar a violência? Freud, realisticamente, responde: “É impossível aos homens controlar totalmente o instinto de morte (...). Esfaimados pensamos no moinho que tão lentamente mói que poderíamos morrer de fome antes de receber a farinha”. Sem detalhar a questão, diríamos que por detrás da violência funcionam poderosas estruturas. A primeira delas é o caos sempre presente no processo cosmogênico. Viemos de uma imensa explosão, o big bang. E a evolução comporta violência em todas as suas fases. São conhecidas cerca de 5 grandes dizimações em massa, ocorridas há milhões de anos atrás. Na última, há cerca de 65 milhões de anos, pereceram todos os dinossauros após reinarem, soberanos, 133 milhões de anos. A expansão do universo possui também o significado de ordenar o caos através de ordens cada vez mais complexas e, por isso também, mais harmônicas e menos violentas. Possivelmente a própria inteligência nos foi dada para pormos limites à violência e conferir-lhe um sentido construtivo. Em segundo lugar, somos herdeiros da cultura patriarcal que instaurou a dominação do homem sobre a mulher e criou as instituições do patriarcado assentadas sobre mecanismos de violência como o Estado, as classes, o projeto da tecnológico científico, os processos de produção como objetivação da natureza e sua sistemática depredação. Em terceiro lugar, essa cultura patriarcal gestou a guerra como forma de resolução dos conflitos. Sobre esta vasta base se formou a cultura do capital, hoje globalizada; sua lógica é a competição e não a cooperação, por isso, gera guerras econômicas e políticas e com isso desigualdades, injustiças e violências. Todas estas forças se articulam estruturalmente para consolidar a cultura da violência que nos desumaniza a todos. A essa cultura da violência há que se opor a cultura da paz. Hoje ela é imperativa. É imperativa, porque as forças de destruição estão ameaçando, por todas as partes, o pacto social mínimo sem o qual regredimos a níveis de barbárie. É imperativa porque o potencial destrutivo já montado pode ameaçar toda a biosfera e impossibilitar a continuidade do projeto humano. Ou limitamos a violência e fazemos prevalecer o projeto da paz ou conheceremos, no limite, o destino dos dinossauros. Onde buscar as inspirações à cultura da paz? Mais que imperativos voluntarísticos, é o próprio processo antropogênico a nos fornece indicações objetivas e seguras. A singularidade do 1% de carga genética que nos separa dos primatas superiores reside no fato de que nós, à distinção deles, somos seres sociais e cooperativos. Ao lado de estruturas de agressividade, temos capacidades de afetividade, compaixão, solidariedade e amorização. Hoje é urgente que desentranhemos tais forças para conferir rumo mais benfazejo à história. Toda protelação é insensata. O ser humano é o único ser que pode intervir nos processos da natureza e co pilotar a marcha da evolução. Ele foi criado criador. Dispõe de recursos de reengenharia da violência mediante processos civilizatórios de contenção e uso de racionalidade. A competitividade continua a valer, mas no sentido do melhor e não de destruição do outro. Assim todos ganham e não apenas um. Há muito que filósofos da estatura de Martin Heidegger (1889-1976), resgatando uma antiga tradição que remonta aos tempos do Imperador romano César Augusto (63 AC 14), vêm no cuidado a essência do ser humano. Sem cuidado ele não vive nem sobrevive. Tudo precisa de cuidado para continuar a existir. Cuidado representa uma relação amorosa para com a realidade. Onde vige cuidado de uns para com os outros desaparece o medo, origem secreta de toda violência, como analisou Freud. A cultura da paz começa quando se cultiva a memória e o exemplo de figuras que representam o cuidado e a vivência da dimensão de generosidade que nos habita, como Mahatma Gandhi (1869-1948), Dom Helder Câmara (1909-1999) e Martin Luther King (1929-1968) e outros. Importa fazermos as revoluções moleculares Félix Gattari (1930-1992), começando por nós mesmos. Cada um estabelece como projeto pessoal e coletivo a paz enquanto método e enquanto meta, paz que resulta dos valores da cooperação, do cuidado, da compaixão e da amorosidade, vividos cotidianamente. Qual globalização? Os povos de Porto Alegre – Brasil e os povos de Davos – Suíça e Nova York – Estados Unidos se batem pela globalização. Qual globalização? Os poderosos, e por isso são poderosos, se apropriaram da palavra globalização e lhe impuseram uma significação que serve a seus interesses. É o processo mundial de homogeneização do modo de produção capitalista, de globalização dos mercados e das transações financeiras, do entrelaçamento das redes de comunicação e do controle mundial das imagens e das informações. A lógica que a preside é a competição de todos com todos. Aqui reside o drama bem formulado pelo geneticista francês Albert Jaquard (1925-2013): “O escopo de uma sociedade é o intercâmbio. Uma sociedade cujo motor é a competição, é uma sociedade que me propõe o suicídio. Se me ponho em competição com o outro, não posso intercambiar com ele, devo eliminá-lo, destrui-lo”. Pois é exatamente isso que está ocorrendo com a globalização proposta pelo povo de Davos e Nova York. Ou você está no mercado competitivo, vence e existe. Ou você é derrotado, desiste e inexiste. Entre as vítimas desta lógica se encontra quase metade da humanidade, condenada à impiedade da exclusão e da falta de qualquer sustentabilidade. Pode ser humano um projeto global que elimina os humanos ou os faz mero carvão, lembrando o saudoso Darcy Ribeiro (1922-1997), para a máquina produtivista? Face a essa crueldade, ganha dignidade ética a alternativa proposta pelo povo de Porto Alegre – Brasil. Ele nega esse tipo tiranossáurico de globalização. Propõe outra globalização que passa pela solidariedade a partir de baixo, pela mundialização dos direitos humanos, pela socialização da democracia como valor universal, pelo controle social dos capitais especulativos, passa, outrossim, pela aplicação em todas as economias da taxa Tobin, pela criação de instâncias de governança mundial, pela universalização do cuidado para com a Terra e os ecossistemas e pela valorização da dimensão espiritual do ser humano e do universo. Esse povo de Porto Alegre se faz assim o guardião da humanidade mínima. Afirma a possibilidade real de vivermos juntos como humanos e nos mostra como devemos passar de uma consciência de nação e de classe para uma consciência de espécie e de planeta Terra. Somente esse tipo de globalização constrói a Terra como Casa Comum dos humanos e de toda a comunidade de vida. Essa proposta de globalização se adequa ao que há de mais contemporâneo no pensamento que se orienta pelo novo paradigma científico Pois, vê a globalização como uma nova etapa da Terra e da Humanidade. Os povos estavam em diáspora pelos continentes e enraizados em seus estados-nações. Agora começaram a se mover e se encontram num único lugar, a Terra como Casa Comum. E não temos outra. Já em 1933 escrevia profeticamente Teilhard de Chardin (1881-1955): “A idade das nações já passou. Se não quisermos morrer, é a hora de sacudir os velhos preconceitos e de construir a Terra”. Queremos construir a Terra prolongando o dinamismo que a está forjando há bilhões de anos. Com efeito, somos fruto de um processo evolucionário de l5 bilhões de anos, processo único, complexo, contraditório (caótico e harmônico) e complementar que entrelaça todos os seres em teias de relações, fora das quais ninguém existe. A seta do tempo irreversível vai mostrando uma direção: a emergência de ordens cada vez mais complexas, auto-organizadas, interiorizadas e convergentes de vida e de criatividade. Terra e Humanidade formam uma única entidade, exatamente como os astronautas testemunham quando vêm a Terra de fora da Terra. O ser humano é a Terra que num momento de sua evolução começou a sentir, a pensar, a amar e a venerar. Por isso que homem vem de húmus (substância escura que resulta da decomposição parcial pelos micróbios, do solo, de detritos vegetais e animais), terra fecunda. Agora estamos elaborando essa consciência terrenal e planetária. Esta compreensão nos fornece a base experimental e científica para entendermos a atual globalização em curso. Ela é um momento avançado de um processo anterior e maior de convergência de energias, dinamismos e intencionalidades que estão atuando desde o começo da cosmo gênese e da biogênese. A globalização cria as condições para um salto qualitativo da antropo gênese: a irrupção daquilo que Teilhard de Chardin chamou de noosfera: a criação de uma nova harmonia entre os humanos na qual técnica e poesia, produção e espiritualidade, coração e pensamento encontram uma nova sintonia mais alta e mais sinfônica. O mérito do povo de Davos – Nova York foi o de ter criado as condições materiais para esse salto. Mas ele mesmo não saltou. O mérito do povo de Porto Alegre foi o de ter mostrado sua possibilidade e ensaiado os primeiros movimentos para esse salto. E o salto, finalmente, virá porque ele representa o que deve ser. E o que deve ser tem força. A idade tiranossáurica da globalização. Há milhões de anos, surgiu na África, a partir de um primata superior, o homem sapiens-demens. Milhares e milhares de anos após, começou sua dispersão, primeiro pela Eurásia (é a massa que forma em conjunto a Europa e a Ásia), depois pelas Américas e, por fim, pela Polinésia e Oceania. No final do paleolítico superior, há quarenta mil anos, já ocupava todo o Planeta e chegava a um milhão de pessoas. Criou civilizações e estados-nações. A partir do século XVI começou a volta da diáspora. Nomeadamente a partir de 1492 começou um imenso processo de expansão do Ocidente e de intercâmbio global. Colombo (1492) traz ao conhecimento dos europeus a existência de outras terras habitadas. Fernão de Magalhães (1521) comprova que a Terra é efetivamente redonda e qualquer lugar pode ser alcançado a partir de qualquer lugar. As potências hegemônicas do século XVI, Espanha e Portugal, elaboram, pela primeira vez, o projeto-mundo. Expandem-se por África, América e Ásia. Ocidentalizam o mundo. Esse processo se prolongou no século XIX com o imperialismo ocidental que, a ferro e fogo, submeteu a seus interesses culturais, religiosos e especialmente comerciais todo o mundo conhecido. A carabina e o canhão falaram mais alto que a razão e a religião. O Ocidente europeu se revelou a hiena das gentes. Nós, do extremo-Ocidente, já nascemos globalizados e, por experiência, sabemos o que significa a globalização sentida e sofrida como globo colonização. Esse processo culmina a partir da segunda metade do século XX (1901-2000) com a nova expansão ocidental, sob a hegemonia dos Estados Unidos da América, mediante a tecno ciência, como instrumento de opulência e arma de dominação, mediante as corporações multilaterais e globais que controlam os mercados, mediante uma cultura ocidental, homogeneizadora e desfibradora das culturas regionais, mediante um único modo de produção, capitalista, assentado sobre a concorrência que destrói os laços de sociabilidade e cooperação, mediante um pensamento único, neoliberal, que se entende como a única forma racional de organizar a sociedade. O mais grave, entretanto, é o fato de se ter feito da Terra uma banca de negócios, onde tudo nela é mercantilizado e feito objeto de lucro. Não se respeita sua autonomia e subjetividade enquanto Gaia (na mitologia grega é o nome da deusa Terra). Desconhecem-se nossas raízes telúricas e nossa origem, pois, como seres humanos viemos da Terra. As palavras homem e Adão já o dizem. Homem vem de húmus, (Terra fértil) e Adão vem de Adamah (Terra fecunda), significando o filho da Terra fecunda. Seja como for, começou o processo de globalização que está ainda em curso. Na nossa visão, ele possui três idades que iremos analisar: a globalização tiranossáurica, a globalização humana e a globalização ecozóica. Vamos considerar hoje a primeira idade, hegemônica atualmente. Chamamo-la tiranossáurica porque sua virulência guarda analogia com os tiranossauros, os mais vorazes de todos os dinossauros. Com efeito, a lógica da competição, sem qualquer laivo de cooperação, confere traços de impiedade à globalização imperante. Exclui cerca de metade da humanidade. Suga o sangue das economias dos países fracos e retardatários, lançando cruelmente milhões e milhões na fome e na inanição. Cobra custos ecológicos de tal monta que põe em risco a biosfera, pois polui os ares, envenena os solos, contamina as águas e quimicaliza os alimentos. Não freia sua voracidade tiranossáurica nem face à possibilidade real de impossibilitar o projeto planetário humano. Prefere o risco da morte à redução de seus ganhos materiais. Esse modelo de globalização excludente pode bifurcar a família humana: por um lado, um pequeno grupo de nações opulentas se enchafurdando no consumo material com uma pobreza espiritual e humana espantosa e, por outro, as multidões barbarizadas, entregues à sua própria sorte, carvão para o funcionamento da máquina produtivista e condenadas a morrer antes do tempo, vítimas da infâmia, das doenças dos pobres e da degradação geral da Terra. Há mil razões para se opor a esse tipo de globalização. Ela não pode se eternizar a preço de destruirmos o futuro da espécie. A idade humana da globalização. A globalização tiranossáurica, não obstante suas contradições internas, cria as condições infra estruturais e materiais para as outras formas de globalização: projetou as grandes avenidas de comunicação global, construiu a rede de trocas comerciais e financeiras, incentivou o intercâmbio entre todos os povos, continentes e nações. Sem essas pré condições seria impossível sonhar com globalizações de outra ordem. Agora, estabelecida a globalização material, a globalização humana deve resgatar seus ganhos num quadro maior e mais includente (incluir) que buscar a hegemonia. Ela se processa, simultaneamente, em várias frentes, na antropológica, na política, na ética e na espiritual. Vejamos. Impõe-se mais e mais na consciência coletiva a unidade da espécie humana, sapiens e demens. Por maiores que sejam as diferenças culturais, vigora uma unidade genética básica, temos a mesma constituição anatômica, os mesmos mecanismos psicológicos, os mesmos impulsos espirituais, os mesmos desejos arquetípicos. Embora mudem os códigos de expressão, todos são portadores de cuidado, de emoção, de inteligência, de liberdade, de amorosidade, de expressão artística e de experiência espiritual. Simultaneamente se manifesta também nossa capacidade de mesquinharia, de exclusão do outro, de violência contra a natureza e de destruição. Somos a unidade complexa desses contrários. Mais e mais se difunde a convicção de que cada pessoa é sagrada e sujeito de dignidade. Ela é um fim em si mesmo, um projeto infinito, a face visível do Mistério do mundo, um filho e filha de Deus. Em nome desta dignidade se codificaram os direitos humanos fundamentais, pessoais, sociais e dos povos. Por fim, se elaborou a Dignitas Terrae, traduzida nos direitos da Terra como superorganismo vivo, dos ecossistemas, dos animais e de tudo o que existe e vive. A democracia como valor universal a ser vivido em todas as instâncias humanas penetra lentamente nas visões políticas mundiais. Vale dizer, cada ser humano tem direito de participar do mundo social que ajuda a criar com sua presença e trabalho. O poder deve ser controlado para não se transformar em tirânico. A violência não é o caminho para soluções duradouras, mas o é o diálogo, a tolerância e a busca permanente de convergências na diversidade. A paz é simultaneamente método e meta, como fruto da justiça societária irrenunciável e do cuidado de todos por todos. As instituições devem ser minimamente justas e equitativas. Um consenso mínimo para uma ética global se concentra na humanitas da qual todos e cada um são portadores. Mais que um conceito, a humanitas é um sentimento profundo de que somos, finalmente, irmãos e irmãs, viemos de uma mesma origem, possuímos a mesma natureza físico-química bio sociocultural e espiritual e participamos de um mesmo destino. Devemos tratar a todos humanamente segundo a lei áurea: “não faças ao outro o que não queres que te façam a ti”. A reverência face à vida, o respeito inviolável aos inocentes, a preservação da integridade física e psíquica das pessoas e de todo o criado, o reconhecimento do direito do outro de existir, constituem pilastras básicas sobre as quais se constroem a sociabilidade humana, os valores e o sentido de nossa curta passagem por esse Planeta. Experiências espirituais dos povos originários e das culturas contemporâneas se encontram e intercambiam visões. Por elas o ser humano se religa à Fonte originária de todo o ser, identifica um laço misterioso que perpassa todo o universo e reunifica todas as coisas inter retro conectadas num todo dinâmico e aberto para cima e para frente. São essas experiências espirituais que estruturam nossa subjetividade e nos abrem para horizontes que transcendem o universo. Só nessa dimensão de extrapolação e de superação de toda medida, de todo espaço/tempo e de todo o desejo é que o ser humano se sente realmente humano. Essa lição já nos ensinaram os gregos. A era humana da globalização não ganhou ainda a hegemonia. Mas seus ingredientes são identificáveis e estão fermentando a massa da história e as consciências. Ela vai irromper, gloriosa, um dia. Inaugurará a nova história da família humana que caminhou por tanto tempo em busca de suas origens comuns e de sua Casa materna. A idade ecozoica da globalização. A expressão “ecozoico” foi criada por dois americanos, um cosmólogo, Brian Swimme (1950- ), e por um antropólogo das culturas, Thomas Berry (1914-2009), coautores da mais abalizada História do Universo. É a era que segue o cenozoico, há 65 milhões de anos, quando após a catástrofe que dizimou os dinossauros, os mamíferos conheceram um desenvolvimento nunca antes havido. Nós viemos deles. A idade ecozoica representa a culminação da idade humana da globalização. A característica básica reside no novo acordo de respeito, veneração e mútua colaboração entre Terra e Humanidade. É a idade da ecologia integral, daí o nome ecozoica. Mais e mais conscientizamos o fato de sermos um momento de um processo de bilhões e bilhões de anos. Encontramo-nos agora numa teia de relações vitais das quais somos corresponsáveis. Depois de tantas intervenções nos ritmos da natureza, sem cuidarmos das consequências prejudiciais, nos damos conta de que a revolução agora consiste em preservar o mais que podemos o legado da natureza e usá-lo com responsabilidade. Está nascendo uma nova benevolência para com a Terra. Ela é como uma nave espacial com recursos abundantes, mas limitados. Só com a solidariedade entre todos podemos fazer que esses recursos sejam suficientes para toda a comunidade de vida. Ou cuidamos uns dos outros e juntos cuidamos da Terra ou nave espacial cairá e desaparecemos. Desta ótica surge uma nova ética. Por todos os lados surgem grupos que se orientam pelo novo padrão de comportamento. Representa aquilo que Pierre Teilhard de Chardin chamou de noosfera, aquela esfera na qual as mentes e os corações (sentido grego de noos) entrariam numa sintonia fina, caracterizada pela mutualidade entre todos, pela amorização e pela espiritualização das intencionalidades coletivas. Estas se coordenariam para garantir a paz, a integridade da criação e o substrato material suficiente para todos. Livres e desafogados podemos, então, viver nossa dimensão específica de conviver humanamente, de conjugar trabalho com poesia, eficiência com gratuidade e de poder brincar e louvar como irmãos e irmãs, em casa. Essa consciência de mútua pertença Terra-Humanidade vem reforçada poderosamente pela visão que os astronautas nos possibilitaram. Sigmund Jähn (1937-), ao regressar à Terra, expressou assim a modificação de sua consciência: “Já são ultrapassadas as fronteiras políticas, ultrapassadas também as fronteiras das nações. Somos um único povo e cada um é responsável pela manutenção do frágil equilíbrio da Terra. Somos seus guardiães e devemos cuidar de nosso futuro comum”. Essa percepção da Terra vista fora da Terra dá origem a uma nova sacralidade. Talvez o sentido secreto das viagens ao espaço exterior tenha esse significado profundo, bem expresso por outro astronauta J. P. Allen (1937-): "Discutiu-se muito, os prós e os contras com referência às viagens à Lua; não ouvi ninguém argumentar que deveríamos ir à Lua para poder ver a Terra de lá. Depois de tudo, esta foi seguramente a verdadeira razão de termos ido à Lua”. E de lá da Lua, não há distinção entre Terra e Humanidade. Ambas formam uma única entidade. A Humanidade não está apenas sobre a Terra, ela é a própria Terra que se comove, se volta sobre si mesma, ama, cuida e venera. Transformar essa consciência num estado permanente, sem que precisemos pensar, significa viver já dentro da era ecozoica. A Carta da Terra, pensada a ter o mesmo valor que a Carta dos Direitos Humanos, vem perpassada pela visão ecozoica. Em sua introdução diz: “A humanidade é parte de um vasto universo em evolução. A Terra, nosso lar, está viva com uma comunidade de vida única (…). O espírito de solidariedade humana e de parentesco com toda a vida é fortalecido quando vivemos com reverência o mistério da existência, com gratidão pelo presente da vida, e com humildade considerando o lugar que ocupa o ser humano na natureza (…). A escolha é nossa: formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros, ou arriscar a nossa destruição e a da diversidade da vida”. Essas mudanças, não obstante os obstáculos que a era tiranossáurica cria, estão penetrando na consciência coletiva e irradiando sobre todo o curso da sociedade. A realização da globalização humana e ecozóica representará o fim do exílio. As tribos todas da Terra a partir de agora se encontrarão na grande taba comum, no ilê comunitário, no seio da grande e generosa Mãe Terra. Enfim (...). www.leonardoboff.com.br . Abraço. Davi.

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