APRESENTAÇÃO V
Religião
Afro-brasileira. Candomblé. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Tradução de
Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018). Capítulo I. APRESENTAÇÃO V. É
evidente que não se pode voltar bruscamente ao mundo profano após estas núpcias
místicas. No decorrer da iniciação, a personalidade antiga foi quebrada,
destruída, aniquilada, para ser substituída por outra. O novo eu, nada conhece
do mundo em que deve daí por diante viver; é preciso reaprender tudo. Por outro
lado, a personalidade nova pertence àquele que a fabricou, babalorixá ou
ialorixá, tornando-se, pois, necessário que se reintegre na sociedade
ordinária, que retome seu lugar numa famlía carnal. Finalmente, a iniciação
custa caro, dezenas de contos de réis que é preciso pagar. Daí a cerimônia do
panan, que tem lugar no domingo seguinte à cerimônia de dar o nome, e que
corresponde a uma tripla finalidade: reaprendizagem da vida cotidiana, passagem
da sociedade religiosa para a sociedade doméstica, e finalmente venda de
objetos como uma contribuição da coletividade para as despesas e custo do
ritual. A nova cerimônia que encerra o período de iniciação, faz-nos de certa
maneira passar da tragédia para a comédia. Embora tudo seja a sério - a
transição de um setor da realidade para outro é, efetivamente, algo de sério
que deve ser efetuado segundo todas as normas para que seja eficaz - permite
está yauô manifestar publicamente o delicioso senso de "humor"
africano, que não foi ainda suficientemente estudado. Dada esta multiplicidade
funcional, pode-se distinguir uma série de ritos no panan. Antes mesmo de
reintroduzir a filha de santo no mundo, é preciso primeiramente fazer-lhe
compreender que, mesmo saindo, ela não deixa de pertencer ainda ao candomblé, e
que os sacerdotes, não como sacerdotes, mas como representantes da divindade,
devem ser sempre respeitados e obedecidos. É o ritual do açoite. Os diversos
dignitários do terreiro açoitam sucessiva e simbolicamente a yauô. A este, primeiro
momento, sucede a reaprendizagem das atividades cotidianas: a yauô executa
gestos representativos: cozinhar, lavar roupa, usar o pilão, limpar peixe,
fazer compras na feira, cuidar de sua "toilette", simular o ato
sexual, o parto, ninar uma boneca, passear pela cidade ao braço do marido,
escovar as roupas deste ao voltar para casa (...) e até mesmo fumar, ouvir
rádio, ir à missa. A terceira parte do panan é a "compra" da filha de
santo pela família; sem dúvida para manifestar o caráter guerreiro do ritual,
que é uma espécie de perseguição ou de razia, Melville Jean Herskovits
(1895-1963) descreve-a como uma espécie de caça pelo pai, pelo marido, ou por
um ogan do terreiro denominado "escravo de Ogun". Mas pai ou marido,
que assim tomam posse da yauô, devem resgatá-la dando ao sacerdote em chefe do
candomblé uma soma combinada de antemão. Esta compra pode também tomar a forma
de leilão fictício. Ou enfim, nos santuários Gêge, processa-se ao mesmo tempo
que a venda destilada a recolher fundos e assim foi descrita por Manuel
Raimundo Querino (1851-1923): " (...) arma-se uma quitanda bem sortida de
frutas, carne, peixe, hortaliças, utensílios de uso doméstico, como ferro de
engomar, gamela, lenha, carvão, etc.", a que se acrescentam objetos
fabricados pela yauô durante o período de reclusão; ao comprar estes objetos,
compra-se ao mesmo tempo a filha de santo, ou então - se a venda desta se faz à
parte - o que é obtido com a venda destes objetos serve para pagar uma parte
das despesas da iniciação. Naturalmente, só o pai, o marido se é casada, o
noivo se deve contrair casamento pouco depois, têm o direito de comprar a nova
filha de santo; somente no caso de ela ser órfã e muito criança para se casar é
que outra pessoa pode pagar o preço e adquirir o direito de a levar. Neste
último caso, o comprador é conhecido de antemão pelo babalorixá e foi aceito
para desempenhar tal papel tanto devido às qualidades morais, quanto também
devido à sua situação financeira. Há outro aspecto do panan que caracteriza
muito bem seu papel de rito de transição e que me parece por todos os modos
essencial: enquanto nas outras cerimônias públicas de iniciação a filha de
santo estava em estado de transe, aqui aparece em estado de éré, que é uma
espécie de êxtase calmo e infantil; ora, o éré é considerado como forma
intermediária entre a possessão pelo Orixá e o estado normal. É que o santo
está abandonando progressivamente seu cavalo. Terminada a cerimônia, a filha de
santo também terá readquirido plena consciência, mas dormirá ainda uma noite no
candomblé. E em seguida a conduzem, em grande pompa, à casa daquele que a
comprou. Durante um ano, porém, permanece ela como um ser "marginal",
pertencendo ao mesmo tempo a quem a comprou, isto é, à sua família legal, e ao
sacerdote que a fez. A submissão ao babalorixá fica simbolicamente marcada pelo
uso de um colar especial, o kêlé vulgarmente designado pelo nome de
"gravata do Orixá". Um ano depois ou, nos terreiros mais tolerantes,
três meses apenas depois, vai ela depositá-lo aos pés da pedra de seu santo,
durante uma cerimônia que pode ser pública. Isto não quer dizer que deixe de
obedecer aos sacerdotes do candomblé; mas a obediência se restringe unicamente
ao domínio das obrigações religiosas, a filha de santo está daí por diante
inteiramente "livre" na vida "civil". Com efeito, vimos
atrás que, durante sua estada no aliaché, a yauô não era mais dona de si mesma,
o xaôrô sonoro de seu tornozelo constituindo sinal de inteira sujeição, física
e espiritual, àquele que a fabricava. A sujeição é forte demais para poder
desaparecer de uma só vez; eis porque, assim como o transe vai se tornando éré
antes da volta ao estado normal, a posse da filha de santo pelo seu novo
criador se desfaz pouco a pouco. O abandono do kêlé nada mais constitui do que
a última etapa desta libertação progressiva. Todo candomblé tem uma reserva de
filhas e filhos de santo que podem um dia ser iniciados, ou que podem
desempenhar funções importantes na seita, sem por isso receber as divindades;
são os abiã. Os abiã praticaram os ritos de lavagem das contas e o bori, fazem
parte do candomblé. Nós os consideramos, pois, como formando a parte inferior
da hierarquia sacerdotal Uma vez praticada a cerimônia de iniciação, o
indivíduo se torna yauô ou espôsa da divindade. Trata-se, naturalmente, de um
grau superior ao do abiã, mas não do mais elevado. No decorrer de sua vida,
esta yauô passará efetivamente por toda uma série de metamorfoses, cada qual
marcada por um conhecimento mais amplo dos "segredos" da seita. Se
fizer parte de uma seita gêgê (dahomeana), sete anos depois tonar-se-á vodunsi,
promoção que se tornará pública pelo uso do colar especial, o rungéfé, composto
de pérolas vermelhas e de contas de coral. Ou então será obômin, se fizer parte
de uma nação nagô. Somente depois de se tomar ebômin é que a filha de santo
pode ser escolhida para desempenhar no santuário uma função especializada, além
da de receber o santo, a qual lhe dá autoridade superior à das simples yauô.
Pode por exemplo se tornar dagã ou se é de grau mais recente, sidagã,
especializada na celebração do pade de Exú; pode auxiliar os sacerdotes durante
o serviço religioso, como iyá mêrê; pode caber-lhe a cozinha, devendo preparar
os alimentos especiais das diversas divindades, tornando-se assim iyá bassé; se
tem boa voz e boa memória, será uma iya têbêsê encarregada, nas festas públicas
e privadas, e tomar a iniciativa dos cânticos, escolhendo-os e lançando-os aos
músicos e aos dançarinos. A iyalaxé me parece ter importância ainda maior, pois
é ela, como o nome indica, que toma conta do axé, isto é, das pedras sagradas
do pegi, dos alimentos oferecidos a estas (alimentos que só são mudados cada
semana), da limpeza do santuário. Nesse trabalho, pode sem dúvida se fazer
ajudar e servir pelas yauô, mas toda a responsabilidade é sua. E também, se a
ialorixá ou o babalorixá não habitam o candomblé, é ela que vai morar nele,
como uma espécie de administradora. Mas acima de todas estas funções está a da
"mãe pequena", ou segunda sacerdotisa, chamada em língua africana iya
kêkêrê ou jibonam, a qual substitui a mãe de santo em caso de impedimento e
muitas vezes, mas não obrigatoriamente, toma-lhe o lugar quando morre. Se o
candomblé for dirigido por um homem em lugar de uma mulher, por um
"pai" em lugar de "mãe", seu papel é ainda mais importante.
É a iyá kêkêrê que se ocupa das candidatas à iniciação, que as acompanha ao
banho matinal, lava-as com sabão africano, corta seu cabelo à tesoura, depila
seu corpo, traça o efun, etc. Como se vê, não falei senão das filhas de santo;
são muito mais numerosas do que os homens; todavia, existem também alguns
"filhos de santo". Estes são em geral crianças que se encontravam no
ventre materno no momento em que a mulher se iniciou, considerando-se então que
o filho, por "participação" ao corpo da genitora, é iniciado. Em todo
o caso, do mesmo modo que o posto de "mãe pequena" fica mais
importante quando o terreiro é dirigido por um homem, nos que são dirigidos por
mulher há necessidade de um homem para ajudá-la, e este é o encarregado do altar,
ou pegi-gã. Todavia, o papel pode ser desempenhado por alguém que não tenha
passado pelos ritos de iniciação, que seja simples ogan. Há duas espécies de
ogan. Alguns são escolhidos devido apenas à situação social e financeira,
servindo de protetores à seita com relação às autoridades constituídas;
defendem na contra as possíveis arbitrariedades da polícia; auxiliam-na em caso
de necessidade, lançando mão de seus próprios recursos. Outros, porém,
conservando algo da origem sacerdotal do termo, ougangas (ou sacerdotes, no
Gabon), formam uma espécie de sacerdócio secundário. Há por exemplo o pegi-gã,
de que acabei de falar e que é o presidente do conselho administrativo do
candomblé, o responsável pelo seu pegi; o oxôgun que é o sacrificador; o alabê
que toca o rum e dirige a música. O que define o ogan em oposição aos filhos de
santo não é o fato de deixar de possuir um Orixá (cada um de nós tem sempre o
seu), e sim não poder ser possuído por ele. Todo candomblé compreende
obrigatoriamente um conjunto de pessoas que não podem, de modo nenhum, cair em
transe: os ogan do lado masculino, as ekedy do lado feminino, da mesma forma
que também compreende obrigatoriamente uma confraria das filhas de santo que
entram em êxtase. As ekedy, como vimos, estão encarregadas de auxiliar as
filhas de santo quando caem em transe, ao decorrer das cerimônias públicas. Com
efeito, como poderia o ritual transcorrer em ordem e de acordo com todas as
normas necessárias, se bruscamente uma ekedy, em lugar de cuidar do cavalo de
que é responsável, caísse por terra ao lado dele, sacudida por movimentos
convulsivos, ou se o alabê abandonasse por momentos a música para dançar no
meio da multidão? Mas se nem ogan, nem ekedy podem entrar em transe, existe
mais, além da diferença de sexo, uma relação antitética para com as yauô que os
opõem um ao outro. De fato, cada ogan está ligado a uma filha do mesmo santo
que ele, que é a "sua" filha, que por conseguinte auxilia e protege,
mas que, por sua vez, lhe deve respeito e submissão. A ekedy, ao contrário, é
de certo modo a empregada, a serva piedosa e paciente de sua yauô. Manuel
Querino e eu mesmo já descrevemos detalhadamente o modo pelo qual o ogan é
incorporado à seita. Note-se que não é o sacerdote que o escolhe e sim a
divindade, no decorrer de uma cerimônia pública, por intermédio da yalorixá ou
de uma filha de santo em estado de transe. O futuro ogan é então festejado pelo
público, carregado em triunfo; mas pode ainda recusar, se teme não estar à
altura de seu futuro posto. Aceitando, deve ficar três dias no candomblé para
receber iniciação especial (antigamente, permanecia ali três dias inteiros;
atualmente, permite-se descer à cidade durante o dia, quando tem ocupações
profissionais, mas deve passar as três noites no santuário). A festa de
entronização tem lugar mais tarde, até mesmo seis meses depois, e compreende
obrigatoriamente a fabricação de uma cadeira na qual ele se sentará com toda a
pompa, festa cuja importância se relaciona ao mesmo tempo com a entronização
das yauô, que também devem se sentar num banco novo quando entram no candomblé,
e com o culto dos tronos reais ou sacerdotais encontrados na Africa. Acima dos
ogan, existem ainda, doze obas ou ministros de Xangô, no candomblé de Axê de
Opo Afonjá. Tais ministros, escolhidos entre os ogan mais antigos e mais
estimados do terreiro, constituem, todavia, criação bastante recente de
Martiniano do Bonfim, depois de seu regresso da África onde fora se iniciar no
cargo de babalaô. Ele mesmo conta como efetuou a criação depois de lembrar toda
a sequência dos reis de Oyo; a rivalidade entre Xangô de um lado, o Timin e
Gbonká, de outro; de que maneira Xangô se tornara uma divindade, prossegue: Os
dois guerreiros (Timin e Gbonká) que tinham provocado o desaparecimento de
Xangô, voltaram à sua terra de origem. Os ministros de Xangô, os mangbá,
instituíram então o culto do orixá. (...). Algum tempo depois, formou-se um
conselho de ministros encarregado de manter vivo o culto, que foi organizado
com os doze ministros que o tinham acompanhado à terra, seis à direita e seis à
esquerda. Os da direita eram Abiódún (descendente do rei Abiodun, príncipe),
Onikôyi, Aréssa, Onanxókún, Obá Télá e Olugban. Os da esquerda, Aré, Otun
Onikôyi, Otun Onanxókún, Ekô, Kábá Nnfô e Ossi Onikôvi. Estes ministros - antigos
reis, príncipes ou governadores de territórios conquistados pela bravura de
Xangô - não quiseram deixar se extinguir a lembrança do herói na memória das
gerações. Eis porque, no Centro Santa Cruz do Aché de Opô Monjá, de São Gonçalo
do Retiro, celebrou-se neste ano a festa da entronização dos doze ministros de
Xangô, escolhidos entre os ogans mais velhos e mais prestigiosos do candomblé.
Os ritos de entronização constituem de certa maneira ritos de iniciação do ogan
num grau mais elevado. Sua iniciação é, portanto, mais longa. Quanto as suas
funções não são muito claras. Mas, de luta sem tréguas que contra eles dirigiu
a ialorixá atual, filha de Oxun, até conseguir finalmente impor, embora com
dificuldade, suas ordens, pode-se induzir sem grande risco de erro que a
finalidade principal era, do ponto de vista espiritual, velar pela importância
do culto de Xangô - o que justamente uma esposa de Oxun não podia suportar sem
mágoa, Oxun sendo para ela mais importante do que Xangô. Acrescentemos que,
além desta função espiritual que os torna sucessores brasileiros dos mangbá ou
sacerdotes de Xangô, formam os oba, do ponto de vista material e civil, o
conselho administrativo do Axé de Opo Afonjá. Um informante designou como
"chefes de harém". Mas é preciso atentar para o sentido desta
expressão, ela não significa de modo nenhum direito sexual sobre as filhas de
santo. Quer dizer apenas que, assim como um ogan tem sob suas ordens uma filha
do mesmo Orixá que ele, também os oba tem sob sua autoridade o conjunto de
filhas de santo que pertencem a mesma divindade dele. Livro O Candomblé da
Bahia – Rito Nagô. Abraço. Davi.
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