quinta-feira, 4 de março de 2021

SAMSARA

 

Cinema. Editor do Mosaico. SAMSARA. “Samsara é uma produção independente de 2001, indiana, italiana, francesa e alemã. Dirigido pelo cineasta indiano Pan Nalin. A narrativa fala de um monge budista que busca a iluminação. O protagonista, desde os 5 anos vive num monastério budista, até o momento em que se torna um homem e decide conhecer a vida mundana material. Desse modo, ao se apaixonar, sente grande atração por uma camponesa chamada Pema. O filme mostra uma faceta do misterioso mundo do Tibete; isso numa instigante história de busca profunda. O dilema entre – procurar a verdade única do nirvana ou satisfazer a mil desejos do corpo e da mente de um homem comum (...). Aclamado em toda a Europa e vencedor de diversos festivais de cinema". Samsara não é um filme que digamos, nos comove do início ao fim, contudo por ser uma produção independente se descola de alguns conceitos da filosofia budista; sem perder de vista a essência desta rica tradição. Mesmo com uma proposta de questionar alguns milenares pressupostos dessa  religião, assume esses aspectos numa discussão filosófica conscienciosa, ligada numa referência subjetiva a elementos de pesquisa histórica. Desse modo, os que já apreciam essa filosofia espiritual reconhecerão, que esse foi, no âmago aquilo que o Iluminado Budha disse a seus discípulos em particular, num de seus sermões "a verdade não está fora, a verdade está dentro de você". O Budha nunca arrogou para si a posse única da verdade e nem encorajou seus discípulos a que o fizessem. No entanto em suas predicas pediu que seus seguidores aceitassem as verdades dos outros, sem censurá-los ou menosprezá-los, mostrando um coração complacente e interagindo com essas opiniões divergentes. A proposta do diretor indiano na perspectiva filosófica e cultural, se reverte de coragem e importância, pois passa a caracterizar, enfatizando mais na secularização do roteiro que no enfoque eminentemente espiritual. Este a meu ver foi o diferencial que fez com que o filme recebesse diversos prêmios da crítica especializada, inclusive expandindo a cultura budista pelo – Europa – velho mundo. O cenário é belíssimo, rodado nas majestosas paisagens do Ladakh, nas cordilheiras do Himalaia indiano. O filme começa com uma caravana com dezenas de pessoas indo para um monastério budista levando algumas crianças. Quando alguns olham para o céu percebem uma ave ao alto voando em círculo, e logo depois algo cai em cima de uma espécie de pagode – pavilhão de construção típica, onde alguns povos do oriente rendem culto a seus deuses – altar budista. No Tibete antigo muitas crianças eram levadas à vida religiosa por suas famílias, quem sabe, na intenção de verem seus filhos escolhidos como um Bodhisattva, uma encarnação do Budha. Outras, pela pobreza mesmo, e melhores condições quanto a educação e colocação social. Já que o Budha disse; "Não sou o primeiro Budha que existiu na Terra, e nem serei o último. No tempo devido outro Budha levantar-se-á no mundo, um santo, um ser divinamente Iluminado. Dotado de sabedoria em sua conduta, benigno, conhecendo o universo, um líder incomparável dos homens, um mestre dos anjos e dos mortais". Esse é o Budha Maitreya o renovador do Budismo, o próximo Budha que reiniciará o atual ciclo começado por Sidharta Gautama. Acontecerá quando o ensinamento deste estiver esquecido neste mundo. Supõe-se que isso se dará daqui a aproximadamente uns 30.000 anos no porvir. O jovem Tashi o personagem principal do filme, é encontrado pela caravana numa caverna, tendo meditado por mais de três anos. Retirado por seus párias cortam os seus longos cabelos. Ele toma um banho num rio vestindo um hábito, sendo por eles levado ao monastério. Ao chegarem percebe-se que o local é simples, contudo seguro dentro das limitações da vida religiosa. As crianças introduzidas brincam sem entendem o que foram fazer por lá; e Taishi começa o cotidiano da rotina monástica. Numa das salas há uma grande estátua retratando a face do Budha. O Budismo não têm dogmas, muito menos o conceito cristão de idolatria; a imagem do Budha têm o intuito de trazer a honra e reverência à seus ensinos, e a lembrança de que a ignorância produz sofrimento – samsara, retardando a Iluminação.  Nesse ambiente se desenvolve a crise existencial de Tashi, revelada no conflito, se continuaria na vocação para alcançar a purificação completa e o estado desperto de iluminação ou retornaria à normalidade leiga renunciando a vida religiosa. Tashi tem sonhos eróticos onde é acariciado por uma mulher. Conversa com um monge sobre o ocorrido e este o consola mostrando que as tentações quando rejeitadas são forma de aperfeiçoar nosso dharma – missão divina. O sofrimento, ao contrário, advindo delas demonstram o ciclo do Samsara – sofrimento – pelo qual devemos passar, além da acumulação do carma negativo que deverá ser reparado pela disciplina, na atual vida ou no próximo renascimento. Tashi ao receber uma incumbência de seus superiores, fora do monastério, troca olhares com uma jovem conhecida, entrando na propriedade da família desta. Refletindo sobre esse fato, ao dormir, pela manhã decide abandonar o monastério, seguindo seu próprio caminho pelo mundo. Esse fato é marcado por um belo "ritual" onde Tashi vai a um lago, e despido de suas vestes monásticas toma um banho. Já com vestes normais montado num cavalo e acompanhado por um cão segue à uma região distante. Depara-se com um campo de trigo, dormindo aos arredores. Uma linda jovem da propriedade, Pema, vendo o estranho naquele estado, se compadece dele, trazendo comida e cobertor para passa a noite. Acabam fazendo sexo. Ela fala sobre ele para seu pai, que convencido resolve contratá-lo, pois é tempo de colher a lavoura para ser comercializada. Na região existe um comprador das mercadorias dos fazendeiros, que desonesto, usando uma balança com aferição incorreta rouba na pesagem dos produtos. Além de ameaçar aqueles que não negociarem com ele. Tashi descobre essas falcatruas e junto com seu patrão decide negociar os produtos diretamente na cidade. Retorna com o valor da venda, agora correto, e casa-se com Pema tendo um filho. Quando este nasce para a felicidade da família, a parteira diz: "acaba de renascer mais uma vida". No budismo reencarnação e renascimento são coisas distinta; essa é uma questão de opinião nas tradições orientais. O hinduísmo por falar em espírito universal, entende que a mônada, a centelha divina primordial do ser que evoluirá, até alcançar a consciência cósmica, está presente em todas as consciência, desde a elemental até os avatares e mahatma. O budismo ao tratar do conceito da Vacuidade do Eu e do princípio da Não Existência, ou seja se a nossa própria individualidade – alma no cristianismo – é uma ilusão, Maya. Como essa ilusão pode existir e transferir-se para outro corpo num outro reino. Desse modo preferem o termo transmigração ou renascimento. “Para os budistas, a existência não acaba com a morte. Quando uma pessoa morre, renasce em outro ser vivo. Ao morrer, a mente se desprende do corpo físico e renascerá em outro corpo. Segundo os ensinamentos, o período que se segue à morte é conhecido como – bardo. Existem várias fases desse bardo, e os grandes mestres e praticantes mais realizados, encontram nesse momento da morte e da transição o momento ideal para alcançar a iluminação – neste momento, eles reconhecem a natureza verdadeira da mente e se iluminam. No entanto, nem todos os que morrem têm essa capacidade de alcançar a iluminação no momento da morte. Nesses casos, após a morte, o que se seguirá será todo o processo de transição até um novo renascimento. Os ensinamentos budistas dizem que o carma individual de cada ser é que irá determinar o seu renascimento.  Por carma, podemos entender tudo o que é acumulado e criado com ações, palavras e pensamentos – tanto negativas como positivas. Se na vida anterior, esse ser cometeu muitos atos negativos movido pelo veneno da raiva, seu renascimento será muito doloroso. Ele renascerá como um ser no reino dos infernos. Se na vida anterior, esse ser cometeu muitos atos negativos movido principalmente pelo veneno do apego e da avareza, ele renascerá como um ser no reino dos fantasmas famintos. Se ele cometeu muitos atos cometidos pelo veneno da ignorância, renascerá como um ser no reino dos animais. Além desses reinos, chamados de reinos inferiores, os seres podem também renascer nos três reinos superiores, se em suas vidas tiverem cometido mais atos positivos do que negativos. Assim, renascerão como seres no reino humano se tiverem criado bastante mérito e carma positivo, mas ainda assim com um pouco de ações negativas movidas pelo desejo. No reino dos semideuses eles renascerão se tiverem, além de muito carma positivo, cometido muitos atos negativos movidos pelo veneno da inveja. E renascerão no reino dos deuses, se além de muito carma positivo, tiverem sido manchados pelo veneno do orgulho. De todos os renascimentos, o considerado mais afortunado é o do seres humano: eles têm, na medida certa, condições para criarem mérito e condições positivas, e ao mesmo tempo, podem conhecer o sofrimento que trazem os venenos da mente – o que os torna capazes de ter compaixão por todos os seres vivos”. Fonte Budismo Joia Rara. Uma cena que aparentemente pode chocar-nos, é quando Tashi e Pema tem relações sexuais, e seu filho garoto assiste a esse fato. Isso não é comum entre casais cristãos, tão pouco recomendado, se pensarmos numa ética religiosa. Tashi pela terceira vez tem relacionamento sexual, agora com a melhor amiga de Pema, quando esta vai resolver algumas questões na cidade. Decididamente Tashi não tem escrúpulos morais, e seu mundanismo licencioso assustaria qualquer monge comprometido com a vida religiosa. O desejo, é segundo os ensinamentos dos sutras, um grande inimigo a ser vencido. Incontrolavelmente, muitas vezes, somos enganados pela mente, caindo na teia do apego e exagerada afeição natural. Uma passionalidade que requer meditação constante para controlar o cavalo indomável que muitas vezes a nossa mente se torna. Essa foi a característica criada pelo diretor para definir o mundanismo humano, uma essência impregna em nosso comportamento, que mesmo com a meditação nirvânica não é possível debelar. Teremos sim, condições de resistir as tentações vinda do exterior e também do nosso interior. Isso com muito esforço e perseverança para o desapego da luxúria e concupiscência impregnada em nossa natureza humana  É percebido que Tashi confundia as três joias do Budismo. O Budha, aquele que está desperto. O Dharma, o caminho da compreensão e do amor. A Sangha, a comunidade que vive em consciência e harmonia. Tinha percepção de seu Budha interior, porém quanto aos outros dois itens, seus conceitos eram elementares, e desprovido de argumentação espiritual. Tanto que sua fala como monge, é pobre e sua prática do Dharma não se sobressai em sua experiência particular. Tashi não tomou o caminho da conscienciosa decisão ao entrar para a vida monástica. Tudo indica que foi influenciado por terceiros, não assumindo propriamente a importante decisão. Assim, os conflitos e desviou morais se acentuavam comprometendo sua busca pela verdade e compreensão do Samsara existencial. No meio desse descontrole emocional e mental, resolve retorna para o monastério. Na visão de quem assiste o filme uma decisão temerária e irrefletida. Sem comunicar à sua esposa, na calada da noite, Tashi, foge de sua responsabilidade de marido, abandonando mulher e filho. Esse ponto do roteiro, foi brilhantemente explorado pelo diretor, pois implicitamente traz à luz o tema de Sidharta Gautama. Ele deixando sua esposa Yashodhara e seu filho Rahul enquanto estavam dormindo. Para compreender porque o homem sofre o Samsara, e como libertá-lo dessa situação, abandona o palácio e sua posição de futuro monarca do reino. É interesse que se prestarmos atenção aos fatos subsequente a esse evento, reconheceremos que o indiano diretor Pan Nalin, deixa claro a diferença da atitude de Tashin em relação ao Gautama. Yashodhara, em sua sabedoria aceita a decisão de seu marido Siddharta, se "sacrificando"  para que ele siga o caminho da iluminação para libertar todos os seres do cativeiro do Samsara. Budha compartilhou antes com Yashodara sua decisão de encontrar a libertação para o sofrimento humano. Ela prontamente o apoiou, inclusive anos depois quando o Budha retorna ao palácio, ela torna-se discípula dele, instituindo uma ordem religiosa budista para mulheres. O Budha foi perguntado, depois que alcançou o Nirvana, se ele ainda amava seu filho Rahul, pois Yashodhara havia falecido. Ele disse que o amava muito mais agora. O diálogo ao final de Tashi e Pema, que não entende tal atitude tomada pelo marido, é uma expressão do desconsolo e inconsequência daquele que desrespeitando o outro, desonra e fere o sentimento daquela que dividiu com ele o leito nupcial. Não poderia terminar diferente – lamentavelmente –  a trajetória de Tashi em busca de prazeres transitórios, e sua irresponsabilidade em tratar com as emoções alheias. Ele segue solitário por uma longa estrada, com o propósito de tentar novamente voltar ao monastério. E por sua mesquinhez de caráter, implicitamente, o roteirista deduz que isso não ocorreu, para sua tristeza e desgosto. Ou para que refletisse sob sua condição, tomando agora o caminho da virtuosidade com a intensão de diminuir o carma negativo acumulado em sua trajetória de compromisso com a mundanidade.  O filme está disponível no YouTube com legenda em português e várias outras línguas. Recomenda-se indicativo de 18 anos para apreciar a projeção. Abraço. Davi.

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