quinta-feira, 25 de março de 2021

QUADRO DO INFERNO PAGÃO

 

Espiritismo. www.espirito.org.br. www.espirito.org.br. Texto de Allan Kardec (1804-1869). QUADRO DO INFERNO PAGÃO. 9. Tudo o que conhecemos a respeito do inferno pagão está nas descrições dos poetas, principalmente de Homero e de Virgílio. Por serem descrições poéticas, têm uma limitação quanto à forma. A descrição de Fénelon, em Telêmaco, embora se prenda à mesma fonte quanto às crenças fundamentais, tem a simplicidade mais precisa da prosa e não da poesia. Descrevendo o aspecto lúgubre dos lugares, ressalta o tipo de sofrimento que os culpados suportam e se estende bastante sobre o destino dos maus reis, tendo em vista a instrução de seu aluno real. Por mais popular que seja sua obra, muitas pessoas, sem dúvida, não se lembram ou não refletiram suficientemente sobre ela. Daí reproduzirmos aqui algumas partes, que têm relação direta com o assunto que nos interessa, ou seja, aquelas partes que tratam mais especificamente da penalidade individual. 10. “Entrando, Telêmaco ouviu gemidos inconsoláveis de uma pessoa, que era apenas uma fraca imagem, uma sombra. Qual é – disse ele – seu sofrimento? Quem foi você na Terra? – Eu era Nabofarzan (século VII AC), rei da soberba Babilônia – respondeu a sombra. Todos os povos do Oriente tremiam só de ouvir meu nome. Os babilônicos me adoravam em um templo de mármore, onde eu era representado por uma estátua de ouro, diante da qual se queimavam dia e noite os perfumes da Etiópia. Jamais alguém ousou me contradizer, sem ser punido. A cada dia, inventavam novos prazeres, para tornar minha vida mais deliciosa. Eu era jovem e forte. Oh! Tristeza! Quanta prosperidade eu teria ainda para desfrutar em meu trono! Mas uma mulher que eu amava e que não me amava me fez sentir que eu não era deus: me envenenou e agora não sou mais nada. Ontem, com toda a pompa, colocaram minhas cinzas em uma urna de ouro. Choraram, arrancaram os cabelos, pareciam querer se jogar nas chamas de minha fogueira, para morrer comigo. Vão ainda se lamentar, diante do soberbo túmulo em que depositaram minhas cinzas. Mas ninguém tem pena de mim. Minha lembrança é um horror até mesmo para minha família, e aqui embaixo sofro um tratamento horrível. “Telêmaco, impressionado, perguntou: Você era verdadeiramente feliz, durante seu reinado? Sentia essa doce paz, sem a qual o coração fica apertado e murcho, em meio às delícias? – Não, respondeu o babilônico. Eu nem mesmo sei o que você quer dizer. Os sábios falam dessa paz como um bem único, que eu nunca senti. Meu coração estava sempre agitado por novos desejos, de fé e de esperança. Eu tratava de me aturdir, pelo abalo de minhas paixões, de alimentar essa embriaguez, para torná-la contínua: o menor intervalo de razão tranquila me era muito amargo. Esta é a paz que eu desfrutei. Qualquer outra me parece uma fábula e um sonho. Estes são os bens por que lamento. “Assim falando, o babilônico chorava como um homem enfraquecido pela prosperidade e que não está de forma alguma acostumado a suportar uma constante infelicidade. Tinha a seu lado alguns escravos, mortos para honrar seus funerais. Mercúrio os tinha entregue a Caronte, com seu rei, a quem serviram na Terra e sobre o qual lhes dera um poder absoluto. Estas sombras de escravos não têm mais medo da sombra de Nabofarzan e a mantêm acorrentada, submetendo-a às mais cruéis indignidades. Todos lhe diziam: não éramos homens tanto quanto você? Como você foi tão insensato em se acreditar um deus? Não seria necessário lembrá-lo de que você era da mesma etnia que os outros homens? Outro, para insultá-lo, dizia: você tinha razão em não querer ser considerado como um homem, porque você era um monstro, sem humanidade. Outro dizia: Está bom!!! Onde estão agora seus bajuladores? Você não tem nada a dar, infeliz! Você não pode mais fazer nenhum mal, é escravo de seus próprios escravos, os deuses demoram, mas fazem justiça. “Diante de tão duras palavras, Nabofarzan batia o rosto contra o chão, arrancando os cabelos, em um acesso de raiva e desespero. Mas Caronte incentivava os escravos: arrastem-no pela corrente, levantem-no, contra sua vontade, ele não terá nem mesmo a consolação de esconder sua vergonha. É preciso que todas as sombras do Estige sejam testemunhas, para justificar aos deuses, que por tanto tempo suportaram que este ímpio reinasse sobre a Terra. “Em seguida, ele percebe a seu lado o negro Tártaro, de onde saía uma fumaça negra e espessa, cujo cheiro horrível mataria qualquer ser vivo que dela se aproximasse. Essa fumaça cobria um rio de fogo, com turbilhões de chamas, que pareciam aquelas correntes impetuosas que se lançam dos mais altos rochedos ao fundo dos abismos, fazendo um barulho tão grande, que não se podia ouvir claramente qualquer outra coisa naquele infeliz lugar. “Telêmaco, secretamente animado por Minerva, entra, sem medo, naquele abismo. De início, vê um grande número de homens que tinham vivido nas mais humildes condições e eram punidos por ter procurado riquezas, por meio de fraudes, traições e crueldades. Aí notou muitos ímpios hipócritas que fingiram ser religiosos e usaram a religião como um belo pretexto para satisfazer sua ambição e para se aproveitar de pessoas crédulas. Esses homens, que abusaram da própria virtude, o maior dom dos deuses, eram punidos como os piores de todos. Os filhos que haviam degolado seus pais; as esposas que mancharam as mãos no sangue dos maridos; os traidores que tinham vendido a pátria, violando todos os juramentos, sofriam, apesar de tudo, penas menores que aqueles hipócritas. “Os três juízes do infernais assim o queriam, por esta razão: os hipócritas não se contentam com ser maus como os demais ímpios, porém querem passar por bons e concorrem por sua falsa virtude para a descrença e corrupção da verdade. Os deuses de que eles se aproveitaram e que tornaram desprezíveis para os homens têm prazer em empregar toda sua força, para se vingar dos insultos que receberam. “Ao lado daqueles, aparecem outros homens, que normalmente quase nem se julgariam culpados, mas que os deuses perseguiam sem piedade: são os ingratos, os mentirosos, os aduladores que louvaram o vício, os críticos malévolos, que denegriram a mais pura virtude. Enfim, aqueles que julgaram temerariamente as coisas, sem conhecê-las a fundo, manchando, assim, a reputação de inocentes. “Telêmaco, vendo os três juízes sentados, condenando um homem, ousou perguntar-lhes quais seriam seus crimes. Imediatamente, o condenado gritou: eu jamais fiz qualquer mal, sempre tive prazer em fazer o bem, fui magnânimo, liberal, justo, piedoso, de que podem me acusar? Então, Minos lhe disse: Nada o reprova, sob o ponto de vista dos homens, mas você não devia mais aos deuses que aos homens? De qual justiça se vangloria? Você não faltou a nenhum dever, com relação aos homens, que nada são. Foi virtuoso, mas creditou toda sua virtude a você mesmo e não aos deuses, que lhe deram essa virtude. Queria aproveitar os frutos de sua própria virtude e fechar-se sobre si mesmo: você foi sua própria divindade. Mas os deuses, que tudo fizeram, e tudo fizeram para si mesmos, não podem renunciar a seus direitos. Você os esqueceu, eles o esquecerão, o deixarão entregue a si mesmo, já que você quis ser só você mesmo, sem eles. Procure, então, agora, se puder, a consolação dentro de seu próprio coração. Veja-se agora, separado dos homens que você sempre quis agradar. Veja-se sozinho consigo mesmo, já que você era seu próprio ídolo, aprenda que não há nenhuma verdadeira virtude, sem respeito e amor pelos deuses, a quem você tudo deve. Sua falsa virtude, com que, por muito tempo, você deslumbrou homens fáceis de enganar, vai ser destruída. São cegos – quanto ao bem e quanto ao mal – os homens que julgam os vícios e as virtudes, apenas pelos aspectos que lhes agradam ou incomodam. Aqui, uma luz divina joga por terra todos os seus julgamentos superficiais: muitas vezes, condena o que eles admiram e justifica o que condenam. “Ouvindo tais palavras, o filósofo, como se tivesse sido atingido por um raio, quase não podia se segurar. Transformou-se em desespero a complacência com que ele tinha outrora contemplado sua moderação, coragem e inclinações generosas. Sentir o próprio coração, inimigo dos deuses, se tornou um suplício. Não consegue deixar de olhar a si mesmo, vê a presunção dos julgamentos dos homens, aos quais quis agradar com todos seus atos. Opera-se uma revolução completa em seu interior, como se fossem revolvidas todas suas entranhas. Não se reconhece, não encontra força no coração. Sua consciência, que lhe parecia tão serena, revolta-se contra ele e o repreende amargamente o desvio do caminho e a ilusão de todas as suas virtudes, que nunca tiveram como princípio ou como fim o culto da divindade. Fica perturbado, consternado, cheio de vergonha, remorso e desespero. As Fúrias não o atormentavam mais, porque era suficiente ele ter se voltado para si mesmo, para que seu próprio coração vingasse muitas vezes os deuses desprezados. Não podendo se esconder de si mesmo; procura os lugares mais sombrios, para se esconder dos outros mortos. Procura as trevas e não as encontra, porque uma luz inoportuna o segue por toda parte. Em todos os lugares, raios penetrantes vingam a negligência que ele teve para com a verdade. Tudo o que ele amou se torna odioso, como se fosse a fonte de seus males, que nunca terminarão. E ele se lamenta: Ó insensato que fui: nunca conheci nem os deuses, nem os homens nem a mim mesmo! Nada conheci, já que nunca amei um único e verdadeiro bem, todos os meus passos foram desvios, minha sabedoria era apenas loucura, minha virtude, um orgulho ímpio e cego. Eu era o meu próprio ídolo! “Finalmente, Telêmaco avistou os reis que estavam sendo condenados, por terem abusado do poder. De um lado, uma Fúria vingativa lhe mostrava um espelho, que refletia toda a deformidade de seus vícios. Sem poder desviar os olhos, viam a própria vaidade grosseira e ávida de ridículas bajulações; a dureza que tiveram para com homens a quem deveriam ter feito felizes; a insensibilidade para com a virtude, o medo de compreender a verdade e a predileção pelos fracos e bajuladores. Contemplavam sua desatenção, moleza, indolência, sua desconfiança, o fausto e a magnificência, baseados na ruína dos povos; sua ambição para comprar um pouco de glória inútil, à custa do sangue dos cidadãos. Enfim, sua crueldade, que procura novos prazeres a cada dia, nas lágrimas e desespero de tantos infelizes. Vendo-se no espelho, sentiram- -se mais monstruosos do que a Quimera, vencida por Belerofonte, que a Hidra de Lerna, abatida por Hércules. Mais até que Cérbero, mesmo que este vomitasse por suas três goelas um sangue negro e venenoso, capaz de infectar toda a raça de mortais da Terra. “Ao mesmo tempo, do outro lado, outra Fúria lhes repetia, com insultos, todos os elogios que seus bajuladores lhes tinham dito durante a vida e lhes mostrava outro espelho, em que eles se viam como seriam, com todas as adulações com que eram retratados. A oposição dessas duas pinturas, tão diferentes, era o suplício para suas vaidades. Note-se que os piores entre esses reis eram os que mais bajulações tinham recebido durante a vida. Por isso, os piores são mais temidos do que os bons e exigem, sem vergonha, as covardes adulações dos poetas e oradores. “Eles gemem, nas trevas profundas, onde só percebem os insultos e zombarias que sofrem. Nada ao redor lhes dá algum repouso, nada que ão os contradiga ou confunda, em relação ao que viveram na Terra, onde pretendiam que tudo se fizesse para servi-los. Naquelas profundezas, são entregues a todos os caprichos de alguns escravos, a quem devem devotar uma cruel subserviência. Submetem-se dolorosamente, sem qualquer esperança de amenizar seu cativeiro. Ficam à mercê de seus escravos, que se transformaram em seus tiranos impiedosos, como uma bigorna, sob as marteladas dos Cíclopes, quando Vulcano os apressa para trabalhar, nas fornalhas ardentes do Monte Etna. “Telêmaco viu rostos pálidos, hediondos e consternados. Uma tristeza negra corrói esses criminosos, que têm horror de si mesmos, de que não podem se livrar, porque não podem se livrar de sua própria natureza. Não precisam de outros castigos para seus erros, que esses próprios erros, que enxergam sem parar, com toda sua enormidade, como espectros horríveis, os perseguem. Para se livrarem, procuram uma morte mais poderosa do que a que os separou de seus corpos. Em seu desespero, pedem o socorro de uma morte que apague também todos seus sentimentos e conhecimentos. Pedem aos abismos que os engulam, para se livrarem dos raios da verdade que os perseguem. Mas o que lhe está reservada uma vingança, que destila gota a gota, sem jamais acabar. A verdade que eles temem ver é seu suplício. Mas essa verdade é a única coisa que conseguem ver. Ela se lança sobre eles, sua vista se fere, se despedaça e os arranca de si mesmos. Como um raio, sem nada destruir ao redor, penetra-lhes no fundo das entranhas. “Entre esses seres, que lhes faziam arrepiar os cabelos, Telêmaco viu muitos antigos reis da Lidia, punidos por terem preferido os prazeres de uma vida indolente ao trabalho de amenizar a vida dos povos, que deve ser inerente à realeza. “Esses reis, em sua cegueira, se recriminavam reciprocamente. Um dizia ao outro, que fora seu filho: Eu não lhe recomendei, muitas vezes, durante minha velhice e antes de minha morte, que reparasse os males que causei com minha negligência? – Ah, infeliz pai – dizia o filho – foi você que me perdeu! Foi o seu exemplo que me inspirou o fausto, o orgulho, a voluptuosidade e a dureza para com os homens! Vendo-o governar com tanta incúria, rodeado de frouxos bajuladores, me acostumei a gostar de adulação e de prazeres. Acreditei que, para os reis, os homens eram para os reis o que os cavalos e outras bestas de carga são para os homens: animais que só servem para prestar serviços e comodidades. Você me fez acreditar em tudo isso e, agora, sofro tanto, por tê-lo imitado. E acrescentavam terríveis maldições a essas recriminações, como que possuídos de raiva bastante, para que se dilacerassem uns aos outros. “Ao redor desses reis, ondulavam ainda, como aves noturnas de rapina, as cruéis suspeitas, os inúteis receios e as desconfianças, que vingam os povos, pela dureza de seus reis. E também a fome insaciável de riquezas, a falsa glória, sempre tirânica, e a lassidão que duplica todos os males que sofrem, sem compensação de prazer. “Viam-se muitos desses reis severamente punidos, não por males que tivessem praticado, mas por terem negligenciado o bem que deveriam ter feito. Todos os crimes dos povos, provindos da negligência em obedecer as leis, eram imputados aos reis, que só devem governar para que as leis exerçam seu ministério. Eram-lhes imputadas também todas as desordens que vieram do fausto, do luxo e de todos os outros excessos, que levam o homem a estados violentos, com a tentação de desprezar as leis para adquirir um bem. Tratavam-se com muito rigor os reis que, em vez de serem bons e vigilantes pastores de seus povos, apenas cuidaram de devastar o rebanho como lobos famintos. “Mas o que mais entristeceu Telêmaco foi ver, neste abismo de trevas e de males, um grande número de reis que tinham sido considerados muito bons na Terra e que eram condenados, por se deixarem influenciar por homens maus e ardilosos. Eram punidos pelos males que tinham permitido fazer em nome de sua autoridade. Além disso, muitos desses reis eram tão fracos, que não tinham sido nem bons nem maus. Não tiveram medo de não conhecer a verdade, não tiveram o menor interesse pela virtude e nem o menor prazer de praticar o bem”. Livro O Céu e o Inferno. www.espirito.org.br. Abraço. Davi

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