Espiritismo.
www.espirito.org.br. www.espirito.org.br. Texto de Allan
Kardec (1804-1869). QUADRO DO INFERNO PAGÃO. 9. Tudo o que conhecemos a
respeito do inferno pagão está nas descrições dos poetas, principalmente de
Homero e de Virgílio. Por serem descrições poéticas, têm uma limitação quanto à
forma. A descrição de Fénelon, em Telêmaco, embora se prenda à mesma fonte
quanto às crenças fundamentais, tem a simplicidade mais precisa da prosa e não
da poesia. Descrevendo o aspecto lúgubre dos lugares, ressalta o tipo de
sofrimento que os culpados suportam e se estende bastante sobre o destino dos
maus reis, tendo em vista a instrução de seu aluno real. Por mais popular que
seja sua obra, muitas pessoas, sem dúvida, não se lembram ou não refletiram
suficientemente sobre ela. Daí reproduzirmos aqui algumas partes, que têm
relação direta com o assunto que nos interessa, ou seja, aquelas partes que
tratam mais especificamente da penalidade individual. 10. “Entrando, Telêmaco
ouviu gemidos inconsoláveis de uma pessoa, que era apenas uma fraca imagem, uma
sombra. Qual é – disse ele – seu sofrimento? Quem foi você na Terra? – Eu era
Nabofarzan (século VII AC), rei da soberba Babilônia – respondeu a sombra.
Todos os povos do Oriente tremiam só de ouvir meu nome. Os babilônicos me
adoravam em um templo de mármore, onde eu era representado por uma estátua de
ouro, diante da qual se queimavam dia e noite os perfumes da Etiópia. Jamais
alguém ousou me contradizer, sem ser punido. A cada dia, inventavam novos
prazeres, para tornar minha vida mais deliciosa. Eu era jovem e forte. Oh!
Tristeza! Quanta prosperidade eu teria ainda para desfrutar em meu trono! Mas
uma mulher que eu amava e que não me amava me fez sentir que eu não era deus:
me envenenou e agora não sou mais nada. Ontem, com toda a pompa, colocaram
minhas cinzas em uma urna de ouro. Choraram, arrancaram os cabelos, pareciam
querer se jogar nas chamas de minha fogueira, para morrer comigo. Vão ainda se
lamentar, diante do soberbo túmulo em que depositaram minhas cinzas. Mas
ninguém tem pena de mim. Minha lembrança é um horror até mesmo para minha
família, e aqui embaixo sofro um tratamento horrível. “Telêmaco, impressionado,
perguntou: Você era verdadeiramente feliz, durante seu reinado? Sentia essa
doce paz, sem a qual o coração fica apertado e murcho, em meio às delícias? –
Não, respondeu o babilônico. Eu nem mesmo sei o que você quer dizer. Os sábios
falam dessa paz como um bem único, que eu nunca senti. Meu coração estava
sempre agitado por novos desejos, de fé e de esperança. Eu tratava de me
aturdir, pelo abalo de minhas paixões, de alimentar essa embriaguez, para
torná-la contínua: o menor intervalo de razão tranquila me era muito amargo.
Esta é a paz que eu desfrutei. Qualquer outra me parece uma fábula e um sonho.
Estes são os bens por que lamento. “Assim falando, o babilônico chorava como um
homem enfraquecido pela prosperidade e que não está de forma alguma acostumado
a suportar uma constante infelicidade. Tinha a seu lado alguns escravos, mortos
para honrar seus funerais. Mercúrio os tinha entregue a Caronte, com seu rei, a
quem serviram na Terra e sobre o qual lhes dera um poder absoluto. Estas
sombras de escravos não têm mais medo da sombra de Nabofarzan e a mantêm
acorrentada, submetendo-a às mais cruéis indignidades. Todos lhe diziam: não
éramos homens tanto quanto você? Como você foi tão insensato em se acreditar um
deus? Não seria necessário lembrá-lo de que você era da mesma etnia que os
outros homens? Outro, para insultá-lo, dizia: você tinha razão em não querer
ser considerado como um homem, porque você era um monstro, sem humanidade.
Outro dizia: Está bom!!! Onde estão agora seus bajuladores? Você não tem nada a
dar, infeliz! Você não pode mais fazer nenhum mal, é escravo de seus próprios
escravos, os deuses demoram, mas fazem justiça. “Diante de tão duras palavras,
Nabofarzan batia o rosto contra o chão, arrancando os cabelos, em um acesso de
raiva e desespero. Mas Caronte incentivava os escravos: arrastem-no pela
corrente, levantem-no, contra sua vontade, ele não terá nem mesmo a consolação
de esconder sua vergonha. É preciso que todas as sombras do Estige sejam
testemunhas, para justificar aos deuses, que por tanto tempo suportaram que
este ímpio reinasse sobre a Terra. “Em seguida, ele percebe a seu lado o negro
Tártaro, de onde saía uma fumaça negra e espessa, cujo cheiro horrível mataria
qualquer ser vivo que dela se aproximasse. Essa fumaça cobria um rio de fogo,
com turbilhões de chamas, que pareciam aquelas correntes impetuosas que se
lançam dos mais altos rochedos ao fundo dos abismos, fazendo um barulho tão
grande, que não se podia ouvir claramente qualquer outra coisa naquele infeliz
lugar. “Telêmaco, secretamente animado por Minerva, entra, sem medo, naquele
abismo. De início, vê um grande número de homens que tinham vivido nas mais
humildes condições e eram punidos por ter procurado riquezas, por meio de
fraudes, traições e crueldades. Aí notou muitos ímpios hipócritas que fingiram
ser religiosos e usaram a religião como um belo pretexto para satisfazer sua
ambição e para se aproveitar de pessoas crédulas. Esses homens, que abusaram da
própria virtude, o maior dom dos deuses, eram punidos como os piores de todos.
Os filhos que haviam degolado seus pais; as esposas que mancharam as mãos no
sangue dos maridos; os traidores que tinham vendido a pátria, violando todos os
juramentos, sofriam, apesar de tudo, penas menores que aqueles hipócritas. “Os
três juízes do infernais assim o queriam, por esta razão: os hipócritas não se
contentam com ser maus como os demais ímpios, porém querem passar por bons e
concorrem por sua falsa virtude para a descrença e corrupção da verdade. Os
deuses de que eles se aproveitaram e que tornaram desprezíveis para os homens
têm prazer em empregar toda sua força, para se vingar dos insultos que
receberam. “Ao lado daqueles, aparecem outros homens, que normalmente quase nem
se julgariam culpados, mas que os deuses perseguiam sem piedade: são os
ingratos, os mentirosos, os aduladores que louvaram o vício, os críticos
malévolos, que denegriram a mais pura virtude. Enfim, aqueles que julgaram
temerariamente as coisas, sem conhecê-las a fundo, manchando, assim, a
reputação de inocentes. “Telêmaco, vendo os três juízes sentados, condenando um
homem, ousou perguntar-lhes quais seriam seus crimes. Imediatamente, o
condenado gritou: eu jamais fiz qualquer mal, sempre tive prazer em fazer o
bem, fui magnânimo, liberal, justo, piedoso, de que podem me acusar? Então,
Minos lhe disse: Nada o reprova, sob o ponto de vista dos homens, mas você não
devia mais aos deuses que aos homens? De qual justiça se vangloria? Você não
faltou a nenhum dever, com relação aos homens, que nada são. Foi virtuoso, mas
creditou toda sua virtude a você mesmo e não aos deuses, que lhe deram essa
virtude. Queria aproveitar os frutos de sua própria virtude e fechar-se sobre
si mesmo: você foi sua própria divindade. Mas os deuses, que tudo fizeram, e
tudo fizeram para si mesmos, não podem renunciar a seus direitos. Você os
esqueceu, eles o esquecerão, o deixarão entregue a si mesmo, já que você quis
ser só você mesmo, sem eles. Procure, então, agora, se puder, a consolação
dentro de seu próprio coração. Veja-se agora, separado dos homens que você
sempre quis agradar. Veja-se sozinho consigo mesmo, já que você era seu próprio
ídolo, aprenda que não há nenhuma verdadeira virtude, sem respeito e amor pelos
deuses, a quem você tudo deve. Sua falsa virtude, com que, por muito tempo,
você deslumbrou homens fáceis de enganar, vai ser destruída. São cegos – quanto
ao bem e quanto ao mal – os homens que julgam os vícios e as virtudes, apenas
pelos aspectos que lhes agradam ou incomodam. Aqui, uma luz divina joga por
terra todos os seus julgamentos superficiais: muitas vezes, condena o que eles
admiram e justifica o que condenam. “Ouvindo tais palavras, o filósofo, como se
tivesse sido atingido por um raio, quase não podia se segurar. Transformou-se
em desespero a complacência com que ele tinha outrora contemplado sua
moderação, coragem e inclinações generosas. Sentir o próprio coração, inimigo
dos deuses, se tornou um suplício. Não consegue deixar de olhar a si mesmo, vê a
presunção dos julgamentos dos homens, aos quais quis agradar com todos seus
atos. Opera-se uma revolução completa em seu interior, como se fossem
revolvidas todas suas entranhas. Não se reconhece, não encontra força no
coração. Sua consciência, que lhe parecia tão serena, revolta-se contra ele e o
repreende amargamente o desvio do caminho e a ilusão de todas as suas virtudes,
que nunca tiveram como princípio ou como fim o culto da divindade. Fica
perturbado, consternado, cheio de vergonha, remorso e desespero. As Fúrias não
o atormentavam mais, porque era suficiente ele ter se voltado para si mesmo,
para que seu próprio coração vingasse muitas vezes os deuses desprezados. Não
podendo se esconder de si mesmo; procura os lugares mais sombrios, para se esconder
dos outros mortos. Procura as trevas e não as encontra, porque uma luz
inoportuna o segue por toda parte. Em todos os lugares, raios penetrantes
vingam a negligência que ele teve para com a verdade. Tudo o que ele amou se
torna odioso, como se fosse a fonte de seus males, que nunca terminarão. E ele
se lamenta: Ó insensato que fui: nunca conheci nem os deuses, nem os homens nem
a mim mesmo! Nada conheci, já que nunca amei um único e verdadeiro bem, todos
os meus passos foram desvios, minha sabedoria era apenas loucura, minha
virtude, um orgulho ímpio e cego. Eu era o meu próprio ídolo! “Finalmente,
Telêmaco avistou os reis que estavam sendo condenados, por terem abusado do
poder. De um lado, uma Fúria vingativa lhe mostrava um espelho, que refletia
toda a deformidade de seus vícios. Sem poder desviar os olhos, viam a própria
vaidade grosseira e ávida de ridículas bajulações; a dureza que tiveram para
com homens a quem deveriam ter feito felizes; a insensibilidade para com a
virtude, o medo de compreender a verdade e a predileção pelos fracos e
bajuladores. Contemplavam sua desatenção, moleza, indolência, sua desconfiança,
o fausto e a magnificência, baseados na ruína dos povos; sua ambição para
comprar um pouco de glória inútil, à custa do sangue dos cidadãos. Enfim, sua
crueldade, que procura novos prazeres a cada dia, nas lágrimas e desespero de
tantos infelizes. Vendo-se no espelho, sentiram- -se mais monstruosos do que a
Quimera, vencida por Belerofonte, que a Hidra de Lerna, abatida por Hércules.
Mais até que Cérbero, mesmo que este vomitasse por suas três goelas um sangue
negro e venenoso, capaz de infectar toda a raça de mortais da Terra. “Ao mesmo
tempo, do outro lado, outra Fúria lhes repetia, com insultos, todos os elogios
que seus bajuladores lhes tinham dito durante a vida e lhes mostrava outro
espelho, em que eles se viam como seriam, com todas as adulações com que eram
retratados. A oposição dessas duas pinturas, tão diferentes, era o suplício
para suas vaidades. Note-se que os piores entre esses reis eram os que mais
bajulações tinham recebido durante a vida. Por isso, os piores são mais temidos
do que os bons e exigem, sem vergonha, as covardes adulações dos poetas e
oradores. “Eles gemem, nas trevas profundas, onde só percebem os insultos e zombarias
que sofrem. Nada ao redor lhes dá algum repouso, nada que ão os contradiga ou
confunda, em relação ao que viveram na Terra, onde pretendiam que tudo se
fizesse para servi-los. Naquelas profundezas, são entregues a todos os
caprichos de alguns escravos, a quem devem devotar uma cruel subserviência.
Submetem-se dolorosamente, sem qualquer esperança de amenizar seu cativeiro.
Ficam à mercê de seus escravos, que se transformaram em seus tiranos
impiedosos, como uma bigorna, sob as marteladas dos Cíclopes, quando Vulcano os
apressa para trabalhar, nas fornalhas ardentes do Monte Etna. “Telêmaco viu
rostos pálidos, hediondos e consternados. Uma tristeza negra corrói esses
criminosos, que têm horror de si mesmos, de que não podem se livrar, porque não
podem se livrar de sua própria natureza. Não precisam de outros castigos para
seus erros, que esses próprios erros, que enxergam sem parar, com toda sua
enormidade, como espectros horríveis, os perseguem. Para se livrarem, procuram
uma morte mais poderosa do que a que os separou de seus corpos. Em seu
desespero, pedem o socorro de uma morte que apague também todos seus
sentimentos e conhecimentos. Pedem aos abismos que os engulam, para se livrarem
dos raios da verdade que os perseguem. Mas o que lhe está reservada uma
vingança, que destila gota a gota, sem jamais acabar. A verdade que eles temem
ver é seu suplício. Mas essa verdade é a única coisa que conseguem ver. Ela se
lança sobre eles, sua vista se fere, se despedaça e os arranca de si mesmos.
Como um raio, sem nada destruir ao redor, penetra-lhes no fundo das entranhas.
“Entre esses seres, que lhes faziam arrepiar os cabelos, Telêmaco viu muitos
antigos reis da Lidia, punidos por terem preferido os prazeres de uma vida
indolente ao trabalho de amenizar a vida dos povos, que deve ser inerente à
realeza. “Esses reis, em sua cegueira, se recriminavam reciprocamente. Um dizia
ao outro, que fora seu filho: Eu não lhe recomendei, muitas vezes, durante
minha velhice e antes de minha morte, que reparasse os males que causei com
minha negligência? – Ah, infeliz pai – dizia o filho – foi você que me perdeu!
Foi o seu exemplo que me inspirou o fausto, o orgulho, a voluptuosidade e a
dureza para com os homens! Vendo-o governar com tanta incúria, rodeado de
frouxos bajuladores, me acostumei a gostar de adulação e de prazeres. Acreditei
que, para os reis, os homens eram para os reis o que os cavalos e outras bestas
de carga são para os homens: animais que só servem para prestar serviços e
comodidades. Você me fez acreditar em tudo isso e, agora, sofro tanto, por
tê-lo imitado. E acrescentavam terríveis maldições a essas recriminações, como
que possuídos de raiva bastante, para que se dilacerassem uns aos outros. “Ao
redor desses reis, ondulavam ainda, como aves noturnas de rapina, as cruéis
suspeitas, os inúteis receios e as desconfianças, que vingam os povos, pela
dureza de seus reis. E também a fome insaciável de riquezas, a falsa glória,
sempre tirânica, e a lassidão que duplica todos os males que sofrem, sem
compensação de prazer. “Viam-se muitos desses reis severamente punidos, não por
males que tivessem praticado, mas por terem negligenciado o bem que deveriam
ter feito. Todos os crimes dos povos, provindos da negligência em obedecer as
leis, eram imputados aos reis, que só devem governar para que as leis exerçam
seu ministério. Eram-lhes imputadas também todas as desordens que vieram do
fausto, do luxo e de todos os outros excessos, que levam o homem a estados
violentos, com a tentação de desprezar as leis para adquirir um bem.
Tratavam-se com muito rigor os reis que, em vez de serem bons e vigilantes
pastores de seus povos, apenas cuidaram de devastar o rebanho como lobos
famintos. “Mas o que mais entristeceu Telêmaco foi ver, neste abismo de trevas
e de males, um grande número de reis que tinham sido considerados muito bons na
Terra e que eram condenados, por se deixarem influenciar por homens maus e
ardilosos. Eram punidos pelos males que tinham permitido fazer em nome de sua
autoridade. Além disso, muitos desses reis eram tão fracos, que não tinham sido
nem bons nem maus. Não tiveram medo de não conhecer a verdade, não tiveram o
menor interesse pela virtude e nem o menor prazer de praticar o bem”. Livro O
Céu e o Inferno. www.espirito.org.br.
Abraço. Davi
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