Judaísmo. www.pt.chabad.org. Por
Rabino Jonathan Sacks. O NASCIMENTO DO ÓDIO MAIS ANTIGO DO MUNDO. “Vá e aprende
o que Lavan (Labão), o arameu, quis fazer a nosso pai Yaacov. O faraó fez seu
decreto apenas sobre os homens, enquanto Lavan procurou destruir a todos”. Essa
passagem da Hagadá de Pessach - evidentemente baseada na parashá desta semana -
é extraordinariamente difícil de entender. Primeiro, é um comentário sobre a
frase em Devarim, Arami oved avi. Como a maioria esmagadora dos comentaristas
apontam, o significado dessa frase é “meu pai era um Arameu errante”, uma
referência a Yaacov, que escapou de Aram [= Síria, uma referência a Haran onde
Lavan viveu], ou a Avraham, que deixou Aram em consequência do chamado de D’us
para viajar para a terra de Canaã. Isso não significa que “um arameu [= Labão]
tentou destruir meu pai”. Alguns comentaristas leram dessa forma, mas quase
certamente eles só o fizeram por causa dessa passagem na Hagadá. Em segundo
lugar, em parte alguma na parashá encontramos que Lavan realmente tentou
destruir Yaacov. Ele o enganou, tentou explorá-lo e o perseguiu quando ele
fugiu. Quando estava prestes a alcançar Yaacov, D’us lhe apareceu num sonho à
noite e disse: “Tenha muito cuidado para não dizer nada, bom ou mal, a Yaacov”
(Bereshit 31:22). Quando Lavan se queixa do fato de que Yaacov estava tentando
escapar, Yaacov responde: “Vinte anos trabalhei para você em sua propriedade -
quatorze anos por suas duas filhas, e seis anos para parte de seus rebanhos.
Você mudou meu salário dez vezes!” (31:41). Tudo isso sugere que Lavan se
comportou escandalosamente contra Yaacov, tratando-o como um trabalhador não
remunerado, quase um escravo, mas não que ele tentou “destruí-lo” - para
matá-lo como o Faraó tentou matar todos os filhos israelitas. Terceiro: a
Hagadá e o serviço do seder no qual surge o texto, é sobre como os egípcios
escravizaram e praticaram genocídio lento contra os israelitas e como D’us os
salvou da escravidão e da morte. Por que procurar diminuir toda essa narrativa
dizendo que, na verdade, o decreto do Faraó não era tão ruim, já que o de Lavan
foi pior? Isso parece não fazer sentido, nem em termos do tema central da
Hagadá, nem em relação aos fatos reais registrados no texto bíblico. Como,
então, devemos compreendê-lo? Talvez a resposta seja essa. O comportamento de
Lavan é o paradigma dos antissemitas através dos tempos. Não foi tanto ao que
Lavan fez que a Hagadá está se referindo, mas ao que seu comportamento deu
origem, século após século. Como assim? Lavan começa fingindo-se de amigo. Ele
oferece refúgio a Yaacov quando está fugindo de Esav, que jurou matá-lo. No
entanto, verifica-se que seu comportamento é menos generoso e muito mais
interesseiro e calculista. Yaacov trabalha para ele sete anos por Rachel.
Então, na noite de núpcias, Lavan substitui Rachel por Lea, de modo que, para
casar com Rachel, Yaacov foi obrigado por Lavan a trabalhar para ele, em
pagamento, por mais sete anos. Quando seu filho com Rachel, Yossef, nasceu,
Yaacov tentou partir com sua família. Lavan protestou. Yaacov trabalhou mais
seis anos, e então percebeu que a situação era insustentável. Os filhos de
Lavan o acusaram de ter enriquecido às expensas de Lavan. Yaacov percebe que o
próprio Lavan está se tornando hostil. Rachel e Lea concordam, dizendo: “Ele
nos trata como estranhas! Ele nos vendeu e gastou o dinheiro!” (31:14-15). Yaacov
percebe que não há nada que ele possa fazer ou dizer que persuadirá Lavan a
deixá-los partir. Ele não tem escolha a não ser fugir. Lavan então o persegue
e, se não fosse o aviso de D’us na noite anterior à sua chegada, não há dúvida
de que ele teria forçado Jyaacov a voltar e viver o resto de sua vida como seu
empregado sem remuneração. Conforme ele diz a Yaacov no dia seguinte: “As
filhas são minhas filhas! Os filhos são meus filhos! Os rebanhos são meus
rebanhos! Tudo o que você vê é meu!” (31:43). Acontece que tudo o que ele
aparentemente tinha dado a Yaacov, em sua própria mente, ele não tinha dado de
fato. Lavan trata Yaacov como sua propriedade. Ele é uma não-pessoa. Em seus
olhos, Yaacov não tem direitos, não há existência independente. Ele deu a
Yaacov suas filhas em casamento, mas ainda afirma que elas e seus filhos
pertencem a ele, não a Yaacov. Ele ainda insistiu que “os rebanhos são os meus
rebanhos”. O que desperta sua raiva é que Yaacov mantém sua dignidade e independência.
Diante de uma existência impossível como escravo de seu sogro, Yaacov sempre
encontra uma maneira de continuar. Sim, ele foi enganado por sua amada Rachel,
mas ele trabalha para que ele possa se casar com ela também. Sim, ele foi
forçado a trabalhar por nada, mas ele usa seu conhecimento superior na criação
de animais para propor um acordo que lhe permitirá construir rebanhos próprios,
os quais lhe permitiriam manter o que é agora uma grande família. Yaacov
recusa-se a ser derrotado. Envolvido por todos os lados, ele encontra uma
saída. Essa é a grandeza de Yaacov. Seus métodos não são aqueles que ele teria
escolhido em outras circunstâncias. Ele tem que superar um adversário
extremamente esperto. Mas se recusa a ser derrotado, ou esmagado e desmoralizado.
Em uma situação aparentemente impossível, Yaacov mantém sua dignidade,
independência e liberdade. Ele não é escravo do homem. Lavan é, de fato, o
primeiro antissemita. Depois de anos e anos os judeus procuraram refúgio
daqueles que, como Esav, procuraram matá-los. As nações que lhes deram refúgio
pareciam, a princípio, benfeitoras. Mas elas exigiram um preço. Elas viram nos
judeus pessoas que as tornariam ricas. Onde quer que os judeus fossem,
trouxeram prosperidade aos seus anfitriões. No entanto, eles se recusaram a ser
meros bens móveis. Eles se recusaram a ser detidos. Eles tinham sua própria
identidade e estilo de vida. Eles insistiram no direito humano básico de ser
livre. As sociedades de acolhimento então se voltaram contra eles. Alegaram que
os judeus as estavam explorando, em vez do fato, que eram elas que na verdade
estavam explorando os judeus. E quando os judeus conseguiram, as acusaram de
roubo: “Os rebanhos são meus rebanhos! Tudo o que você vê é meu!” Elas
esqueceram que os judeus haviam contribuído maciçamente para a prosperidade
nacional. O fato dos judeus terem guardado respeito próprio, alguma
independência, que eles também haviam prosperado, não as tornou apenas
invejosas, mas irritadas. Foi quando se tornou perigoso ser judeu. Lavan foi o
primeiro a mostrar essa síndrome, mas não o último. Aconteceu novamente no
Egito depois da morte de Yossef. Aconteceu sob os gregos e romanos, os impérios
cristãos e muçulmanos da Idade Média, as nações europeias do século XIX e
início do século XX e depois da Revolução Russa. Em seu fascinante livro World
on Fire, Amy Chua argumenta que o ódio étnico sempre será dirigido pela
sociedade de acolhimento contra qualquer minoria conspícua e bem-sucedida.
Todas as três condições devem estar presentes: 1.O grupo odiado deve ser uma
minoria ou as pessoas terão medo de atacá-lo. 2. Deve ser bem sucedido ou as
pessoas não vão invejá-lo, apenas sentir desprezo por ele. 3. Deve ser notável
ou as pessoas não darão a mínima atenção. Os judeus tendiam a se encaixar em
todos os três. É por isso que eles foram odiados. E começou com Yaacov durante
sua estadia com Lava. Ele era uma minoria, superada em número pela família de
Lavan. Ele foi bem sucedido, e foi notável: você podia vê-lo olhando para seus
rebanhos. O que os sábios estão dizendo na Hagadá agora se torna claro. O faraó
era um inimigo único dos judeus, mas o espírito de Lavan persiste em existir,
de uma forma ou de outra, época após época. A síndrome ainda existe hoje. Como
observa Amy Chua, Israel no contexto do Oriente Médio é uma minoria conspícua e
bem-sucedida. É um país pequeno, uma minoria; É bem sucedido e o é de maneira
evidente. De alguma forma, um pequeno país com poucos recursos naturais, excede
seus vizinhos. O resultado é inveja que se transforma em raiva , que se torna
ódio. Onde começou? Com Lavan. Dito isso, começamos a ver Yaacov sob uma nova
luz. Ele representa as minorias e as pequenas nações em todos os lugares.
Yaacov é a recusa de deixar grandes potências esmagar os poucos, os fracos, os
refugiados. Yaacov recusa-se a definir-se como um escravo, propriedade de outra
pessoa. Ele mantém sua dignidade e liberdade interior. Ele contribui para a
prosperidade de outras pessoas, mas ele derrota todas as tentativas de ser
explorado. Yaacov é a voz que diz: “Eu também sou humano. Eu também tenho
direitos. Eu também sou livre.” Se Lavan é o eterno paradigma do ódio às
minorias conspícuas, Yaacov é o paradigma eterno da capacidade humana de
sobreviver, superar-se ao ódio dos outros., Yaacov se torna a voz da esperança
na conversa da humanidade, a prova viva de que o ódio nunca ganha alcança a
vitória, mas a liberdade sim.
Referência:
Texto original: “THE BIRTH OF THE WORLD’S OLDEST HATE” por Rabino Jonathan
Sacks. Tradução Rachel Klinge Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema.
www.pt.chabad.org. Abraço. Davi
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