domingo, 21 de junho de 2020

II. SOBRE A CHAMADA À SANTIDADE NO MUNDO ATUAL


Cristianismo. www.vatican.va. Exortação Apostólica. GAUDETE ET EXSULTATE. Do Santo Padre Francisco. II. SOBRE A CHAMADA À SANTIDADE NO MUNDO ATUAL. 85. É verdade que não há amor sem obras de amor, mas esta bem-aventurança lembra-nos que o Senhor espera uma dedicação ao irmão que brote do coração, pois «ainda que eu distribua todos os meus bens e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, de nada me vale» (1 Cor 13, 3). Também vemos, no Evangelho de Mateus, que é «o que provém do coração (…) que torna o homem impuro» (15, 18), porque de lá procedem os homicídios, os roubos, os falsos testemunhos (cf. 15, 19). Nas intenções do coração, têm origem os desejos e as decisões mais profundas que efetivamente nos movem. 86. Quando o coração ama a Deus e ao próximo (cf. Mt 22, 36-40), quando isto é a sua verdadeira intenção e não palavras vazias, então esse coração é puro e pode ver a Deus. São Paulo lembra, em pleno hino da caridade, que «vemos como num espelho, de maneira confusa» (1 Cor 13, 12), mas, à medida que reinar verdadeiramente o amor, tornar-nos-emos capazes de ver «face a face» (1 Cor 13, 12). Jesus promete que as pessoas de coração puro «verão a Deus». Manter o coração limpo de tudo o que mancha o amor: isto é santidade. «Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus» 87. Esta bem-aventurança faz-nos pensar nas numerosas situações de guerra que perduram. Da nossa parte, é muito comum sermos causa de conflitos ou, pelo menos, de incompreensões. Por exemplo, quando ouço qualquer coisa sobre alguém e vou ter com outro e lho digo; e até faço uma segunda versão um pouco mais ampla e espalho-a. E, se o dano que consigo fazer é maior, até parece que me causa maior satisfação. O mundo das murmurações, feito por pessoas que se dedicam a criticar e destruir, não constrói a paz. Pelo contrário, tais pessoas são inimigas da paz e, de modo nenhum, bem-aventuradas.[73] 88. Os pacíficos são fonte de paz, constroem paz e amizade social. Àqueles que cuidam de semear a paz por todo o lado, Jesus faz-lhes uma promessa maravilhosa: «serão chamados filhos de Deus» (Mt 5, 9). Aos discípulos, pedia-lhes que, ao chegar a uma casa, dissessem: «a paz esteja nesta casa!» (Lc 10, 5). A Palavra de Deus exorta cada crente a procurar, juntamente «com todos», a paz (cf. 2 Tim 2, 22), pois «é com a paz que uma colheita de justiça é semeada pelos obreiros da paz» (Tg 3, 18). E na nossa comunidade, se alguma vez tivermos dúvidas acerca do que se deve fazer, «procuremos aquilo que leva à paz» (Rm 14, 19), porque a unidade é superior ao conflito.[74] 89. Não é fácil construir esta paz evangélica que não exclui ninguém; antes, integra mesmo aqueles que são um pouco estranhos, as pessoas difíceis e complicadas, os que reclamam atenção, aqueles que são diferentes, aqueles que são muito fustigados pela vida, aqueles que cultivam outros interesses. É difícil, requerendo uma grande abertura da mente e do coração, uma vez que não se trata de «um consenso de escritório ou uma paz efémera para uma minoria feliz»[75] nem de «um projeto de poucos para poucos».[76] Também não pretende ignorar ou dissimular os conflitos, mas «aceitar suportar o conflito, resolvê-lo e transformá-lo no elo de ligação de um novo processo».[77] Trata-se de ser artesãos da paz, porque construir a paz é uma arte que requer serenidade, criatividade, sensibilidade e destreza. Semear a paz ao nosso redor: isto é santidade. «Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céu» 90. O próprio Jesus sublinha que este caminho vai contracorrente, a ponto de nos transformar em pessoas que questionam a sociedade com a sua vida, pessoas que incomodam. Jesus lembra as inúmeras pessoas que foram, e são, perseguidas simplesmente por ter lutado pela justiça, ter vivido os seus compromissos com Deus e com os outros. Se não queremos afundar numa obscura mediocridade, não pretendamos uma vida cómoda, porque, «quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la» (Mt 16, 25). 91. Para viver o Evangelho, não podemos esperar que tudo à nossa volta seja favorável, porque muitas vezes as ambições de poder e os interesses mundanos jogam contra nós. São João Paulo II declarava «alienada a sociedade que, nas suas formas de organização social, de produção e de consumo, torna mais difícil a realização [do] dom [de si mesmo] e a constituição [da] solidariedade inter-humana».[78] Numa tal sociedade alienada, enredada numa trama política, mediática, económica, cultural e mesmo religiosa, que estorva o autêntico desenvolvimento humano e social, torna-se difícil viver as bem-aventuranças, podendo até a sua vivência ser mal vista, suspeita, ridicularizada. 92. A cruz, especialmente as fadigas e os sofrimentos que suportamos para viver o mandamento do amor e o caminho da justiça, é fonte de amadurecimento e santificação. Lembremo-nos disto: quando o Novo Testamento fala dos sofrimentos que é preciso suportar pelo Evangelho, refere-se precisamente às perseguições (cf. At 5, 41; Flp 1, 29; Col 1, 24; 2 Tm 1, 12; 1 Ped 2, 20; 4, 14-16; Ap 2, 10). 93. Fala-se, porém, das perseguições inevitáveis, não daquelas que nós próprios podemos provocar com um modo errado de tratar os outros. Um santo não é uma pessoa excêntrica, distante, que se torna insuportável pela sua vaidade, negativismo e ressentimento. Não eram assim os Apóstolos de Cristo. O livro dos Atos refere, com insistência, que eles gozavam da simpatia «de todo o povo» (2, 47; cf. 4, 21.33; 5, 13), enquanto algumas autoridades os assediavam e perseguiam (cf. 4, 1- 3; 5, 17-18). 94. As perseguições não são uma realidade do passado, porque hoje também as sofremos quer de forma cruenta, como tantos mártires contemporâneos, quer duma maneira mais subtil, através de calúnias e falsidades. Jesus diz que haverá felicidade, quando, «mentindo, disserem todo o género de calúnias contra vós, por minha causa» (Mt 5, 11). Outras vezes, trata-se de zombarias que tentam desfigurar a nossa fé e fazer-nos passar por pessoas ridículas. Abraçar diariamente o caminho do Evangelho mesmo que nos acarrete problemas: isto é santidade. A grande regra de comportamento. 95. No capítulo 25 do Evangelho de Mateus (vv. 31-46), Jesus volta a deter-se numa destas bem-aventuranças: a que declara felizes os misericordiosos. Se andamos à procura da santidade que agrada a Deus, neste texto encontramos precisamente uma regra de comportamento com base na qual seremos julgados: «Tive fome e destes-Me de comer, tive sede e destes-Me de beber, era peregrino e recolhestes-Me, estava nu e destes-Me que vestir, adoeci e visitastes-Me, estive na prisão e fostes ter comigo» (25, 35-36). Por fidelidade ao Mestre. 96. Deste modo, ser santo não significa revirar os olhos num suposto êxtase. Dizia São João Paulo II que, «se verdadeiramente partimos da contemplação de Cristo, devemos saber vê-Lo sobretudo no rosto daqueles com quem Ele mesmo Se quis identificar».[79] O texto de Mateus 25, 35-36 «não é um mero convite à caridade, mas uma página de cristologia que projeta um feixe de luz sobre o mistério de Cristo».[80] Neste apelo a reconhecê-Lo nos pobres e atribulados, revela-se o próprio coração de Cristo, os seus sentimentos e as suas opções mais profundas, com os quais se procura configurar todo o santo. 97. Perante a força destas solicitações de Jesus, é meu dever pedir aos cristãos que as aceitem e recebam com sincera abertura, sine glossa, isto é, sem comentários, especulações e desculpas que lhes tirem força. O Senhor deixou-nos bem claro que a santidade não se pode compreender nem viver prescindindo destas suas exigências, porque a misericórdia é o «coração pulsante do Evangelho».[81] 98. Quando encontro uma pessoa a dormir ao relento, numa noite fria, posso sentir que este vulto seja um imprevisto que me detém, um delinquente ocioso, um obstáculo no meu caminho, um aguilhão molesto para a minha consciência, um problema que os políticos devem resolver e talvez até um monte de lixo que suja o espaço público. Ou então posso reagir a partir da fé e da caridade e reconhecer nele um ser humano com a mesma dignidade que eu, uma criatura infinitamente amada pelo Pai, uma imagem de Deus, um irmão redimido por Jesus Cristo. Isto é ser cristão! Ou poder-se-á porventura entender a santidade prescindindo deste reconhecimento vivo da dignidade de todo o ser humano?[82] 99. Para os cristãos, isto supõe uma saudável e permanente insatisfação. Embora dar alívio a uma única pessoa já justificasse todos os nossos esforços, para nós isso não é suficiente. Com clareza o afirmaram os Bispos do Canadá ao mostrar como nos ensinamentos bíblicos sobre o Jubileu, por exemplo, não se trata apenas de fazer algumas ações boas, mas de procurar uma mudança social: «para que fossem libertadas também as gerações futuras, o objetivo proposto era claramente o restabelecimento de sistemas sociais e económicos justos, a fim de que não pudesse haver mais exclusão».[83] As ideologias que mutilam o coração do Evangelho. 100. Às vezes, infelizmente, as ideologias levam-nos a dois erros nocivos. Por um lado, o erro dos cristãos que separam estas exigências do Evangelho do seu relacionamento pessoal com o Senhor, da união interior com Ele, da graça. Assim transforma-se o cristianismo numa espécie de ONG, privando-o daquela espiritualidade irradiante que, tão bem, viveram e manifestaram São Francisco de Assis, São Vicente de Paulo, Santa Teresa de Calcutá e muitos outros. A estes grandes santos, nem a oração, nem o amor de Deus, nem a leitura do Evangelho diminuíram a paixão e a eficácia da sua dedicação ao próximo; antes pelo contrário (...) 101. Mas é nocivo e ideológico também o erro das pessoas que vivem suspeitando do compromisso social dos outros, considerando-o algo de superficial, mundano, secularizado, imanentista, comunista, populista; ou então relativizam-no como se houvesse outras coisas mais importantes, como se interessasse apenas uma determinada ética ou um arrazoado que eles defendem. A defesa do inocente nascituro, por exemplo, deve ser clara, firme e apaixonada, porque neste caso está em jogo a dignidade da vida humana, sempre sagrada, e exige-o o amor por toda a pessoa, independentemente do seu desenvolvimento. Mas igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura, e em todas as formas de descarte.[84] Não podemos propor-nos um ideal de santidade que ignore a injustiça deste mundo, onde alguns festejam, gastam folgadamente e reduzem a sua vida às novidades do consumo, ao mesmo tempo que outros se limitam a olhar de fora enquanto a sua vida passa e termina miseravelmente. 102. Muitas vezes ouve-se dizer que, face ao relativismo e aos limites do mundo atual, seria um tema marginal, por exemplo, a situação dos migrantes. Alguns católicos afirmam que é um tema secundário relativamente aos temas «sérios» da bioética. Que fale assim um político preocupado com os seus sucessos, talvez se possa chegar a compreender; mas não um cristão, cuja única atitude condigna é colocar-se na pele do irmão que arrisca a vida para dar um futuro aos seus filhos. Poderemos nós reconhecer que é precisamente isto o que nos exige Jesus quando diz que a Ele mesmo recebemos em cada forasteiro (cf. Mt 25, 35)? São Bento assumira-o sem reservas e, embora isto pudesse «complicar» a vida dos monges, estabeleceu que todos os hóspedes que se apresentassem no mosteiro fossem acolhidos «como Cristo»,[85] manifestando-o mesmo com gestos de adoração,[86] e que os pobres e peregrinos fossem tratados «com o máximo cuidado e solicitude».[87] 103. Algo de semelhante propõe o Antigo Testamento, quando diz: «não usarás de violência contra o estrangeiro residente nem o oprimirás, porque foste estrangeiro residente na terra do Egito» (Ex 22, 20). «O estrangeiro que reside convosco será tratado como um dos vossos compatriotas e amá-lo-ás como a ti mesmo, porque fostes estrangeiros na terra do Egito» (Lv 19, 34). Por isso, não se trata da invenção de um Papa nem dum delírio passageiro. Também nós, no contexto atual, somos chamados a viver o caminho de iluminação espiritual que nos apresentava o profeta Isaías quando, interrogando-se sobre o que agrada a Deus, respondia: é «repartir o teu pão com os esfomeados, dar abrigo aos infelizes sem casa, atender e vestir os nus e não desprezar o teu irmão. Então, a tua luz surgirá como a aurora» (58, 7-8). O culto que mais Lhe agrada. 104. Poder-se-ia pensar que damos glória a Deus só com o culto e a oração, ou apenas observando algumas normas éticas (é verdade que o primado pertence à relação com Deus), mas esquecemos que o critério de avaliação da nossa vida é, antes de mais nada, o que fizemos pelos outros. A oração é preciosa, se alimenta uma doação diária de amor. O nosso culto agrada a Deus, quando levamos lá os propósitos de viver com generosidade e quando deixamos que o dom lá recebido se manifeste na dedicação aos irmãos. 105. Pela mesma razão, o melhor modo para discernir se o nosso caminho de oração é autêntico será ver em que medida a nossa vida se vai transformando à luz da misericórdia. Com efeito, «a misericórdia não é apenas o agir do Pai, mas torna-se o critério para individuar quem são os seus verdadeiros filhos».[88] É «a arquitrave que suporta avida da Igreja».[89] Quero assinalar mais uma vez que, embora a misericórdia não exclua a justiça e a verdade, «antes de tudo, temos de dizer que a misericórdia é a plenitude da justiça e a manifestação mais luminosa da verdade de Deus».[90] A misericórdia «é a chave do Céu».[91] 106. Não posso deixar de lembrar a questão que se colocava São Tomás de Aquino ao interrogar-se quais são as nossas ações maiores, quais são as obras exteriores que manifestam melhor o nosso amor a Deus. Responde sem hesitar que, mais do que os atos de culto, são as obras de misericórdia para com o próximo:[92] «não praticamos o culto a Deus com sacrifícios e com ofertas exteriores para proveito d’Ele, mas para benefício nosso e do próximo: de facto Ele não precisa dos nossos sacrifícios, mas quer que Lhos ofereçamos para nossa devoção e para utilidade do próximo. Por isso a misericórdia, pela qual socorremos as carências alheias, ao favorecer mais diretamente a utilidade do próximo, é o sacrifício que mais Lhe agrada».[93] 107. Quem deseja verdadeiramente dar glória a Deus com a sua vida, quem realmente se quer santificar para que a sua existência glorifique o Santo, é chamado a obstinar-se, gastar-se e cansar-se procurando viver as obras de misericórdia. Muito bem o entendera Santa Teresa de Calcutá: «sim, tenho muitas fraquezas humanas, muitas misérias humanas. (...) Mas Ele abaixa-Se e serve-Se de nós, de ti e de mim, para sermos o seu amor e a sua compaixão no mundo, apesar dos nossos pecados, apesar das nossas misérias e defeitos. Ele depende de nós para amar o mundo e demonstrar-lhe o muito que o ama. Se nos ocuparmos demasiado de nós mesmos, não teremos tempo para os outros».[94] 108. O consumismo hedonista pode-nos enganar, porque, na obsessão de divertir-nos, acabamos por estar excessivamente concentrados em nós mesmos, nos nossos direitos e na exacerbação de ter tempo livre para gozar a vida. Será difícil que nos comprometamos e dediquemos energias a dar uma mão a quem está mal, se não cultivarmos uma certa austeridade, se não lutarmos contra esta febre que a sociedade de consumo nos impõe para nos vender coisas, acabando por nos transformar em pobres insatisfeitos que tudo querem ter e provar. O próprio consumo de informação superficial e as formas de comunicação rápida e virtual podem ser um fator de estonteamento que ocupa todo o nosso tempo e nos afasta da carne sofredora dos irmãos. No meio deste turbilhão atual, volta a ressoar o Evangelho para nos oferecer uma vida diferente, mais saudável e mais feliz. 109. A força do testemunho dos santos consiste em viver as bem-aventuranças e a regra de comportamento do juízo final. São poucas palavras, simples, mas práticas e válidas para todos, porque o cristianismo está feito principalmente para ser praticado e, se é também objeto de reflexão, isso só tem valor quando nos ajuda a viver o Evangelho na vida diária. Recomendo vivamente que se leia, com frequência, estes grandes textos bíblicos, que sejam recordados, que se reze com eles, que se procure encarná-los. Far-nos-ão bem, tornar-nos-ão genuinamente felizes. Capítulo IV. ALGUMAS CARATERÍSTICAS DA SANTIDADE
NO MUNDO ATUAL.
110. Neste grande quadro da santidade que as bem-aventuranças e Mateus 25, 31-46 nos propõem, gostaria de recolher algumas caraterísticas ou traços espirituais que, a meu ver, são indispensáveis para compreender o estilo de vida a que o Senhor nos chama. Não me deterei a explicar os meios de santificação que já conhecemos: os diferentes métodos de oração, os sacramentos inestimáveis da Eucaristia e da Reconciliação, a oferta de sacrifícios, as várias formas de devoção, a direção espiritual e muitos outros. Limitar-me-ei a referir alguns aspetos da chamada à santidade, que tenham – assim o espero – uma ressonância especial. 111. Estas caraterísticas que quero evidenciar não são todas as que podem constituir um modelo de santidade, mas são cinco grandes manifestações do amor a Deus e ao próximo, que considero particularmente importantes devido a alguns riscos e limites da cultura de hoje. Nesta se manifestam: a ansiedade nervosa e violenta que nos dispersa e enfraquece; o negativismo e a tristeza; a acédia cómoda, consumista e egoísta; o individualismo e tantas formas de falsa espiritualidade sem encontro com Deus que reinam no mercado religioso atual. Suportar, paciência e mansidão. 112. A primeira destas grandes caraterísticas é permanecer centrado, firme em Deus que ama e sustenta. A partir desta firmeza interior, é possível aguentar, suportar as contrariedades, as vicissitudes da vida e também as agressões dos outros, as suas infidelidades e defeitos: «se Deus está por nós, quem pode estar contra nós?» (Rm 8, 31). Nisto está a fonte da paz que se expressa nas atitudes dum santo. Com base em tal solidez interior, o testemunho de santidade, no nosso mundo acelerado, volúvel e agressivo, é feito de paciência e constância no bem. É a fidelidade (pistis) do amor, pois quem se apoia em Deus também pode ser fiel (pistós) aos irmãos, não os abandonando nos momentos difíceis, nem se deixando levar pela própria ansiedade, mas mantendo-se ao lado dos outros mesmo quando isso não lhe proporcione qualquer satisfação imediata. 113. São Paulo convidava os cristãos de Roma a não pagar a ninguém o mal com o mal (cf. Rm 12, 17), a não fazer-se justiça por conta própria (cf. 12, 19), nem a deixar-se vencer pelo mal, mas vencer o mal com o bem (cf. 12, 21). Esta atitude não é sinal de fraqueza, mas da verdadeira força, porque o próprio Deus «é paciente e grande em poder» (Na 1, 3). Assim nos adverte a Palavra de Deus: «toda a espécie de azedume, raiva, ira, gritaria e injúria desapareça de vós, juntamente com toda a maldade» (Ef 4, 31). 114. É preciso lutar e estar atentos às nossas inclinações agressivas e egocêntricas, para não deixar que ganhem raízes: «se vos irardes, não pequeis; que o sol não se ponha sobre o vosso ressentimento» (Ef 4, 26). Quando há circunstâncias que nos acabrunham, sempre podemos recorrer à âncora da súplica, que nos leva a ficar de novo nas mãos de Deus e junto da fonte da paz: «por nada vos deixeis inquietar; pelo contrário: em tudo, pela oração e pela prece, apresentai os vossos pedidos a Deus em ações de graças. Então, a paz de Deus, que ultrapassa toda a inteligência, guardará os vossos corações» (Flp 4, 6-7). 115. Pode acontecer também que os cristãos façam parte de redes de violência verbal através da internet e vários fóruns ou espaços de intercâmbio digital. Mesmo nos media católicos, é possível ultrapassar os limites, tolerando-se a difamação e a calúnia e parecendo excluir qualquer ética e respeito pela fama alheia. Gera-se, assim, um dualismo perigoso, porque, nestas redes, dizem-se coisas que não seriam toleráveis na vida pública e procura-se compensar as próprias insatisfações descarregando furiosamente os desejos de vingança. É impressionante como, às vezes, pretendendo defender outros mandamentos, se ignora completamente o oitavo: «não levantar falsos testemunhos» e destrói-se sem piedade a imagem alheia. Nisto se manifesta como a língua descontrolada «é um mundo de iniquidade; (…) e, inflamada pelo Inferno, incendeia o curso da nossa existência» (Tg 3, 6). 116. A firmeza interior, que é obra da graça, impede de nos deixarmos arrastar pela violência que invade a vida social, porque a graça aplaca a vaidade e torna possível a mansidão do coração. O santo não gasta as suas energias a lamentar-se dos erros alheios, é capaz de guardar silêncio sobre os defeitos dos seus irmãos e evita a violência verbal que destrói e maltrata, porque não se julga digno de ser duro com os outros, mas considera-os superiores a si próprio (cf. Flp 2, 3). 117. Não nos faz bem olhar com altivez, assumir o papel de juízes sem piedade, considerar os outros como indignos e pretender continuamente dar lições. Esta é uma forma subtil de violência.[95] São João da Cruz propunha outra coisa: «mostra-te sempre mais propenso a ser ensinado por todos do que a querer ensinar quem é inferior a todos».[96] E acrescentava um conselho para afastar o demónio: «alegrando-te com o bem dos outros como se fosse teu e procurando sinceramente que estes sejam preferidos a ti em todas as coisas, assim vencerás o mal com o bem, afastarás o demónio para longe e alegrarás o coração. Procura exercitá-lo sobretudo com aqueles que te são menos simpáticos. E sabe que, se não te exercitares neste campo, não chegarás à verdadeira caridade nem tirarás proveito dela».[97] 118. A humildade só se pode enraizar no coração através das humilhações. Sem elas, não há humildade nem santidade. Se não fores capaz de suportar e oferecer a Deus algumas humilhações, não és humilde nem estás no caminho da santidade. A santidade que Deus dá à sua Igreja, vem através da humilhação do seu Filho: este é o caminho. A humilhação faz-te semelhante a Jesus, é parte ineludível da imitação de Jesus: «Cristo padeceu por vós, deixando-vos o exemplo, para que sigais os seus passos» (1 Ped 2, 21). Ele, por sua vez, manifesta a humildade do Pai, que Se humilha para caminhar com o seu povo, que suporta as suas infidelidades e murmurações (cf. Ex 34, 6-9; Sab 11, 23 – 12, 2; Lc 6, 36). Por este motivo os Apóstolos, depois da humilhação, estavam «cheios de alegria, por terem sido considerados dignos de sofrer vexames por causa do Nome de Jesus» (At 5, 41). 119. Não me refiro apenas às situações cruentas de martírio, mas às humilhações diárias daqueles que calam para salvar a sua família, ou evitam falar bem de si mesmos e preferem louvar os outros em vez de se gloriar, escolhem as tarefas menos vistosas e às vezes até preferem suportar algo de injusto para o oferecer ao Senhor: «se, fazendo o bem, sofreis com paciência, isso é uma coisa meritória diante de Deus» (1 Ped 2, 20). Não é caminhar com a cabeça inclinada, falar pouco ou escapar da sociedade. Às vezes uma pessoa, precisamente porque está liberta do egocentrismo, pode ter a coragem de discutir amavelmente, reclamar justiça ou defender os fracos diante dos poderosos, mesmo que isso traga consequências negativas para a sua imagem. 120. Não digo que a humilhação seja algo de agradável, porque isso seria masoquismo, mas que se trata dum caminho para imitar Jesus e crescer na união com Ele. Isto não é compreensível no plano natural, e o mundo ridiculariza semelhante proposta. É uma graça que precisamos de implorar: «Senhor, quando chegarem as humilhações, ajuda-me a sentir que estou seguindo atrás de Ti, no teu caminho». 121. Esta atitude pressupõe um coração pacificado por Cristo, liberto daquela agressividade que brota dum «ego» demasiado grande. A própria pacificação, que a graça realiza, permite-nos manter uma segurança interior e aguentar, perseverar no bem «ainda que atravesse vales tenebrosos» (Sal 23/22, 4) ou «ainda que um exército me cerque» (Sal 27/26, 3). Firmes no Senhor, a Rocha, podemos cantar: «deito-me em paz e logo adormeço, porque só Tu, Senhor, me fazes viver em segurança» (Sal 4, 9). Em suma, Cristo «é a nossa paz» (Ef 2,14) e veio «dirigir os nossos passos no caminho da paz» (Lc 1, 79). Ele fez saber a Santa Faustina Kowalska: «a humanidade não encontrará paz, enquanto não se dirigir com confiança à Minha Misericórdia».[98] Por isso, não caiamos na tentação de procurar a segurança interior no sucesso, nos prazeres vazios, na riqueza, no domínio sobre os outros ou na imagem social: «Dou-vos a minha paz. [Mas] não é como a dá o mundo, que Eu vo-la dou» (Jo 14, 27). Alegria e sentido de humor. 122. O que ficou dito até agora não implica um espírito retraído, tristonho, amargo, melancólico ou um perfil sumido, sem energia. O santo é capaz de viver com alegria e sentido de humor. Sem perder o realismo, ilumina os outros com um espírito positivo e rico de esperança. Ser cristão é «alegria no Espírito Santo» (Rm 14, 17), porque, «do amor de caridade, segue-se necessariamente a alegria. Pois quem ama sempre se alegra na união com o amado. (...) Daí que a consequência da caridade seja a alegria».[99] Recebemos a beleza da sua Palavra e abraçamo-la «em plena tribulação, com a alegria do Espírito Santo» (1 Ts 1, 6). Se deixarmos que o Senhor nos arranque da nossa concha e mude a nossa vida, então poderemos realizar o que pedia São Paulo: «Alegrai-vos sempre no Senhor! De novo o digo: alegrai-vos!» (Flp 4, 4). 123. Os profetas anunciavam o tempo de Jesus, que estamos a viver, como uma revelação da alegria: «exultai de alegria» (Is 12, 6). «Sobe a um alto monte, arauto de Sião. Grita com voz forte, arauto de Jerusalém» (Is 40, 9). «Exulta de alegria, ó terra! Rompei em exclamações, ó montes! Na verdade, o Senhor consola o seu povo e Se compadece dos desamparados» (Is 49, 13). «Exulta de alegria, filha de Sião! Solta gritos de júbilo, filha de Jerusalém! Eis que o teu Rei vem a ti; Ele é justo e vitorioso» (Zac 9, 9). E não esqueçamos a exortação de Neemias: «não vos entristeçais, porque a alegria do Senhor é que é a vossa força» (8, 10). 124. Maria, que soube descobrir a novidade trazida por Jesus, cantava: «o meu espírito se alegra» (Lc 1, 47) e o próprio Jesus «estremeceu de alegria sob a ação do Espírito Santo» (Lc 10, 21). Quando Ele passava, «a multidão alegrava-se» (Lc 13, 17). Depois da sua ressurreição, onde chegavam os discípulos, havia grande alegria (cf. At 8, 8). Jesus assegurou-nos: «vós haveis de estar tristes, mas a vossa tristeza há de converter-se em alegria! (...) Eu hei de ver-vos de novo! Então o vosso coração há de alegrar-se e ninguém vos poderá tirar a vossa alegria» (Jo 16, 20.22). «Manifestei-vos estas coisas, para que esteja em vós a minha alegria, e a vossa alegria seja completa» (Jo 15, 11). 125. Existem momentos difíceis, tempos de cruz, mas nada pode destruir a alegria sobrenatural, que «se adapta e transforma, mas sempre permanece pelo menos como um feixe de luz que nasce da certeza pessoal de, não obstante o contrário, sermos infinitamente amados».[100] É uma segurança interior, uma serenidade cheia de esperança que proporciona uma satisfação espiritual incompreensível à luz dos critérios mundanos. 126. Normalmente a alegria cristã é acompanhada pelo sentido do humor, tão saliente, por exemplo, em São Tomás Moro, São Vicente de Paulo, ou São Filipe Néri. O mau humor não é um sinal de santidade: «lança fora do teu coração a tristeza» (Qo 11, 10). É tanto o que recebemos do Senhor «para nosso usufruto» (1 Tm 6, 17), que às vezes a tristeza tem a ver com a ingratidão, com estar tão fechados em nós mesmos que nos tornamos incapazes de reconhecer os dons de Deus.[101] 127. Assim nos convida o seu amor paterno: «meu filho, se tens com quê, trata-te bem (...). Não te prives da felicidade presente» (Sir 14, 11.14). Quer-nos positivos, agradecidos e não demasiado complicados: «no dia da felicidade, sê alegre. (…) Deus criou os homens retos, eles, porém, procuraram maquinações sem fim» (Qo 7, 14.29). Em cada situação, devemos manter um espírito flexível, fazendo como São Paulo: aprendi a adaptar-me «às situações em que me encontre» (Flp 4, 11). Isto mesmo vivia São Francisco de Assis, capaz de se comover de gratidão perante um pedaço de pão duro, ou de louvar, feliz, a Deus só pela brisa que acariciava o seu rosto. 128. Não estou a falar da alegria consumista e individualista muito presente nalgumas experiências culturais de hoje. Com efeito, o consumismo só atravanca o coração; pode proporcionar prazeres ocasionais e passageiros, mas não alegria. Refiro-me, antes, àquela alegria que se vive em comunhão, que se partilha e comunica, porque «a felicidade está mais em dar do que em receber» (At 20, 35) e «Deus ama quem dá com alegria» (2 Cor 9, 7). O amor fraterno multiplica a nossa capacidade de alegria, porque nos torna capazes de rejubilar com o bem dos outros: «alegrai-vos com os que se alegram» (Rm 12, 15). «Alegramo-nos quando somos fracos e vós sois fortes» (2 Cor 13, 9). Ao contrário, «concentrando-nos sobretudo nas nossas próprias necessidades, condenamo-nos a viver com pouca alegria».[102] Ousadia e ardor. 129. Ao mesmo tempo, a santidade é parresia: é ousadia, é impulso evangelizador que deixa uma marca neste mundo. Para isso ser possível, o próprio Jesus vem ao nosso encontro, repetindo-nos com serenidade e firmeza: «não temais!» (Mc 6, 50). «Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos» (Mt 28, 20). Estas palavras permitem-nos partir e servir com aquela atitude cheia de coragem que o Espírito Santo suscitava nos Apóstolos, impelindo-os a anunciar Jesus Cristo. Ousadia, entusiasmo, falar com liberdade, ardor apostólico: tudo isto está contido no termo parresia, uma palavra com que a Bíblia expressa também a liberdade duma existência aberta, porque está disponível para Deus e para os irmãos (cf. At 4, 29; 9, 28; 28, 31; 2 Cor 3, 12; Ef 3, 12; Heb 3, 6; 10, 19). 130. O Beato Paulo VI mencionava, entre os obstáculos da evangelização, precisamente a carência de parresia, «a falta de ardor, tanto mais grave [porque] provém de dentro».[103] Quantas vezes nos sentimos instigados a deter-nos na comodidade da margem! Mas o Senhor chama-nos a navegar pelo mar dentro e lançar as redes em águas mais profundas (cf. Lc 5, 4). Convida-nos a gastar a nossa vida ao seu serviço. Agarrados a Ele, temos a coragem de colocar todos os nossos carismas ao serviço dos outros. Oxalá pudéssemos sentir-nos impelidos pelo seu amor (cf. 2 Cor 5, 14) e dizer com São Paulo: «ai de mim se eu não evangelizar!» (1 Cor 9, 16). 131. Olhemos para Jesus! A sua entranhada compaixão não era algo que O ensimesmava, não era uma compaixão paralisadora, tímida ou envergonhada, como sucede muitas vezes conosco. Era exatamente o contrário: era uma compaixão que O impelia fortemente a sair de Si mesmo a fim de anunciar, mandar em missão, enviar a curar e libertar. Reconheçamos a nossa fragilidade, mas deixemos que Jesus a tome nas suas mãos e nos lance para a missão. Somos frágeis, mas portadores dum tesouro que nos faz grandes e pode tornar melhores e mais felizes aqueles que o recebem. A ousadia e a coragem apostólica são constitutivas da missão. 132. A parresia é selo do Espírito, testemunho da autenticidade do anúncio. É uma certeza feliz que nos leva a gloriar-nos do Evangelho que anunciamos, é confiança inquebrantável na fidelidade da Testemunha fiel, que nos dá a certeza de que nada «poderá separar-nos do amor de Deus» (Rm 8, 39). 133. Precisamos do impulso do Espírito para não ser paralisados pelo medo e o calculismo, para não nos habituarmos a caminhar só dentro de confins seguros. Lembremo-nos disto: o que fica fechado acaba cheirando a mofo e criando um ambiente doentio. Quando os apóstolos sentiram a tentação de deixar-se paralisar pelos medos e perigos, juntaram-se a rezar pedindo parresia: «agora, Senhor, tem em conta as suas ameaças e concede aos teus servos poderem anunciar a tua palavra com toda a ousadia» (At 4, 29). E a resposta foi esta: «tinham acabado de orar, quando o lugar em que se encontravam reunidos estremeceu, e todos foram cheios do Espírito Santo, começando a anunciar a palavra de Deus com ousadia» (At 4, 31). 134. À semelhança do profeta Jonas, sempre permanece latente em nós a tentação de fugir para um lugar seguro, que pode ter muitos nomes: individualismo, espiritualismo, confinamento em mundos pequenos, dependência, instalação, repetição de esquemas preestabelecidos, dogmatismo, nostalgia, pessimismo, refúgio nas normas. Talvez nos sintamos relutantes em deixar um território que nos era conhecido e controlável. Todavia as dificuldades podem ser como a tempestade, a baleia, o verme que fez secar o rícino de Jonas, ou o vento e o sol que lhe dardejaram a cabeça; e, tal como para ele, podem ter a função de nos fazer voltar para este Deus que é ternura e nos quer levar a uma itinerância constante e renovadora. 135. Deus é sempre novidade, que nos impele a partir sem cessar e a mover-nos para ir mais além do conhecido, rumo às periferias e aos confins. Leva-nos aonde se encontra a humanidade mais ferida e aonde os seres humanos, sob a aparência da superficialidade e do conformismo, continuam à procura de resposta para a questão do sentido da vida. Deus não tem medo! Não tem medo! Ultrapassa sempre os nossos esquemas e não Lhe metem medo as periferias. Ele próprio Se fez periferia (cf. Flp 2, 6-8; Jo 1, 14). Por isso, se ousarmos ir às periferias, lá O encontraremos: Ele já estará lá. Jesus antecipa-Se-nos no coração daquele irmão, na sua carne ferida, na sua vida oprimida, na sua alma sombria. Ele já está lá. 136. É verdade que precisamos de abrir a porta a Jesus Cristo, porque Ele bate e chama (cf. Ap 3, 20). Mas, pensando no ar irrespirável da nossa autorreferencialidade, pergunto-me se às vezes Jesus não estará já dentro de nós, batendo para que O deixemos sair. No Evangelho, vemos como Jesus «ia de cidade em cidade, de aldeia em aldeia proclamando e anunciando a Boa-Nova do Reino de Deus» (Lc 8, 1). Mesmo depois da ressurreição, quando os discípulos partiram para toda a parte, «o Senhor cooperava com eles» (Mc 16, 20). Esta é a dinâmica que brota do verdadeiro encontro. 137. A habituação seduz-nos e diz-nos que não tem sentido procurar mudar as coisas, que nada podemos fazer perante tal situação, que sempre foi assim e todavia sobrevivemos. Pela habituação, já não enfrentamos o mal e permitimos que as coisas «continuem como estão» ou como alguns decidiram que estejam. Deixemos então que o Senhor venha despertar-nos, dar-nos um abanão na nossa sonolência, libertar-nos da inércia. Desafiemos a habituação, abramos bem os olhos, os ouvidos e sobretudo o coração, para nos deixarmos mover pelo que acontece ao nosso redor e pelo clamor da Palavra viva e eficaz do Ressuscitado. 138. Move-nos o exemplo de tantos sacerdotes, religiosas, religiosos e leigos que se dedicam a anunciar e servir com grande fidelidade, muitas vezes arriscando a vida e, sem dúvida, à custa da sua comodidade. O seu testemunho lembra-nos que a Igreja não precisa de muitos burocratas e funcionários, mas de missionários apaixonados, devorados pelo entusiasmo de comunicar a verdadeira vida. Os santos surpreendem, desinstalam, porque a sua vida nos chama a sair da mediocridade tranquila e anestesiadora. 139. Peçamos ao Senhor a graça de não hesitar quando o Espírito nos exige que demos um passo em frente; peçamos a coragem apostólica de comunicar o Evangelho aos outros e de renunciar a fazer da nossa vida um museu de recordações. Em qualquer situação, deixemos que o Espírito Santo nos faça contemplar a história na perspetiva de Jesus ressuscitado. Assim a Igreja, em vez de cair cansada, poderá continuar em frente acolhendo as surpresas do Senhor. Em comunidade. 140. É muito difícil lutar contra a própria concupiscência e contra as ciladas e tentações do demónio e do mundo egoísta, se estivermos isolados. A sedução com que nos bombardeiam é tal que, se estivermos demasiado sozinhos, facilmente perdemos o sentido da realidade, a clareza interior, e sucumbimos. 141. A santificação é um caminho comunitário, que se deve fazer dois a dois. Reflexo disto temo-lo em algumas comunidades santas. Em várias ocasiões, a Igreja canonizou comunidades inteiras, que viveram heroicamente o Evangelho ou ofereceram a Deus a vida de todos os seus membros. Pensemos, por exemplo, nos sete Santos Fundadores da Ordem dos Servos de Maria, nas sete Beatas religiosas do primeiro mosteiro da Visitação de Madrid, em São Paulo Míki e companheiros mártires no Japão, em Santo André Taegon e companheiros mártires na Coreia, em São Roque González, Afonso Rodríguez e companheiros mártires na América do Sul. E recordemos também o testemunho recente dos monges trapistas de Tibhirine (Argélia), que se prepararam juntos para o martírio. De igual modo, há muitos casais santos, onde cada cônjuge foi um instrumento para a santificação do outro. Viver e trabalhar com outros é, sem dúvida, um caminho de crescimento espiritual. São João da Cruz dizia a um discípulo: estás a viver com outros «para que te trabalhem e exercitem na virtude».[104] 142. A comunidade é chamada a criar aquele «espaço teologal onde se pode experimentar a presença mística do Senhor ressuscitado».[105] Partilhar a Palavra e celebrar juntos a Eucaristia torna-nos mais irmãos e vai-nos transformando pouco a pouco em comunidade santa e missionária. Isto dá origem também a autênticas experiências místicas vividas em comunidade, como no caso de São Bento e Santa Escolástica, ou daquele sublime encontro espiritual que viveram juntos Santo Agostinho e sua mãe Santa Mónica: «próximo já do dia em que ela ia sair desta vida – dia que Vós conhecíeis e nós ignorávamos – sucedeu, segundo creio, por disposição dos vossos secretos desígnios, que nos encontrássemos sozinhos, ela e eu, apoiados a uma janela cuja vista dava para o jardim interior da casa onde morávamos (…). Os lábios do nosso coração abriam-se ansiosos para a corrente celeste da vossa fonte, a fonte da Vida, que está em Vós (...). Enquanto assim falávamos, anelantes pela Sabedoria, atingimo-la momentaneamente num ímpeto completo do nosso coração (...) E se a vida eterna fosse semelhante a este vislumbre intuitivo?»[106] 143. Contudo estas experiências não são o mais frequente, nem o mais importante. A vida comunitária, na família, na paróquia, na comunidade religiosa ou em qualquer outra, compõe-se de tantos pequenos detalhes diários. Assim acontecia na comunidade santa formada por Jesus, Maria e José, onde se refletiu de forma paradigmática a beleza da comunhão trinitária. E o mesmo sucedia na vida comunitária que Jesus transcorreu com os seus discípulos e o povo simples. 144. Lembremo-nos como Jesus convidava os seus discípulos a prestarem atenção aos detalhes: o pequeno detalhe do vinho que estava a acabar numa festa; o pequeno detalhe duma ovelha que faltava; o pequeno detalhe da viúva que ofereceu as duas moedinhas que tinha; o pequeno detalhe de ter azeite de reserva para as lâmpadas, caso o noivo se demore;
o pequeno detalhe de pedir aos discípulos que vissem quantos pães tinham; o pequeno detalhe de ter a fogueira acesa e um peixe na grelha enquanto esperava os discípulos ao amanhecer. 145. A comunidade, que guarda os pequenos detalhes do amor[107] e na qual os membros cuidam uns dos outros e formam um espaço aberto e evangelizador, é lugar da presença do Ressuscitado que a vai santificando segundo o projeto do Pai. Sucede às vezes, no meio destes pequenos detalhes, que o Senhor, por um dom do seu amor, nos presenteie com consoladoras experiências de Deus: «uma noite de inverno, cumpria, como de costume, o pequeno ofício. (...) De repente, ouvi ao longe o som harmonioso de um instrumento musical. Então imaginei um salão bem iluminado, todo resplandecente de dourados, de donzelas elegantemente vestidas, dirigindo-se mutuamente cumprimentos e cortesias mundanas. A seguir o meu olhar pousou na pobre doente que amparava; em vez de uma melodia, ouvia, de vez em quando, os seus gemidos queixosos (...). Não consigo exprimir o que se passou na minha alma; o que sei é que o Senhor a iluminou com os reflexos da verdade, que ultrapassavam de tal maneira o brilho tenebroso das festas da terra, que não podia acreditar na minha felicidade».[108] 146. Contra a tendência para o individualismo consumista que acaba por nos isolar na busca do bem-estar à margem dos outros, o nosso caminho de santificação não pode deixar de nos identificar com aquele desejo de Jesus: «que todos sejam um só, como Tu, Pai, estás em Mim e Eu em Ti» (Jo 17, 21). Em oração constante. 147. Por fim, mesmo que pareça óbvio, lembremos que a santidade é feita de abertura habitual à transcendência, que se expressa na oração e na adoração. O santo é uma pessoa com espírito orante, que tem necessidade de comunicar com Deus. É alguém que não suporta asfixiar-se na imanência fechada deste mundo e, no meio dos seus esforços e serviços, suspira por Deus, sai de si erguendo louvores e alarga os seus confins na contemplação do Senhor. Não acredito na santidade sem oração, embora não se trate necessariamente de longos períodos ou de sentimentos intensos. 148. São João da Cruz recomendava que se procurasse «andar sempre na presença de Deus, seja ela real, imaginada ou unitiva, conforme o permitam as obras que estamos a realizar».[109] No fundo, é o desejo de Deus, que não pode deixar de se manifestar dalguma maneira no meio da nossa vida diária: «procura que a tua oração seja contínua e, no meio dos exercícios corporais, não a deixes. Quando comes, bebes, conversas com outros, ou em qualquer outra coisa que faças, sempre deseja a Deus e prende a Ele o teu coração».[110] 149. Contudo, para que isto se torne possível, são necessários também alguns tempos dedicados só a Deus, na solidão com Ele. Para Santa Teresa de Ávila, a oração é «uma relação íntima de amizade, permanecendo muitas vezes a sós com Quem sabemos que nos ama».[111] Gostaria de insistir no facto de que isto não é dito apenas para poucos privilegiados, mas para todos, porque «todos precisamos deste silêncio repleto de presença adoradora».[112] A oração confiante é uma resposta do coração que se abre a Deus face a face, onde são silenciados todos os rumores para escutar a voz suave do Senhor que ressoa no silêncio. 150. Neste silêncio, é possível discernir, à luz do Espírito, os caminhos de santidade que o Senhor nos propõe. Caso contrário, todas as nossas decisões não passarão de «decorações», que, em vez de exaltar o Evangelho na nossa vida, acabarão por o recobrir e sufocar. Para todo o discípulo, é indispensável estar com o Mestre, escutá-Lo, aprender d’Ele, aprender sempre. Se não escutarmos, todas as nossas palavras serão apenas rumores que não servem para nada. 151. Recordemos que «é a contemplação da face de Jesus morto e ressuscitado que recompõe a nossa humanidade, incluindo a que está fragmentada pelas canseiras da vida ou marcada pelo pecado. Não devemos domesticar o poder da face de Cristo».[113] Sendo assim, atrevo-me a perguntar-te: Tens momentos em que te colocas na sua presença em silêncio, permaneces com Ele sem pressa, e te deixas olhar por Ele? Deixas que o seu fogo inflame o teu coração? Se não permites que Jesus alimente nele o calor do amor e da ternura, não terás fogo e, assim, como poderás inflamar o coração dos outros com o teu testemunho e as tuas palavras? E se ainda não consegues, diante do rosto de Cristo, deixar-te curar e transformar, então penetra nas entranhas do Senhor, entra nas suas chagas, porque é nelas que tem a sua sede a misericórdia divina.[114] 152. Peço, porém, que não se entenda o silêncio orante como uma evasão que nega o mundo que nos rodeia. O «peregrino russo», que caminhava em contínua oração, conta que esta oração não o separava da realidade externa: «quando me encontrava com as pessoas, parecia-me que eram todas tão amáveis como se fossem da minha própria família. (...) E a felicidade não só iluminava o interior da minha alma, mas o próprio mundo exterior aparecia-me sob um aspeto maravilhoso».[115] 153. Nem a própria história desaparece. A oração, precisamente porque se alimenta do dom de Deus que se derrama na nossa vida, deveria ser sempre rica de memória. A memória das obras de Deus está na base da experiência da aliança entre Deus e o seu povo. Se Deus quis entrar na história, a oração é tecida de recordações: não só da recordação da Palavra revelada, mas também da vida própria, da vida dos outros, do que o Senhor fez na sua Igreja. É a memória agradecida de que fala o próprio Santo Inácio de Loyola, na sua «Contemplação para alcançar o amor»,[116] quando nos pede para trazer à memória todos os benefícios que recebemos do Senhor. Contempla a tua história quando rezas e, nela, encontrarás tanta misericórdia. Ao mesmo tempo, isto alimentará a tua consciência com a certeza de que o Senhor te conserva na sua memória e nunca te esquece. Consequentemente tem sentido pedir-Lhe que ilumine até mesmo os pequenos detalhes da tua existência, que não Lhe passam despercebidos. 154. A súplica é expressão do coração que confia em Deus, pois sabe que sozinho não consegue. Na vida do povo fiel de Deus, encontramos muitas súplicas cheias de ternura crente e de profunda confiança. Não desvalorizemos a oração de petição, que tantas vezes nos tranquiliza o coração e ajuda a continuar a lutar com esperança. A súplica de intercessão tem um valor particular, porque é um ato de confiança em Deus e, ao mesmo tempo, uma expressão de amor ao próximo. Alguns, por preconceitos espiritualistas, pensam que a oração deveria ser uma pura contemplação de Deus, sem distrações, como se os nomes e os rostos dos irmãos fossem um distúrbio a evitar. Ao contrário, a verdade é que a oração será mais agradável a Deus e mais santificadora, se nela procurarmos, através da intercessão, viver o duplo mandamento que Jesus nos deixou. A intercessão expressa o compromisso fraterno com os outros, quando somos capazes de incorporar nela a vida deles, as suas angústias mais inquietantes e os seus melhores sonhos. A quem se entrega generosamente à intercessão, podem-se aplicar estas palavras bíblicas: «Eis o amigo dos seus irmãos, aquele que reza muito pelo povo» (2 Mac 15, 14). 155. Se verdadeiramente reconhecemos que Deus existe, não podemos deixar de O adorar, por vezes num silêncio cheio de enlevo, ou de Lhe cantar em festivo louvor. Assim expressamos o que vivia o Beato Carlos Foucauld, quando disse: «Logo que acreditei que Deus existia, compreendi que só podia viver para Ele».[117] Na própria vida do povo peregrino, há muitos gestos simples de pura adoração, como, por exemplo, quando «o olhar do peregrino pousa sobre uma imagem que simboliza a ternura e a proximidade de Deus. O amor detém-se, contempla o mistério, desfruta dele em silêncio».[118] 156. A leitura orante da Palavra de Deus, «mais doce do que o mel» (Sal 119/118, 103) e «espada de dois gumes» (Heb 4, 12), consente de nos determos a escutar o Mestre fazendo da sua palavra farol para os nossos passos, luz para o nosso caminho (cf. Sal 119/118, 105). Como justamente nos lembraram os Bispos da Índia, «a devoção à Palavra de Deus não é apenas uma dentre muitas devoções, uma coisa bela mas facultativa. Pertence ao coração e à própria identidade da vida cristã. A Palavra tem em si mesma a força para transformar a vida».[119] 157. O encontro com Jesus nas Escrituras conduz-nos à Eucaristia, onde essa mesma Palavra atinge a sua máxima eficácia, porque é presença real d’Aquele que é a Palavra viva. Lá o único Absoluto recebe a maior adoração que se Lhe possa tributar neste mundo, porque é o próprio Cristo que Se oferece. E, quando O recebemos na Comunhão, renovamos a nossa aliança com Ele e consentimos-Lhe que realize cada vez mais a sua obra transformadora. Capítulo V. LUTA, VIGILÂNCIA E DISCERNIMENTO. 158. A vida cristã é uma luta permanente. Requer-se força e coragem para resistir às tentações do demónio e anunciar o Evangelho. Esta luta é magnífica, porque nos permite cantar vitória todas as vezes que o Senhor triunfa na nossa vida. A luta e a vigilância. 159. Não se trata apenas de uma luta contra o mundo e a mentalidade mundana, que nos engana, atordoa e torna medíocres sem empenhamento e sem alegria. Nem se reduz a uma luta contra a própria fragilidade e as próprias inclinações (cada um tem a sua: para a preguiça, a luxúria, a inveja, os ciúmes, etc.). Mas é também uma luta constante contra o demónio, que é o príncipe do mal. O próprio Jesus celebra as nossas vitórias. Alegrava-Se quando os seus discípulos conseguiam fazer avançar o anúncio do Evangelho, superando a oposição do Maligno, e exultava: «Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago» (Lc 10, 18). Algo mais do que um mito. 160. Não admitiremos a existência do demónio, se nos obstinarmos a olhar a vida apenas com critérios empíricos e sem uma perspetiva sobrenatural. A convicção de que este poder maligno está no meio de nós é precisamente aquilo que nos permite compreender por que, às vezes, o mal tem uma força destruidora tão grande. É verdade que os autores bíblicos tinham uma bagagem conceitual limitada para expressar algumas realidades e que, nos tempos de Jesus, podia-se confundir, por exemplo, uma epilepsia com a possessão do demónio. Mas isto não deve levar-nos a simplificar demasiado a realidade afirmando que todos os casos narrados nos Evangelhos eram doenças psíquicas e que, em última análise, o demónio não existe ou não intervém. A sua presença consta nas primeiras páginas da Sagrada Escritura, que termina com a vitória de Deus sobre o demónio.[120] De facto, quando Jesus nos deixou a oração do Pai-Nosso, quis que a concluíssemos pedindo ao Pai que nos livrasse do Maligno. A expressão usada não se refere ao mal em abstrato; a sua tradução mais precisa é «o Maligno». Indica um ser pessoal que nos atormenta. Jesus ensinou-nos a pedir cada dia está libertação para que o seu poder não nos domine. 161. Então, não pensemos que seja um mito, uma representação, um símbolo, uma figura ou uma ideia.[121] Este engano leva-nos a diminuir a vigilância, a descuidar-nos e a ficar mais expostos. O demónio não precisa de nos possuir. Envenena-nos com o ódio, a tristeza, a inveja, os vícios. E assim, enquanto abrandamos a vigilância, ele aproveita para destruir a nossa vida, as nossas famílias e as nossas comunidades, porque, «como um leão a rugir, anda a rondar-vos, procurando a quem devorar» (1 Ped 5, 8). Despertos e confiantes. 162. A Palavra de Deus convida-nos, explicitamente, a resistir «contra as maquinações do diabo» (Ef 6, 11) e a «apagar todas as setas incendiadas do maligno» (Ef 6, 16). Não se trata de palavras poéticas, porque o nosso caminho para a santidade é também uma luta constante. Quem não quiser reconhecê-lo, ver-se-á exposto ao fracasso ou à mediocridade. Para a luta, temos as armas poderosas que o Senhor nos dá: a fé que se expressa na oração, a meditação da Palavra de Deus, a celebração da Missa, a adoração eucarística, a Reconciliação sacramental, as obras de caridade, a vida comunitária, o compromisso missionário. Se nos descuidarmos, facilmente nos seduzirão as falsas promessas do mal. Ora, como dizia o Santo Cura Brochero, «que importa que Lúcifer prometa libertar-vos e até vos atire para o meio de todos os seus bens, se são bens enganadores, se são bens envenenados?»[122] 163. Neste caminho, o progresso no bem, o amadurecimento espiritual e o crescimento do amor são o melhor contrapeso ao mal. Ninguém resiste, se escolhe arrastar-se em ponto morto, se se contenta com pouco, se deixa de sonhar com a oferta de maior dedicação ao Senhor; e, menos ainda, se cai num sentido de derrota, porque «quem começa sem confiança, perdeu de antemão metade da batalha e enterra os seus talentos. (…) O triunfo cristão é sempre uma cruz, mas cruz que é, simultaneamente, estandarte de vitória, que se empunha com ternura batalhadora contra as investidas do mal».[123] A corrupção espiritual. 164. O caminho da santidade é uma fonte de paz e alegria que o Espírito nos dá, mas, ao mesmo tempo, exige que estejamos com «as lâmpadas acesas» (cf. Lc 12, 35) e permaneçamos vigilantes: «afastai-vos de toda a espécie de mal» (1 Ts 5, 22); «vigiai» (Mt 24, 42; cf. Mc 13, 35); não adormeçamos (cf. 1 Ts 5, 6). Pois, quem não se dá conta de cometer faltas graves contra a Lei de Deus, pode deixar-se cair numa espécie de entorpecimento ou sonolência. Como não encontra nada de grave a censurar-se, não adverte aquela tibieza que pouco a pouco se vai apoderando da sua vida espiritual e acaba por ficar corroído e corrompido. 165. A corrupção espiritual é pior que a queda dum pecador, porque trata-se duma cegueira cómoda e autossuficiente, em que tudo acaba por parecer lícito: o engano, a calúnia, o egoísmo e muitas formas subtis de autorreferencialidade, já que «também Satanás se disfarça em anjo de luz» (2 Cor 11, 14). Assim acabou os seus dias Salomão, enquanto o grande pecador David soube superar a sua miséria. Num trecho evangélico, Jesus alerta-nos contra esta tentação insidiosa que nos faz escorregar até à corrupção: fala duma pessoa libertada do demónio a qual, pensando que a sua vida já estivesse limpa, acabaria possuída por outros sete espíritos malignos (cf. Lc 11, 24-26). E outro texto bíblico usa esta imagem impressionante: «O cão volta ao seu vómito» (2 Ped 2, 22; cf. Pv 26, 11). O discernimento. 166. Como é possível saber se algo vem do Espírito Santo ou se deriva do espírito do mundo e do espírito maligno? A única forma é o discernimento. Este não requer apenas uma boa capacidade de raciocinar e sentido comum, é também um dom que é preciso pedir. Se o pedirmos com confiança ao Espírito Santo e, ao mesmo tempo, nos esforçarmos por cultivá-lo com a oração, a reflexão, a leitura e o bom conselho, poderemos certamente crescer nesta capacidade espiritual. Uma necessidade imperiosa. 167. Hoje em dia, tornou-se particularmente necessária a capacidade de discernimento, porque a vida atual oferece enormes possibilidades de ação e distração, sendo-nos apresentadas pelo mundo como se fossem todas válidas e boas. Todos, mas especialmente os jovens, estão sujeitos a um zapping constante. É possível navegar simultaneamente em dois ou três visores e interagir ao mesmo tempo em diferentes cenários virtuais. Sem a sapiência do discernimento, podemos facilmente transformar-nos em marionetes à mercê das tendências da ocasião. 168. Isto revela-se particularmente importante, quando aparece uma novidade na própria vida, sendo necessário então discernir se é o vinho novo que vem de Deus ou uma novidade enganadora do espírito do mundo ou do espírito maligno. Noutras ocasiões, sucede o contrário, porque as forças do mal induzem-nos a não mudar, a deixar as coisas como estão, a optar pelo imobilismo e a rigidez e, assim, impedimos que atue o sopro do Espírito Santo. Somos livres, com a liberdade de Jesus, mas Ele chama-nos a examinar o que há dentro de nós – desejos, angústias, temores, expetativas – e o que acontece fora de nós – os «sinais dos tempos» –, para reconhecer os caminhos da liberdade plena: «examinai tudo, guardai o que é bom» (1 Ts 5, 21). Sempre à luz do Senhor. 169. O discernimento não é necessário apenas em momentos extraordinários, quando temos de resolver problemas graves ou quando se deve tomar uma decisão crucial; mas é um instrumento de luta, para seguir melhor o Senhor. É-nos sempre útil, para sermos capazes de reconhecer os tempos de Deus e a sua graça, para não desperdiçarmos as inspirações do Senhor, para não ignorarmos o seu convite a crescer. Frequentemente isto decide-se nas coisas pequenas, no que parece irrelevante, porque a magnanimidade mostra-se nas coisas simples e diárias.[124] Trata-se de não colocar limites rumo ao máximo, ao melhor e ao mais belo, mas ao mesmo tempo concentrar-se no pequeno, nos compromissos de hoje. Por isso, peço a todos os cristãos que não deixem de fazer cada dia, em diálogo com o Senhor que nos ama, um sincero exame de consciência. Ao mesmo tempo, o discernimento leva-nos a reconhecer os meios concretos que o Senhor predispõe, no seu misterioso plano de amor, para não ficarmos apenas pelas boas intenções. Um dom sobrenatural. 170. É verdade que o discernimento espiritual não exclui as contribuições de sabedorias humanas, existenciais, psicológicas, sociológicas ou morais; mas transcende-as. Não bastam sequer as normas sábias da Igreja. Lembremo-nos sempre de que o discernimento é uma graça. Embora inclua a razão e a prudência, supera-as, porque trata-se de entrever o mistério daquele projeto, único e irrepetível, que Deus tem para cada um e que se realiza no meio dos mais variados contextos e limites. Não está em jogo apenas um bem-estar temporal, nem a satisfação de realizar algo de útil, nem mesmo o desejo de ter a consciência tranquila. Está em jogo o sentido da minha vida diante do Pai que me conhece e ama, aquele sentido verdadeiro para o qual posso orientar a minha existência e que ninguém conhece melhor do que Ele. Em suma, o discernimento leva à própria fonte da vida que não morre, isto é, conhecer o Pai, o único Deus verdadeiro, e a quem Ele enviou, Jesus Cristo (cf. Jo 17, 3). Não requer capacidades especiais nem está reservado aos mais inteligentes e instruídos; o Pai compraz-Se em manifestar-Se aos humildes (cf. Mt 11, 25). 171. Embora o Senhor nos fale de muitos e variados modos durante o nosso trabalho, através dos outros e a todo o momento, não é possível prescindir do silêncio da oração prolongada para perceber melhor aquela linguagem, para interpretar o significado real das inspirações que julgamos ter recebido, para acalmar ansiedades e recompor o conjunto da própria vida à luz de Deus. Assim, podemos permitir o nascimento daquela nova síntese que brota da vida iluminada pelo Espírito. Fala, Senhor. 172. Pode acontecer, porém, que na própria oração evitemos de nos deixar confrontar com a liberdade do Espírito, que age como quer. Não nos esqueçamos de que o discernimento orante exige partir da predisposição para escutar: o Senhor, os outros, a própria realidade que não cessa de nos interpelar de novas maneiras. Somente quem está disposto a escutar é que tem a liberdade de renunciar ao seu ponto de vista parcial e insuficiente, aos seus hábitos, aos seus esquemas. Desta forma, está realmente disponível para acolher uma chamada que quebra as suas seguranças, mas leva-o a uma vida melhor, porque não é suficiente que tudo corra bem, que tudo esteja tranquilo. Pode acontecer que Deus nos esteja a oferecer algo mais e, na nossa cómoda distração, não o reconheçamos. 173. Tal atitude de escuta implica, naturalmente, obediência ao Evangelho como último critério, mas também ao Magistério que o guarda, procurando encontrar no tesouro da Igreja aquilo que pode ser mais fecundo para «o hoje» da salvação. Não se trata de aplicar receitas ou repetir o passado, uma vez que as mesmas soluções não são válidas em todas as circunstâncias e o que foi útil num contexto pode não o ser noutro. O discernimento dos espíritos liberta-nos da rigidez, que não tem lugar no «hoje» perene do Ressuscitado. Somente o Espírito sabe penetrar nas dobras mais recônditas da realidade e ter em conta todas as suas nuances, para que a novidade do Evangelho surja com outra luz. A lógica do dom e da cruz. 174. Condição essencial para avançar no discernimento é educar-se para a paciência de Deus e os seus tempos, que nunca são os nossos. Ele não faz descer fogo do céu sobre os incrédulos (cf. Lc 9, 54), nem permite aos zelosos arrancar o joio que cresce juntamente com o trigo (cf. Mt 13, 29). Além disso requer-se generosidade, porque «a felicidade está mais em dar do que em receber» (At 20, 35). Faz-se discernimento, não para descobrir que mais proveito podemos tirar desta vida, mas para reconhecer como podemos cumprir melhor a missão que nos foi confiada no Batismo, e isto implica estar disposto a fazer renúncias até dar tudo. Com efeito, a felicidade é paradoxal, proporcionando-nos as melhores experiências quando aceitamos aquela lógica misteriosa que não é deste mundo, mas «é a nossa lógica», como dizia São Boaventura,[125] referindo-se à cruz. Quando uma pessoa assume esta dinâmica, não deixa anestesiar a sua consciência e abre-se generosamente ao discernimento. 175. Quando perscrutamos na presença de Deus os caminhos da vida, não há espaços que fiquem excluídos. Em todos os aspetos da existência, podemos continuar a crescer e dar algo mais a Deus, mesmo naqueles em que experimentamos as dificuldades mais fortes. Mas é necessário pedir ao Espírito Santo que nos liberte e expulse aquele medo que nos leva a negar-Lhe a entrada nalguns aspetos da nossa vida. Aquele que pede tudo, também dá tudo, e não quer entrar em nós para mutilar ou enfraquecer, mas para levar à perfeição. Isto mostra-nos que o discernimento não é uma autoanálise presuntuosa, uma introspeção egoísta, mas uma verdadeira saída de nós mesmos para o mistério de Deus, que nos ajuda a viver a missão para a qual nos chamou a bem dos irmãos. 176. Desejo coroar estas reflexões com a figura de Maria, porque Ela viveu como ninguém as bem-aventuranças de Jesus. É Aquela que estremecia de júbilo na presença de Deus, Aquela que conservava tudo no seu coração e Se deixou atravessar pela espada. É a mais abençoada dos santos entre os santos, Aquela que nos mostra o caminho da santidade e nos acompanha. E, quando caímos, não aceita deixar-nos por terra e, às vezes, leva-nos nos seus braços sem nos julgar. Conversar com Ela consola-nos, liberta-nos, santifica-nos. A Mãe não necessita de muitas palavras, não precisa que nos esforcemos demasiado para Lhe explicar o que se passa conosco. É suficiente sussurrar uma vez e outra: «Ave Maria (...)». 177. Espero que estas páginas sejam úteis para que toda a Igreja se dedique a promover o desejo da santidade. Peçamos ao Espírito Santo que infunda em nós um desejo intenso de ser santos para a maior glória de Deus; e animemo-nos uns aos outros neste propósito. Assim, compartilharemos uma felicidade que o mundo não poderá tirar-nos.
Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 19 de março – Solenidade de São José – do ano 2018, sexto do meu pontificado. Franciscus. www.vatican.va. Abraço. Davi


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