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Exortação Apostólica. GAUDETE ET EXSULTATE. Do Santo Padre Francisco. I. SOBRE
A CHAMADA À SANTIDADE NO MUNDO ATUAL. 1. «ALEGRAI-VOS
E EXULTAI» (Mt 5, 12), diz Jesus a quantos são perseguidos
ou humilhados por causa d’Ele. O Senhor pede tudo e, em troca, oferece a vida
verdadeira, a felicidade para a qual fomos criados. Quer-nos santos e espera
que não nos resignemos com uma vida medíocre, superficial e indecisa. Com
efeito, a chamada à santidade está patente, de várias maneiras, desde as
primeiras páginas da Bíblia; a Abraão, o Senhor propô-la nestes termos: «anda
na minha presença e sê perfeito» (Gn 17, 1). 2. Não se deve esperar
aqui um tratado sobre a santidade, com muitas definições e distinções que
poderiam enriquecer este tema importante ou com análises que se poderiam fazer
acerca dos meios de santificação. O meu objetivo é humilde: fazer ressoar mais
uma vez a chamada à santidade, procurando encarná-la no contexto atual, com os
seus riscos, desafios e oportunidades, porque o Senhor escolheu cada um de nós
«para ser santo e irrepreensível na sua presença, no amor» (cf. Ef 1,
4). Capítulo I A CHAMADA
À SANTIDADE. Os
santos que nos encorajam e acompanham.
3. Na Carta aos Hebreus, mencionam-se várias testemunhas que nos encorajam a
«correr com perseverança a prova que nos é proposta» (12, 1): fala-se de
Abraão, Sara, Moisés, Gedeão e vários outros (cf. cap. 11). Mas, sobretudo
somos convidados a reconhecer-nos «circundados de tal nuvem de testemunhas»
(12, 1), que incitam a não deter-nos no caminho, que nos estimulam a continuar
a correr para a meta. E, entre tais testemunhas, podem estar a nossa própria
mãe, uma avó ou outras pessoas próximas de nós (cf. 2 Tm 1,
5). A sua vida talvez não tenha sido sempre perfeita, mas, mesmo no meio de
imperfeições e quedas, continuaram a caminhar e agradaram ao Senhor. 4. Os
santos, que já chegaram à presença de Deus, mantêm conosco laços de amor e
comunhão. Atesta-o o livro do Apocalipse, quando fala dos mártires
intercessores: «Vi debaixo do altar as almas dos que tinham sido mortos, por
causa da Palavra de Deus e por causa do testemunho que deram. E clamavam em
alta voz: “Tu, que és o Poderoso, o Santo, o Verdadeiro! Até quando esperarás
para julgar?”» (6, 9-10). Podemos dizer que «estamos circundados, conduzidos e
guiados pelos amigos de Deus. (...) Não devo carregar sozinho o que, na
realidade, nunca poderia carregar sozinho. Os numerosos santos de Deus
protegem-me, amparam-me e guiam-me».[1]
5. Nos processos de beatificação e canonização, tomam-se em consideração os
sinais de heroicidade na prática das virtudes, o sacrifício da vida no martírio
e também os casos em que se verificou um oferecimento da própria vida pelos
outros, mantido até à morte. Esta doação manifesta uma imitação exemplar de
Cristo, e é digna da admiração dos fiéis.[2] Lembremos,
por exemplo, a Beata Maria Gabriela Sagheddu (1914-1939), que ofereceu a sua
vida pela unidade dos cristãos. Os santos
ao pé da porta. 6. Não pensemos apenas em quantos já estão
beatificados ou canonizados. O Espírito Santo derrama a santidade, por toda a
parte, no santo povo fiel de Deus, porque «aprouve a Deus salvar e santificar
os homens, não individualmente, excluída qualquer ligação entre eles, mas
constituindo-os em povo que O conhecesse na verdade e O servisse santamente».[3] O
Senhor, na história da salvação, salvou um povo. Não há identidade plena, sem
pertença a um povo. Por isso, ninguém se salva sozinho, como indivíduo isolado,
mas Deus atrai-nos tendo em conta a complexa rede de relações interpessoais que
se estabelecem na comunidade humana: Deus quis entrar numa dinâmica popular, na
dinâmica dum povo. 7. Gosto de ver a santidade no povo paciente de Deus: nos
pais que criam os seus filhos com tanto amor, nos homens e mulheres que
trabalham a fim de trazer o pão para casa, nos doentes, nas consagradas idosas
que continuam a sorrir. Nesta constância de continuar a caminhar dia após dia,
vejo a santidade da Igreja militante. Esta é muitas vezes a santidade «ao pé da
porta», daqueles que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus,
ou – por outras palavras – da «classe média da santidade».[4]
8. Deixemo-nos estimular pelos sinais de santidade que o Senhor nos apresenta
através dos membros mais humildes deste povo que «participam também da função
profética de Cristo, difundindo o seu testemunho vivo, sobretudo pela vida de
fé e de caridade».[5] Como
nos sugere Santa Teresa Benedita da Cruz, pensemos que é através de muitos
deles que se constrói a verdadeira história: «Na noite mais escura, surgem os
maiores profetas e os santos. Todavia a corrente vivificante da vida mística
permanece invisível. Certamente, os eventos decisivos da história do mundo
foram essencialmente influenciados por almas sobre as quais nada se diz nos
livros de história. E saber quais sejam as almas a quem devemos agradecer os
acontecimentos decisivos da nossa vida pessoal, é algo que só conheceremos no
dia em que tudo o está oculto for revelado».[6]
9. A santidade é o rosto mais belo da Igreja. Mas, mesmo fora da Igreja
Católica e em áreas muito diferentes, o Espírito suscita «sinais da sua
presença, que ajudam os próprios discípulos de Cristo».[7] Por
outro lado, São João Paulo II lembrou-nos que o «testemunho, dado por Cristo
até ao derramamento do sangue, tornou-se património comum de católicos, ortodoxos,
anglicanos e protestantes».[8] Na
sugestiva comemoração ecuménica, que ele quis celebrar no Coliseu durante o
Jubileu do ano 2000, defendeu que os mártires são «uma herança que fala com uma
voz mais alta do que os fatores de divisão».[9] O Senhor chama. 10. Tudo isto é
importante. Mas, o que quero recordar com esta Exortação é sobretudo a chamada
à santidade que o Senhor faz a cada um de nós, a chamada que dirige também a
ti: «sede santos, porque Eu sou santo» (Lv 11, 45; cf. 1
Ped 1, 16). O Concílio Vaticano II salientou vigorosamente: «munidos
de tantos e tão grandes meios de salvação, todos os fiéis, seja qual for a sua
condição ou estado, são chamados pelo Senhor à perfeição do Pai, cada um por
seu caminho».[10]
11. «Cada um por seu caminho», diz o Concílio. Por isso, uma pessoa não deve
desanimar, quando contempla modelos de santidade que lhe parecem inatingíveis.
Há testemunhos que são úteis para nos estimular e motivar, mas não para
procurarmos copiá-los, porque isso poderia até afastar-nos do caminho, único e
específico, que o Senhor predispôs para nós. Importante é que cada crente
discirna o seu próprio caminho e traga à luz o melhor de si mesmo, quanto Deus
colocou nele de muito pessoal (cf. 1 Cor 12, 7), e não se
esgote procurando imitar algo que não foi pensado para ele. Todos estamos
chamados a ser testemunhas, mas há muitas formas existenciais de testemunho.[11] De
facto, quando o grande místico São João da Cruz escrevera o seu Cântico
Espiritual, preferia evitar regras fixas para todos, explicando que os seus
versos estavam escritos para que cada um os aproveitasse «a seu modo».[12] Pois
a vida divina comunica-se «a uns duma maneira e a outros doutra».[13]
12. A propósito de tais formas distintas, quero assinalar que também o «génio
feminino» se manifesta em estilos femininos de santidade, indispensáveis para
refletir a santidade de Deus neste mundo. E precisamente em períodos nos quais
as mulheres estiveram mais excluídas, o Espírito Santo suscitou santas, cujo
fascínio provocou novos dinamismos espirituais e reformas importantes na
Igreja. Podemos citar Santa Hildegarda de Bingen (1098-1179), Santa Brígida,
Santa Catarina de Sena, Santa Teresa de Ávila ou Santa Teresa de Lisieux; mas
interessa-me sobretudo lembrar tantas mulheres desconhecidas ou esquecidas que
sustentaram e transformaram, cada uma a seu modo, famílias e comunidades com a
força do seu testemunho. 13. Isto deveria entusiasmar e animar cada um a dar o
melhor de si mesmo para crescer rumo àquele projeto, único e irrepetível, que
Deus quis, desde toda a eternidade, para ele: «antes de te haver formado no
ventre materno, Eu já te conhecia; antes que saísses do seio de tua mãe, Eu te
consagrei» (Jer 1, 5). A ti também.
14. Para ser santo, não é necessário ser bispo, sacerdote, religiosa ou
religioso. Muitas vezes somos tentados a pensar que a santidade esteja
reservada apenas àqueles que têm possibilidade de se afastar das ocupações
comuns, para dedicar muito tempo à oração. Não é assim. Todos somos chamados a
ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas ocupações de
cada dia, onde cada um se encontra. És uma consagrada ou um consagrado? Sê
santo, vivendo com alegria a tua doação. Estás casado? Sê santo, amando e
cuidando do teu marido ou da tua esposa, como Cristo fez com a Igreja. És um
trabalhador? Sê santo, cumprindo com honestidade e competência o teu trabalho
ao serviço dos irmãos. És progenitor, avó ou avô? Sê santo, ensinando com
paciência as crianças a seguirem Jesus. Estás investido em autoridade? Sê
santo, lutando pelo bem comum e renunciando aos teus interesses pessoais.[14]
15. Deixa que a graça do teu Batismo frutifique num caminho de santidade. Deixa
que tudo esteja aberto a Deus e, para isso, opta por Ele, escolhe Deus sem
cessar. Não desanimes, porque tens a força do Espírito Santo para tornar
possível a santidade e, no fundo, esta é o fruto do Espírito Santo na tua vida
(cf. Gal 5, 22-23). Quando sentires a tentação de te enredares
na tua fragilidade, levanta os olhos para o Crucificado e diz-Lhe: «Senhor, sou
um miserável! Mas Vós podeis realizar o milagre de me tornar um pouco melhor».
Na Igreja, santa e formada por pecadores, encontrarás tudo o que precisas para
crescer rumo à santidade. «Como uma noiva que se adorna com as suas joias» (Is 61,
10), o Senhor cumulou-a de dons com a Palavra, os Sacramentos, os santuários, a
vida das comunidades, o testemunho dos santos e uma beleza multiforme que
deriva do amor do Senhor. 16. Esta santidade, a que o Senhor te chama, irá
crescendo com pequenos gestos. Por exemplo, uma senhora vai ao mercado fazer as
compras, encontra uma vizinha, começam a falar e… surgem as críticas. Mas esta
mulher diz para consigo: «Não! Não falarei mal de ninguém». Isto é um passo
rumo à santidade. Depois, em casa, o seu filho reclama a atenção dela para falar
das suas fantasias e ela, embora cansada, senta-se ao seu lado e escuta com
paciência e carinho. Trata-se doutra oferta que santifica. Ou então atravessa
um momento de angústia, mas lembra-se do amor da Virgem Maria, pega no terço e
reza com fé. Este é outro caminho de santidade. Noutra ocasião, segue pela
estrada fora, encontra um pobre e detém-se a conversar carinhosamente com ele.
É mais um passo. 17. Sucede, às vezes, que a vida apresenta desafios maiores e,
através deles, o Senhor convida-nos a novas conversões que permitam à sua graça
manifestar-se melhor na nossa existência, «para nos fazer participantes da sua
santidade» (Heb 12, 10). Outras vezes trata-se apenas de encontrar
uma forma mais perfeita de viver o que já fazemos: «há inspirações que nos
fazem apenas tender para uma perfeição extraordinária das práticas ordinárias
da vida cristã».[15] Quando
estava na prisão, o Cardeal Francisco Xavier Nguyen van Thuan (1928-2002)
renunciou a desgastar-se com a ânsia da sua libertação. A sua decisão foi
«viver o momento presente, cumulando-o de amor»; eis o modo como a
concretizava: «aproveito as ocasiões que vão surgindo cada dia para realizar
ações ordinárias de maneira extraordinária».[16]
18. Deste modo, sob o impulso da graça divina, com muitos gestos vamos
construindo aquela figura de santidade que Deus quis para nós: não como seres
autossuficientes, mas «como bons administradores das várias graças de Deus» (1
Ped 4, 10). Os Bispos da Nova Zelândia ensinaram-nos, justamente, que
é possível amar com o amor incondicional do Senhor, porque o Ressuscitado
partilha a sua vida poderosa com as nossas vidas frágeis: «o seu amor não tem
limites e, uma vez doado, nunca volta atrás. Foi incondicional e permaneceu
fiel. Amar assim não é fácil, porque muitas vezes somos tão frágeis; mas,
precisamente para podermos amar como Ele nos amou, Cristo partilha connosco a
sua própria vida ressuscitada. Desta forma, a nossa vida demonstra o seu poder
em ação, inclusive no meio da fragilidade humana».[17] A tua missão em Cristo. 19.
Para um cristão, não é possível imaginar a própria missão na terra, sem a
conceber como um caminho de santidade, porque «esta é, na verdade, a vontade de
Deus: a [nossa] santificação» (1 Ts 4, 3). Cada santo é uma missão;
é um projeto do Pai que visa refletir e encarnar, num momento determinado da
história, um aspeto do Evangelho. 20. Esta missão tem o seu sentido pleno em
Cristo e só se compreende a partir d’Ele. No fundo, a santidade é viver em
união com Ele os mistérios da sua vida; consiste em associar-se duma maneira
única e pessoal à morte e ressurreição do Senhor, em morrer e ressuscitar
continuamente com Ele. Mas pode também envolver a reprodução na própria
existência de diferentes aspetos da vida terrena de Jesus: a vida oculta, a
vida comunitária, a proximidade aos últimos, a pobreza e outras manifestações
da sua doação por amor. A contemplação destes mistérios, como propunha Santo
Inácio de Loyola, leva-nos a encarná-los nas nossas opções e atitudes.[18] Porque
«tudo, na vida de Jesus, é sinal do seu mistério»,[19] «toda
a vida de Cristo é revelação do Pai»,[20] «toda
a vida de Cristo é mistério de redenção»,[21] «toda
a vida de Cristo é mistério de recapitulação»,[22] e
«tudo o que Cristo viveu, Ele próprio faz com que o possamos viver n’Ele e Ele
vivê-lo em nós».[23]
21. O desígnio do Pai é Cristo, e nós n’Ele. Em última análise, é Cristo que
ama em nós, porque a santidade «mais não é do que a caridade plenamente
vivida».[24] Por
conseguinte, «a medida da santidade é dada pela estatura que Cristo alcança em
nós, desde quando, com a força do Espírito Santo, modelamos toda a nossa vida
sobre a Sua».[25] Assim,
cada santo é uma mensagem que o Espírito Santo extrai da riqueza de Jesus
Cristo e dá ao seu povo. 22. Para identificar qual seja essa palavra que o
Senhor quer dizer através dum santo, não convém deter-se nos detalhes, porque
nisso também pode haver erros e quedas. Nem tudo o que um santo diz é
plenamente fiel ao Evangelho, nem tudo o que faz é autêntico ou perfeito. O que
devemos contemplar é o conjunto da sua vida, o seu caminho inteiro de
santificação, aquela figura que reflete algo de Jesus Cristo e que sobressai
quando se consegue compor o sentido da totalidade da sua pessoa.[26]
23. Isto é um vigoroso apelo para todos nós. Também tu precisas de conceber a
totalidade da tua vida como uma missão. Tenta fazê-lo, escutando a Deus na
oração e identificando os sinais que Ele te dá. Pede sempre, ao Espírito Santo,
o que espera Jesus de ti em cada momento da tua vida e em cada opção que tenhas
de tomar, para discernir o lugar que isso ocupa na tua missão. E permite-Lhe
plasmar em ti aquele mistério pessoal que possa refletir Jesus Cristo no mundo
de hoje. 24. Oxalá consigas identificar a palavra, a mensagem de Jesus que Deus
quer dizer ao mundo com a tua vida. Deixa-te transformar, deixa-te renovar pelo
Espírito para que isso seja possível, e assim a tua preciosa missão não
fracassará. O Senhor levá-la-á a cumprimento mesmo no meio dos teus erros e
momentos negativos, desde que não abandones o caminho do amor e permaneças
sempre aberto à sua ação sobrenatural que purifica e ilumina. A atividade que santifica. 25.
Dado que não se pode conceber Cristo sem o Reino que Ele veio trazer, também a
tua missão é inseparável da construção do Reino: «procurai primeiro o Reino de
Deus e a sua justiça» (Mt 6, 33). A tua identificação com Cristo e
os seus desígnios requer o compromisso de construíres, com Ele, este Reino de
amor, justiça e paz para todos. O próprio Cristo quer vivê-lo contigo em todos
os esforços ou renúncias que isso implique e também nas alegrias e na fecundidade
que te proporcione. Por isso, não te santificarás sem te entregares de corpo e
alma, dando o melhor de ti neste compromisso. 26. Não é saudável amar o
silêncio e esquivar o encontro com o outro, desejar o repouso e rejeitar a
atividade, buscar a oração e menosprezar o serviço. Tudo pode ser recebido e
integrado como parte da própria vida neste mundo, entrando a fazer parte do
caminho de santificação. Somos chamados a viver a contemplação mesmo no meio da
ação, e santificamo-nos no exercício responsável e generoso da nossa missão.
27. Poderá porventura o Espírito Santo enviar-nos para cumprir uma missão e, ao
mesmo tempo, pedir-nos que fujamos dela ou que evitemos doar-nos totalmente
para preservarmos a paz interior? Obviamente não; mas, às vezes, somos tentados
a relegar para posição secundária a dedicação pastoral e o compromisso no
mundo, como se fossem «distrações» no caminho da santificação e da paz
interior. Esquecemo-nos disto: «não é que a vida tenha uma missão, mas a vida é
uma missão».[27]
28. Um compromisso movido pela ansiedade, o orgulho, a necessidade de aparecer
e dominar, certamente, não será santificador. O desafio é viver de tal forma a
própria doação, que os esforços tenham um sentido evangélico e nos identifiquem
cada vez mais com Jesus Cristo. Por isso, é usual falar, por exemplo, duma
espiritualidade do catequista, duma espiritualidade do clero diocesano, duma
espiritualidade do trabalho. Pela mesma razão, na Evangelii gaudium,
quis concluir com uma espiritualidade da missão, na Laudato si’ com uma espiritualidade
ecológica, e na Amoris laetitia com uma espiritualidade
da vida familiar. 29. Isto não implica menosprezar os momentos de quietude,
solidão e silêncio diante de Deus. Antes pelo contrário! Com efeito, as
novidades contínuas dos meios tecnológicos, o fascínio de viajar, as inúmeras
ofertas de consumo, às vezes, não deixam espaços vazios onde ressoe a voz de
Deus. Tudo se enche de palavras, prazeres epidérmicos e rumores a uma
velocidade cada vez maior; aqui não reina a alegria, mas a insatisfação de quem
não sabe para que vive. Então, como não reconhecer que precisamos de deter esta
corrida febril para recuperar um espaço pessoal, às vezes doloroso mas sempre
fecundo, onde se realize o diálogo sincero com Deus? Em certos momentos,
deveremos encarar a verdade de nós mesmos, para a deixar invadir pelo Senhor; e
isto nem sempre se consegue, se a pessoa «não se vê à beira do abismo da
tentação mais opressiva, se não sente a vertigem do precipício do abandono mais
desesperado, se não se encontra absolutamente só, no cume da solidão mais
radical».[28] Assim,
encontramos as grandes motivações que nos impelem a viver, em profundidade, as nossas
tarefas. 30. Os próprios meios de distração que invadem a vida atual levam-nos
também a absolutizar o tempo livre, no qual podemos utilizar, sem limites,
aqueles dispositivos que nos proporcionam divertimento e prazeres efémeros.[29] Em
consequência disso, ressente-se a própria missão, o compromisso esmorece, o
serviço generoso e disponível começa a retrair-se. Isto desnatura a experiência
espiritual. Poderá ser saudável um fervor espiritual que convive com a acédia
na ação evangelizadora ou no serviço dos outros? 31. Precisamos dum espírito de
santidade que impregne tanto a solidão como o serviço, tanto a intimidade como
a tarefa evangelizadora, para que cada instante seja expressão de amor doado
sob o olhar do Senhor. Desta forma, todos os momentos serão degraus no nosso
caminho de santificação. Mais vivos, mais
humanos. 32. Não tenhas medo da santidade. Não te tirará forças,
nem vida nem alegria. Muito pelo contrário, porque chegarás a ser o que o Pai
pensou quando te criou e serás fiel ao teu próprio ser. Depender d’Ele
liberta-nos das escravidões e leva-nos a reconhecer a nossa dignidade. Isto
vê-se em Santa Josefina Bakhita, que, «escravizada e vendida como escrava com
apenas sete anos de idade, sofreu muito nas mãos de patrões cruéis. Apesar
disso compreendeu a verdade profunda que Deus, e não o homem, é o verdadeiro
Patrão de todos os seres humanos, de cada vida humana. Esta experiência
torna-se fonte de grande sabedoria para esta humilde filha da África».[30]
33. Cada cristão, quanto mais se santifica, tanto mais fecundo se torna para o
mundo. Assim nos ensinaram os Bispos da África ocidental: «Somos chamados, no
espírito da nova evangelização, a ser evangelizados e a evangelizar através da
promoção de todos os batizados para que assumam as suas tarefas como sal da
terra e luz do mundo, onde quer que se encontrem».[31]
34. Não tenhas medo de apontar para mais alto, de te deixares amar e libertar
por Deus. Não tenhas medo de te deixares guiar pelo Espírito Santo. A santidade
não te torna menos humano, porque é o encontro da tua fragilidade com a força
da graça. No fundo, como dizia León Bloy, na vida «existe apenas uma tristeza:
a de não ser santo».[32] Capítulo II. DOIS INIMIGOS SUBTIS DA
SANTIDADE. 35. Neste contexto, desejo chamar a atenção para duas
falsificações da santidade que poderiam extraviar-nos: o gnosticismo e o
pelagianismo. São duas heresias que surgiram nos primeiros séculos do
cristianismo, mas continuam a ser de alarmante atualidade. Ainda hoje os
corações de muitos cristãos, talvez inconscientemente, deixam-se seduzir por
estas propostas enganadoras. Nelas aparece expresso um imanentismo
antropocêntrico, disfarçado de verdade católica.[33] Vejamos
estas duas formas de segurança doutrinária ou disciplinar, que dão origem «a um
elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez de evangelizar, se analisam e
classificam os demais e, em vez de facilitar o acesso à graça, consomem-se as
energias a controlar. Em ambos os casos, nem Jesus Cristo nem os outros
interessam verdadeiramente».[34] O gnosticismo atual. 36. O
gnosticismo supõe «uma fé fechada no subjetivismo, onde apenas interessa uma
determinada experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos que
supostamente confortam e iluminam, mas, em última instância, a pessoa fica
enclausurada na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos».[35] Uma mente sem Deus e sem carne.
37. Graças a Deus, ao longo da história da Igreja, ficou bem claro que
aquilo que mede a perfeição das pessoas é o seu grau de caridade, e não a
quantidade de dados e conhecimentos que possam acumular. Os «gnósticos»,
baralhados neste ponto, julgam os outros segundo conseguem, ou não, compreender
a profundidade de certas doutrinas. Concebem uma mente sem encarnação, incapaz
de tocar a carne sofredora de Cristo nos outros, engessada numa enciclopédia de
abstrações. Ao desencarnar o mistério, em última análise preferem «um Deus sem
Cristo, um Cristo sem Igreja, uma Igreja sem povo».[36]
38. Em suma, trata-se duma vaidosa superficialidade: muito movimento à
superfície da mente, mas não se move nem se comove a profundidade do
pensamento. No entanto, consegue subjugar alguns com o seu fascínio enganador,
porque o equilíbrio gnóstico é formal e supostamente asséptico, podendo assumir
o aspeto duma certa harmonia ou duma ordem que tudo abrange. 39. Mas atenção!
Não estou a referir-me aos racionalistas inimigos da fé cristã. Isto pode
acontecer dentro da Igreja, tanto nos leigos das paróquias como naqueles que
ensinam filosofia ou teologia em centros de formação. Com efeito, também é
típico dos gnósticos crer que eles, com as suas explicações, podem tornar
perfeitamente compreensível toda a fé e todo o Evangelho. Absolutizam as suas
teorias e obrigam os outros a submeter-se aos raciocínios que eles usam. Uma
coisa é o uso saudável e humilde da razão para refletir sobre o ensinamento
teológico e moral do Evangelho, outra é pretender reduzir o ensinamento de
Jesus a uma lógica fria e dura que procura dominar tudo[37]. Uma doutrina sem mistério. 40. O
gnosticismo é uma das piores ideologias, pois, ao mesmo tempo que exalta
indevidamente o conhecimento ou uma determinada experiência, considera que a
sua própria visão da realidade seja a perfeição. Assim, talvez sem se
aperceber, esta ideologia autoalimenta-se e torna-se ainda mais cega. Por
vezes, torna-se particularmente enganadora, quando se disfarça de
espiritualidade desencarnada. Com efeito, o gnosticismo, «por sua natureza,
quer domesticar o mistério»,[38] tanto
o mistério de Deus e da sua graça, como o mistério da vida dos outros. 41.
Quando alguém tem resposta para todas as perguntas, demonstra que não está no
bom caminho e é possível que seja um falso profeta, que usa a religião para seu
benefício, ao serviço das próprias lucubrações psicológicas e mentais. Deus
supera-nos infinitamente, é sempre uma surpresa e não somos nós que
determinamos a circunstância histórica em que O encontramos, já que não
dependem de nós o tempo, nem o lugar, nem a modalidade do encontro. Quem quer
tudo claro e seguro, pretende dominar a transcendência de Deus. 42. Nem se pode
pretender definir onde Deus não Se encontra, porque Ele está misteriosamente
presente na vida de toda a pessoa, na vida de cada um como Ele quer, e não o
podemos negar com as nossas supostas certezas. Mesmo quando a vida de alguém
tiver sido um desastre, mesmo que o vejamos destruído pelos vícios ou
dependências, Deus está presente na sua vida. Se nos deixarmos guiar mais pelo
Espírito do que pelos nossos raciocínios, podemos e devemos procurar o Senhor
em cada vida humana. Isto faz parte do mistério que as mentalidades gnósticas
acabam por rejeitar, porque não o podem controlar.
Os limites da razão. 43. Só de forma muito pobre, chegamos a
compreender a verdade que recebemos do Senhor. E, ainda com maior dificuldade,
conseguimos expressá-la. Por isso, não podemos pretender que o nosso modo de a
entender nos autorize a exercer um controlo rigoroso sobre a vida dos outros.
Quero lembrar que, na Igreja, convivem legitimamente diferentes maneiras de
interpretar muitos aspetos da doutrina e da vida cristã, que, na sua variedade,
«ajudam a explicitar melhor o tesouro riquíssimo da Palavra. [Certamente,] a
quantos sonham com uma doutrina monolítica defendida sem nuances por todos,
isto poderá parecer uma dispersão imperfeita».[39] Por
isso mesmo, algumas correntes gnósticas desprezaram a simplicidade tão concreta
do Evangelho e tentaram substituir o Deus trinitário e encarnado por uma
Unidade superior onde desaparecia a rica multiplicidade da nossa história. 44.
Na realidade, a doutrina, ou melhor, a nossa compreensão e expressão dela, «não
é um sistema fechado, privado de dinâmicas próprias capazes de gerar perguntas,
dúvidas, questões (…); e as perguntas do nosso povo, as suas angústias, batalhas,
sonhos e preocupações possuem um valor hermenêutico que não podemos ignorar, se
quisermos deveras levar a sério o princípio da encarnação. As suas perguntas
ajudam-nos a questionar-nos, as suas questões interrogam-nos».[40].
45. Com frequência, verifica-se uma perigosa confusão: julgar que, por sabermos
algo ou podermos explicá-lo com uma certa lógica, já somos santos, perfeitos,
melhores do que a «massa ignorante». São João Paulo II advertia, a quantos na
Igreja têm a possibilidade de uma formação mais elevada, contra a tentação de
cultivarem «um certo sentimento de superioridade relativamente aos outros
fiéis».[41] Na
realidade, porém, aquilo que julgamos saber sempre deveria ser uma motivação
para responder melhor ao amor de Deus, porque «se aprende para viver: teologia
e santidade são um binómio inseparável».[42].
46. São Francisco de Assis (1182-1226), ao ver que alguns dos seus discípulos
ensinavam a doutrina, quis evitar a tentação do gnosticismo. Então escreveu
assim a Santo António de Lisboa: «Apraz-me que interpreteis aos demais frades a
sagrada teologia, contanto que este estudo não apague neles o espírito da santa
oração e devoção».[43] Reconhecia
a tentação de transformar a experiência cristã num conjunto de especulações
mentais, que acabam por nos afastar do frescor do Evangelho. São Boaventura,
por sua vez, advertia que a verdadeira sabedoria cristã não se deve desligar da
misericórdia para com o próximo: «A maior sabedoria que pode existir consiste
em dispensar frutuosamente o que se possui e que lhe foi dado precisamente para
o distribuir (...). Por isso, como a misericórdia é amiga da sabedoria, assim a
avareza é sua inimiga».[44] «Há
atividades, como as obras de misericórdia e de piedade, que, unindo-se à
contemplação, não a impedem, antes favorecem-na».[45] O pelagianismo atual. 47. O
gnosticismo deu lugar a outra heresia antiga, que está presente também hoje.
Com o passar do tempo, muitos começaram a reconhecer que não é o conhecimento
que nos torna melhores ou santos, mas a vida que levamos. O problema é que isto
foi subtilmente degenerando, de modo que o mesmo erro dos gnósticos foi
simplesmente transformado, mas não superado. 48. Com efeito, o poder que os
gnósticos atribuíam à inteligência, alguns começaram a atribuí-lo à vontade
humana, ao esforço pessoal. Surgiram, assim, os pelagianos e os semipelagianos.
Já não era a inteligência que ocupava o lugar do mistério e da graça, mas a
vontade. Esquecia-se que «isto não depende daquele que quer nem daquele que se
esfoça por alcançá-lo, mas de Deus que é misericordioso» (Rm 9, 16)
e que Ele «nos amou primeiro» (1 Jo 4, 19). Uma vontade sem humildade. 49.
Quem se conforma a esta mentalidade pelagiana ou semipelagiana, embora fale da
graça de Deus com discursos edulcorados, «no fundo, só confia nas suas próprias
forças e sente-se superior aos outros por cumprir determinadas normas ou por
ser irredutivelmente fiel a um certo estilo católico».[46] Quando
alguns deles se dirigem aos frágeis, dizendo-lhes que se pode tudo com a graça
de Deus, basicamente costumam transmitir a ideia de que tudo se pode com a
vontade humana, como se esta fosse algo puro, perfeito, omnipotente, a que se
acrescenta a graça. Pretende-se ignorar que «nem todos podem tudo»,[47] e
que, nesta vida, as fragilidades humanas não são curadas, completamente e duma
vez por todas, pela graça.[48] Em
todo o caso, como ensinava Santo Agostinho, Deus convida-te a fazer o que podes
e «a pedir o que não podes»;[49] ou
então a dizer humildemente ao Senhor: «dai-me o que me ordenais e ordenai-me o
que quiserdes».[50].
50. No fundo, a falta dum reconhecimento sincero, pesaroso e orante dos nossos
limites é que impede a graça de atuar melhor em nós, pois não lhe deixa espaço
para provocar aquele bem possível que se integra num caminho sincero e real de
crescimento.[51] A
graça, precisamente porque supõe a nossa natureza, não nos faz improvisamente
super-homens. Pretendê-lo seria confiar demasiado em nós próprios. Neste caso,
por trás da ortodoxia, as nossas atitudes podem não corresponder ao que
afirmamos sobre a necessidade da graça e, na prática, acabamos por confiar
pouco nela. Com efeito, se não reconhecemos a nossa realidade concreta e
limitada, não poderemos ver os passos reais e possíveis que o Senhor nos pede
em cada momento, depois de nos ter atraído e tornado idóneos com o seu dom. A
graça atua historicamente e, em geral, toma-nos e transforma-nos de forma
progressiva.[52] Por
isso, se recusarmos esta modalidade histórica e progressiva, de facto podemos
chegar a negá-la e bloqueá-la, embora a exaltemos com as nossas palavras. 51.
Quando Deus Se dirige a Abraão, diz-lhe: «Eu sou o Deus supremo. Anda na minha
presença e sê perfeito» (Gn 17, 1). Para poder ser perfeitos, como
é do seu agrado, precisamos de viver humildemente na presença d’Ele, envolvidos
pela sua glória; necessitamos de andar em união com Ele, reconhecendo o seu
amor constante na nossa vida. Há que perder o medo desta presença que só nos
pode fazer bem. É o Pai que nos deu vida e nos ama tanto. Uma vez que O
aceitamos e deixamos de pensar a nossa existência sem Ele, desaparece a
angústia da solidão (cf. Sal 139/138, 7). E, se deixarmos de
pôr Deus à distância e vivermos na sua presença, poderemos permitir-Lhe que
examine os nossos corações para ver se seguem pelo reto caminho (cf. Sal 139/138,
23-24). Assim conheceremos a vontade perfeita e agradável ao Senhor (cf. Rm 12,
1-2) e deixaremos que Ele nos molde como um oleiro (cf. Is 29,
16). Dissemos tantas vezes que Deus habita em nós, mas é melhor dizer que nós
habitamos n’Ele, que Ele nos possibilita viver na sua luz e no seu amor. Ele é
o nosso templo: «Uma só coisa (…) ardentemente desejo: é habitar na casa do
Senhor todos os dias da minha vida» (Sal 27/26, 4). «Um dia em teus
átrios vale por mil» (Sal 84/83, 11). N’Ele, somos santificados. Um ensinamento da Igreja
frequentemente esquecido. 52. A Igreja ensinou repetidamente que não
somos justificados pelas nossas obras ou pelos nossos esforços, mas pela graça
do Senhor que toma a iniciativa. Os Padres da Igreja, já antes de Santo
Agostinho, expressavam com clareza esta convicção primária. Dizia São João
Crisóstomo que Deus derrama em nós a própria fonte de todos os dons, «antes de
termos entrado no combate».[53] São
Basílio Magno observava que o fiel se gloria apenas em Deus, porque «reconhece
estar privado da verdadeira justiça e que é justificado somente por meio da fé
em Cristo».[54].
53. O II Sínodo de Orange ensinou, com firme autoridade, que nenhum ser humano
pode exigir, merecer ou comprar o dom da graça divina, e que toda a cooperação
com ela é dom prévio da mesma graça: «até o desejo de ser puro se realiza em
nós por infusão do Espírito Santo e com sua ação sobre nós».[55] Sucessivamente
o Concílio de Trento, mesmo quando destacou a importância da nossa cooperação
para o crescimento espiritual, reafirmou tal ensinamento dogmático: «Afirma-se
que somos justificados gratuitamente, porque nada do que precede a
justificação, quer a fé, quer as obras, merece a própria graça da justificação;
porque, se é graça, então não é pelas obras, caso contrário, a graça já não
seria graça (Rm 11, 6)».[56].
54. Também o Catecismo da Igreja Católica nos lembra
que o dom da graça «ultrapassa as capacidades da inteligência e as forças da
vontade humana»[57] e
que, «em relação a Deus, não há, da parte do homem, mérito no sentido dum
direito estrito. Entre Ele e nós, a desigualdade é sem medida».[58] A
sua amizade supera-nos infinitamente, não pode ser comprada por nós com as
nossas obras e só pode ser um dom da sua iniciativa de amor. Isto convida-nos a
viver com jubilosa gratidão por este dom que nunca mereceremos, uma vez que,
«depois duma pessoa já possuir a graça, não pode a graça já recebida cair sob a
alçada do mérito».[59] Os
santos evitam de pôr a confiança nas suas ações: «Ao anoitecer desta vida,
aparecerei diante de Vós com as mãos vazias, pois não Vos peço, Senhor, que
conteis as minhas obras. Todas as nossas justiças têm manchas aos vossos
olhos».[60].
55. Esta é uma das grandes convicções definitivamente adquiridas pela Igreja e
está tão claramente expressa na Palavra de Deus que fica fora de qualquer
discussão. Esta verdade, tal como o supremo mandamento do amor, deveria
caraterizar o nosso estilo de vida, porque bebe do coração do Evangelho e
convida-nos não só a aceitá-la com a mente, mas também a transformá-la numa
alegria contagiosa. Mas não poderemos celebrar com gratidão o dom gratuito da
amizade com o Senhor, se não reconhecermos que a própria existência terrena e
as nossas capacidades naturais são um dom. Precisamos de «reconhecer
alegremente que a nossa realidade é fruto dum dom, e aceitar também a nossa
liberdade como graça. Isto é difícil hoje, num mundo que julga possuir algo por
si mesmo, fruto da sua própria originalidade e liberdade».[61].
56. Só a partir do dom de Deus, livremente acolhido e humildemente recebido, é
que podemos cooperar com os nossos esforços para nos deixarmos transformar cada
vez mais.[62] A
primeira coisa é pertencer a Deus. Trata-se de nos oferecermos a Ele que nos
antecipa, de Lhe oferecermos as nossas capacidades, o nosso esforço, a nossa
luta contra o mal e a nossa criatividade, para que o seu dom gratuito cresça e
se desenvolva em nós: «por isso, vos exorto, irmãos, pela misericórdia de Deus,
a que ofereçais os vossos corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus»
(Rm 12, 1). Aliás, a Igreja sempre ensinou que só a caridade torna
possível o crescimento na vida da graça, porque, «se não tiver amor, nada sou»
(1 Cor 13, 2). Os novos pelagianos.
57. Ainda há cristãos que insistem em seguir outro caminho: o da justificação
pelas suas próprias forças, o da adoração da vontade humana e da própria
capacidade, que se traduz numa auto complacência egocêntrica e elitista,
desprovida do verdadeiro amor. Manifesta-se em muitas atitudes aparentemente
diferentes entre si: a obsessão pela lei, o fascínio de exibir conquistas
sociais e políticas, a ostentação no cuidado da liturgia, da doutrina e do
prestígio da Igreja, a vanglória ligada à gestão de assuntos práticos, a
atração pelas dinâmicas de autoajuda e realização autorreferencial. É nisto que
alguns cristãos gastam as suas energias e o seu tempo, em vez de se deixarem
guiar pelo Espírito no caminho do amor, apaixonarem-se por comunicar a beleza e
a alegria do Evangelho e procurarem os afastados nessas imensas multidões
sedentas de Cristo.[63]
58. Muitas vezes, contra o impulso do Espírito, a vida da Igreja transforma-se
numa peça de museu ou numa propriedade de poucos. Verifica-se isto quando
alguns grupos cristãos dão excessiva importância à observância de certas normas
próprias, costumes ou estilos. Assim se habituam a reduzir e manietar o
Evangelho, despojando-o da sua simplicidade cativante e do seu sabor. É talvez
uma forma subtil de pelagianismo, porque parece submeter a vida da graça a
certas estruturas humanas. Isto diz respeito a grupos, movimentos e
comunidades, e explica por que tantas vezes começam com uma vida intensa no
Espírito, mas depressa acabam fossilizados. (...) ou corruptos. 59. Sem nos
darmos conta, pelo facto de pensar que tudo depende do esforço humano
canalizado através de normas e estruturas eclesiais, complicamos o Evangelho e
tornamo-nos escravos dum esquema que deixa poucas aberturas para que a graça
atue. São Tomás de Aquino lembrava-nos que se deve exigir, com moderação, os
preceitos acrescentados ao Evangelho pela Igreja, «para não tornar a vida
pesada aos fiéis, [porque assim] se transformaria a nossa religião numa
escravidão».[64] O resumo da Lei. 60. Para evitar
isso, é bom recordar frequentemente que existe uma hierarquia das virtudes, que
nos convida a buscar o essencial. A primazia pertence às virtudes teologais,
que têm Deus como objeto e motivo. E, no centro, está a caridade. São Paulo diz
que o que conta verdadeiramente é «a fé que atua pelo amor» (Gal 5,
6). Somos chamados a cuidar solicitamente da caridade: «quem ama o próximo
cumpre plenamente a Lei. (...) Assim, é no amor que está o pleno cumprimento da
lei» (Rm 13, 8.10). «É que toda a Lei se resume neste único
preceito: “Ama o teu próximo como a ti mesmo”» (Gal 5, 14). 61. Por
outras palavras, no meio da densa selva de preceitos e prescrições, Jesus abre
uma brecha que permite vislumbrar dois rostos: o do Pai e o do irmão. Não nos
dá mais duas fórmulas ou dois preceitos; entrega-nos dois rostos, ou melhor, um
só: o de Deus que se reflete em muitos, porque em cada irmão, especialmente no
mais pequeno, frágil, inerme e necessitado, está presente a própria imagem de
Deus. De facto, será com os descartados desta humanidade vulnerável que, no fim
dos tempos, o Senhor plasmará a sua última obra de arte. Pois, «o que é que
resta? O que é que tem valor na vida? Quais são as riquezas que não desaparecem?
Seguramente duas: o Senhor e o próximo. Estas duas riquezas não desaparecem».[65]
62. Que o Senhor liberte a Igreja das novas formas de gnosticismo e
pelagianismo que a complicam e detêm no seu caminho para a santidade! Estes
desvios manifestam-se de formas diferentes, segundo o temperamento e as
caraterísticas próprias. Por isso, exorto cada um a questionar-se e a discernir
diante de Deus a maneira como possam estar a manifestar-se na sua vida. Capítulo III. À LUZ DO MESTRE. 63.
Sobre a essência da santidade, podem haver muitas teorias, abundantes
explicações e distinções. Uma reflexão do género poderia ser útil, mas não há
nada de mais esclarecedor do que voltar às palavras de Jesus e recolher o seu
modo de transmitir a verdade. Jesus explicou, com toda a simplicidade, o que é
ser santo; fê-lo quando nos deixou as bem-aventuranças (cf. Mt 5,
3-12; Lc 6, 20-23). Estas são como que o bilhete de identidade
do cristão. Assim, se um de nós se questionar sobre «como fazer para chegar a
ser um bom cristão», a resposta é simples: é necessário fazer – cada qual a seu
modo – aquilo que Jesus disse no sermão das bem-aventuranças.[66] Nelas
está delineado o rosto do Mestre, que somos chamados a deixar transparecer no
dia-a-dia da nossa vida. 64. A palavra «feliz» ou «bem-aventurado» torna-se
sinónimo de «santo», porque expressa que a pessoa fiel a Deus e que vive a sua
Palavra alcança, na doação de si mesma, a verdadeira felicidade. Contracorrente. 65. Estas palavras de
Jesus, não obstante possam até parecer poéticas, estão decididamente
contracorrente ao que é habitual, àquilo que se faz na sociedade; e, embora
esta mensagem de Jesus nos fascine, na realidade o mundo conduz-nos para outro
estilo de vida. As bem-aventuranças não são, absolutamente, um compromisso leve
ou superficial; pelo contrário, só as podemos viver se o Espírito Santo nos
permear com toda a sua força e nos libertar da fraqueza do egoísmo, da
preguiça, do orgulho. 66. Voltemos a escutar Jesus, com todo o amor e respeito
que o Mestre merece. Permitamos-Lhe que nos fustigue com as suas palavras, que
nos desafie, que nos chame a uma mudança real de vida. Caso contrário, a
santidade não passará de palavras. Recordemos agora as diferentes
bem-aventuranças, na versão do Evangelho de Mateus (cf. 5, 3-12).[67] «Felizes os pobres em
espírito, porque deles é o Reino do Céu» 67. O Evangelho convida-nos a
reconhecer a verdade do nosso coração, para ver onde colocamos a segurança da
nossa vida. Normalmente, o rico sente-se seguro com as suas riquezas e, quando
estas estão em risco, pensa que se desmorona todo o sentido da sua vida na
terra. O próprio Jesus no-lo disse na parábola do rico insensato, falando
daquele homem seguro de si, que – como um insensato – não pensava que poderia
morrer naquele mesmo dia (cf. Lc 12, 16-21). 68. As riquezas
não te dão segurança alguma. Mais ainda: quando o coração se sente rico, fica
tão satisfeito de si mesmo que não tem espaço para a Palavra de Deus, para amar
os irmãos, nem para gozar das coisas mais importantes da vida. Deste modo
priva-se dos bens maiores. Por isso, Jesus chama felizes os pobres em espírito,
que têm o coração pobre, onde pode entrar o Senhor com a sua incessante
novidade. 69. Esta pobreza de espírito está intimamente ligada à «santa
indiferença» proposta por Santo Inácio de Loyola, na qual alcançamos uma
estupenda liberdade interior: «É necessário tornar-nos indiferentes face a
todas as coisas criadas (em tudo aquilo que seja permitido à liberdade do nosso
livre arbítrio, e não lhe esteja proibido), de tal modo que, por nós mesmos,
não queiramos mais a saúde do que a doença, mais a riqueza do que a pobreza,
mais a honra do que a desonra, mais uma vida longa do que curta, e assim em
tudo o resto».[68]
70. Lucas não fala duma pobreza «em espírito», mas simplesmente de ser «pobre»
(cf. Lc 6, 20), convidando-nos assim a uma vida também austera
e essencial. Desta forma, chama-nos a compartilhar a vida dos mais
necessitados, a vida que levaram os Apóstolos e, em última análise, a
configurar-nos a Jesus, que, «sendo rico, Se fez pobre» (2 Cor 8,
9). Ser pobre no coração: isto é santidade. «Felizes os mansos, porque
possuirão a terra» 71. É uma frase forte, neste mundo que, desde o
início, é um lugar de inimizade, onde se litiga por todo o lado, onde há ódio
em toda a parte, onde constantemente classificamos os outros pelas suas ideias,
os seus costumes e até a sua forma de falar ou vestir. Em suma, é o reino do
orgulho e da vaidade, onde cada um se julga no direito de elevar-se acima dos
outros. Embora pareça impossível, Jesus propõe outro estilo: a mansidão. É o
que praticava com os seus discípulos, e contemplamos na sua entrada em
Jerusalém: «aí vem o teu Rei, ao teu encontro, manso e montado num jumentinho»
(Mt 21, 5; cf. Zc 9, 9). 72. Disse Ele: «Aprendei
de Mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para o
vosso espírito» (Mt 11, 29). Se vivemos tensos, arrogantes diante
dos outros, acabamos cansados e exaustos. Mas, quando olhamos os seus limites e
defeitos com ternura e mansidão, sem nos sentirmos superiores, podemos dar-lhes
uma mão e evitamos de gastar energias em lamentações inúteis. Para Santa Teresa
de Lisieux, «a caridade perfeita consiste em suportar os defeitos dos outros,
em não se escandalizar com as suas fraquezas».[69]
73. Paulo designa a mansidão como fruto do Espírito Santo (cf. Gal 5,
23). E, se alguma vez nos preocuparem as más ações do irmão, propõe que o
abordemos para corrigi-lo, mas «com espírito de mansidão, [lembrando-nos:] e tu
olha para ti próprio, não estejas também tu a ser tentado» (Gal 6,
1)». Mesmo quando alguém defende a sua fé e as suas convicções, deve fazê-lo
com mansidão (cf. 1 Ped 3, 16), e os próprios adversários
devem ser tratados com mansidão (cf. 2 Tm 2, 25). Na Igreja,
erramos muitas vezes por não ter acolhido este apelo da Palavra divina. 74. A
mansidão é outra expressão da pobreza interior, de quem deposita a sua
confiança apenas em Deus. De facto, na Bíblia, usa-se muitas vezes a mesma
palavra anawin para se referir aos pobres e aos mansos. Alguém
poderia objetar: «Mas, se eu for assim manso, pensarão que sou insensato,
estúpido ou frágil». Talvez seja assim, mas deixemos que os outros pensem isso.
É melhor sermos sempre mansos, porque assim se realizarão as nossas maiores
aspirações: os mansos «possuirão a terra», isto é, verão as promessas de Deus
cumpridas na sua vida. Porque os mansos, independentemente do que possam
sugerir as circunstâncias, esperam no Senhor, e aqueles que esperam no Senhor
possuirão a terra e gozarão de imensa paz (cf. Sal 37/36,
9.11). Ao mesmo tempo, o Senhor confia neles: «é nos humildes de coração
contrito que os meus olhos se fixam, pois escutam a minha palavra com respeito»
(Is 66, 2). Reagir com humilde mansidão: isto é santidade. «Felizes os que choram,
porque serão consolados» 75. O mundo propõe-nos o contrário: o
entretenimento, o prazer, a distração, o divertimento. E diz-nos que isto é que
torna boa a vida. O mundano ignora, olha para o lado, quando há problemas de
doença ou aflição na família ou ao seu redor. O mundo não quer chorar: prefere
ignorar as situações dolorosas, cobri-las, escondê-las. Gastam-se muitas
energias para escapar das situações onde está presente o sofrimento, julgando que
é possível dissimular a realidade, onde nunca, nunca, pode faltar a cruz. 76. A
pessoa que, vendo as coisas como realmente estão, se deixa trespassar pela
aflição e chora no seu coração, é capaz de alcançar as profundezas da vida e
ser autenticamente feliz.[70] Esta
pessoa é consolada, mas com a consolação de Jesus e não com a do mundo. Assim pode
ter a coragem de compartilhar o sofrimento alheio, e deixa de fugir das
situações dolorosas. Desta forma, descobre que a vida tem sentido socorrendo o
outro na sua aflição, compreendendo a angústia alheia, aliviando os outros.
Esta pessoa sente que o outro é carne da sua carne, não teme aproximar-se até
tocar a sua ferida, compadece-se até sentir que as distâncias são superadas.
Assim, é possível acolher aquela exortação de São Paulo: «Chorai com os que
choram» (Rm 12, 15). Saber chorar com os outros: isto é santidade. «Felizes os que têm fome e
sede de justiça, porque serão saciados» 77. «Fome e sede» são
experiências muito intensas, porque correspondem a necessidades primárias e têm
a ver com o instinto de sobrevivência. Há pessoas que, com esta mesma intensidade,
aspiram pela justiça e buscam-na com um desejo assim forte. Jesus diz que elas
serão saciadas, porque a justiça, mais cedo ou mais tarde, chega e nós podemos
colaborar para o tornar possível, embora nem sempre vejamos os resultados deste
compromisso. 78. Mas a justiça, que Jesus propõe, não é como a que o mundo
procura, uma justiça muitas vezes manchada por interesses mesquinhos,
manipulada para um lado ou para outro. A realidade mostra-nos como é fácil
entrar nas súcias da corrupção, fazer parte dessa política diária do «dou para
que me deem», onde tudo é negócio. E quantas pessoas sofrem por causa das
injustiças, quantos ficam assistindo, impotentes, como outros se revezam para
repartir o bolo da vida. Alguns desistem de lutar pela verdadeira justiça, e
optam por subir para o carro do vencedor. Isto não tem nada a ver com a fome e
sede de justiça que Jesus louva. 79. Esta justiça começa por se tornar
realidade na vida de cada um, sendo justo nas próprias decisões, e depois
manifesta-se na busca da justiça para os pobres e vulneráveis. É verdade que a
palavra «justiça» pode ser sinónimo de fidelidade à vontade de Deus com toda a
nossa vida, mas, se lhe dermos um sentido muito geral, esquecemo-nos que se
manifesta especialmente na justiça com os inermes: «procurai o que é justo,
socorrei os oprimidos, fazei justiça aos órfãos, defendei as viúvas» (Is 1,
17). Buscar a justiça com fome e sede: isto é santidade. «Felizes os
misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» 80. A misericórdia tem
dois aspetos: é dar, ajudar, servir os outros, mas também perdoar, compreender.
Mateus resume-o numa regra de ouro: «o que quiserdes que vos façam os homens,
fazei-o também a eles» (7, 12). O Catecismo lembra-nos que esta lei se deve
aplicar «a todos os casos»,[71] especialmente
quando alguém «se vê confrontado com situações que tornam o juízo moral menos
seguro e a decisão difícil».[72]
81. Dar e perdoar é tentar reproduzir na nossa vida um pequeno reflexo da
perfeição de Deus, que dá e perdoa superabundantemente. Por esta razão, no
Evangelho de Lucas, já não encontramos «sede perfeitos» (Mt 5, 48),
mas «sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso. Não julgueis e não
sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis
perdoados. Dai e ser-vos-á dado» (6, 36-38). E depois Lucas acrescenta algo que
não deveríamos transcurar: «a medida que usardes com os outros será usada
convosco» (6, 38). A medida que usarmos para compreender e perdoar será
aplicada a nós para nos perdoar. A medida que aplicarmos para dar, será
aplicada a nós no céu para nos recompensar. Não nos convém esquecê-lo. 82.
Jesus não diz «felizes os que planeiam vingança», mas chama felizes aqueles que
perdoam e o fazem «setenta vezes sete» (Mt 18, 22). É necessário
pensar que todos nós somos uma multidão de perdoados. Todos nós fomos olhados
com compaixão divina. Se nos aproximarmos sinceramente do Senhor e ouvirmos com
atenção, possivelmente uma vez ou outra escutaremos esta repreensão: «não
devias também ter piedade do teu companheiro como Eu tive de ti?» (Mt 18,
33). Olhar e agir com misericórdia: isto é santidade. «Felizes os puros de
coração, porque verão a Deus» 83. Esta bem-aventurança diz respeito a
quem tem um coração simples, puro, sem imundície, pois um coração que sabe amar
não deixa entrar na sua vida algo que atente contra esse amor, algo que o
enfraqueça ou coloque em risco. Na Bíblia, o coração significa as nossas
verdadeiras intenções, o que realmente buscamos e desejamos, para além do que
aparentamos: «O homem vê as aparências, mas o Senhor olha o coração» (1 Sam 16,
7). Ele procura falar-nos ao coração (cf. Os 2, 16) e nele
deseja gravar a sua Lei (cf. Jer 31, 33). Em última análise,
quer dar-nos um coração novo (cf. Ez 36, 26). 84. «Vela com
todo o cuidado sobre o teu coração» (Prv 4, 23). Nada de manchado
pela falsidade tem valor real para o Senhor. Ele «foge da duplicidade,
afasta-Se dos pensamentos insensatos» (Sab 1, 5). O Pai, que «vê no
oculto» (Mt 6, 6), reconhece o que não é limpo, ou seja, o que não
é sincero, mas só casca e aparência; e de igual modo também o Filho sabe o que
há em cada ser humano (cf. Jo 2, 25). www.vatican.va. Abraço. Davi
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