Confucionismo.
Texto de Jacque Gernet (1921-2018). IV. OS PRINCÍPIOS CONFUCIONISTAS DA
IDEOLOGIA CHINESA ATUAL. Enquanto que o ensino político visa a formação de um
monarca absoluto, que controla o povo, já o ensino ético tem a família como
centro de toda a sociedade, refletindo-se as relações familiares em toda a
sociedade. Trata-se da noção de Estado-família, em que o soberano ou presidente
deve velar pelo bem-estar do povo. Ora, quando o governo se faz pela virtude e
pelas qualidades do governante, dá-se uma maior importância às relações
pessoais, o que se verifica nos atuais países de influência confucionista. O
principal objetivo do governante não é agir diretamente sobre o povo, mas
suscitar a sua ação, pelo comportamento conforme às tradições e aos ritos. A
ação política é, como tal, dominada pela procura da harmonia social e pelo
consenso. Num governo em que as relações pessoais assumem um papel de destaque,
as noções de confiança e de face adquirem uma grande importância, para além das
já citadas virtudes confucionistas, com vista a um ideal de dignidade humana.
Finalmente, o ensino intelectual visa aprofundar os conhecimentos e pesquisar a
verdade. "O mandarim deve o seu poder não ao seu nascimento, mas à sua
educação que lhe permite agir de acordo com as leis cósmicas universais."
52 Trata-se da instrução à qual Confúcio reservou um lugar de destaque na sua
filosofia e que é uma das chaves da modernização. Para além destes aspectos, há
ainda a questão ambiental. A rápida modernização sob o mote “Paz e
Desenvolvimento” (和平与发展) tem efeitos negativos sobre o ambiente. No entanto,
sublinha o confucionismo que o Homem e a Natureza são um, não se podendo
separar. Tal como refere Tang Yijie, “para se resolver os problemas humanos há
que considerar a natureza, e para se resolver os problemas da natureza, há que
considerar os problemas humanos. Não se pode considerá-los separadamente. (…)
Se não se considerar, pode ser muito perigoso, o século XXII pode
destruir-se.”53 Trata-se da União entre o Céu (天), a Terra (地) e
o Homem (人). O CONFUCIONISMO NA POLÍTICA INTERNA CHINESA ACTUAL
Apesar deste bem-estar geral, as reformas de Deng também provocaram alguns
problemas. A prosperidade em que vive a China deu origem ao aparecimento dos
chamados "novos ricos", novas elites empresariais que se orientam por
um diferente conjunto de valores morais. Como o seu objetivo principal se
tornou o lucro, agravou-se o fenómeno da corrupção. a adoptar, se os atrativos
valores ocidentais que estão “na moda” ou os velhos valores chineses da era dos
pais e avós. Tendo em conta estas Por outro lado, o cidadão comum (老百姓),
especialmente entre as camadas mais jovens da sociedade, padecem de uma certa
desorientação em relação aos valores preocupações, tem o governo chinês
manifestado intenções de reavivar os valores tradicionais, nomeadamente os
princípios confucionistas como forma de promover a estabilidade da sociedade, e
mesmo do próprio governo. A guisa de exemplo poder-se-á dizer que já desde a
década de 80, Jiang Zemin vinha defendendo que Confúcio era um dos maiores
pensadores chineses, pelo que se devia estudar os seus princípios. Na
Assembleia Nacional Popular de 1995, Jiang Zemin apelou ao renascimento moral e
ético. Zemin tem sublinhado a civilização espiritual como motivo da nova
campanha ideológica, como forma de luta contra a deterioração moral e ética e
da desordem social de que a China tem sido alvo. Na célebre “Teoria das Três
Representações” (三个代表) apresentada no Discurso de Jiang Zemin no 80.º
Aniversário do PCC, em julho de 2001, à segunda destas representações refere-se
exatamente à promoção da cultura avançada chinesa (代表中国先进 文化).
Ainda que este conceito se refira primordialmente ao facto de que os princípios
e políticas adoptadas pelo Partido devam refletir os requisitos da cultura
científica avançada em direção à modernidade, também refere que se deve ter em
conta as qualidades culturais e ética de toda a nação. Além disso, no texto
refere-se que “no que concerne ao rico legado cultural deixado na História da
China ao longo de muitos milhares de anos, devemos selecionar a essência e
descartar o excedente, e seguir em frente desenvolvendo-a de acordo com o
espírito dos tempos para que o passado sirva o presente” Tal como defendem
alguns autores, assiste-se atualmente à política da “herança crítica” do
confucionismo, isto é, “eliminam-se os elementos excessivos do confucionismo
enquanto, por outro lado, se escolhem alguns princípios confucionistas para
educar os quadros e o povo.” Por outro lado, a terceira representação acentua
que é papel do PCC representar os interesses da maioria do povo chinês, o que
está em completo acordo com o princípio confucionista de que o governo deve
procurar em primeiro lugar satisfazer as necessidades do povo, e depois
educá-lo. Como tal, os dois princípios estão em completo acordo. Mais
recentemente, com o aparecimento da Epidemia Atípica, o presidente chinês Hu
Jintao (胡锦涛), apresentou como formas de controlo da doença:
promoção da tecnologia avançada e orgulho do espírito cultural tradicional
chinês da solidariedade, defendendo que em conjunto se poderá vencer as
dificuldades. Reconhecendo as múltiplas vantagens que representa a ética
confucionista em vista de todas as rápidas mudanças características da
modernização, resolveu o governo chinês, à semelhança do que vem acontecendo em
Singapura, desenvolver esforços no sentido de reabilitar a imagem do Grande
Mestre, devido aos ataques de que foi alvo durante a Revolução Cultural, assim
como promover os estudos da sua doutrina. Esta atitude insere-se num ambiente
geral de “febre pela cultura tradicional” (guoxue re, 国学热 ) que apareceu
na China na década de 80 e que se tem acentuado nos últimos anos, caracterizada
pela popularização da cultura tradicional, procurando selecionar os aspectos da
cultura tradicional que são úteis para as exigências da sociedade moderna. “Em
22 de Setembro de 1984 comemorou-se oficialmente na República Popular da China
o 2535º aniversário de Confúcio, venerado naquele País ao longo de 2500 anos,
como Professor de Dez Mil Gerações. A celebração decorreu no seu distrito natal
em Qufu, na Província de Shandong. Nesta data foi inaugurada a estátua
restaurada de Confúcio e também o próprio templo ancestral que ali existe os
quais durante a Revolução Cultural tinham sido bastante danificados. O palacete
e o cemitério da família Kong, que ocupam mais de 200 hectares, foram, também,
abertos ao público e visitados por muitos chineses e turistas estrangeiros”
Desde a década de 80, o governo chinês tem apoiado a criação de Associações e
Centros de Estudo dedicadas ao estudo e divulgação da filosofia confucionista.
Entre as mais relevantes conta-se a Fundação de Confúcio (中国孔子基金会),
em Jinan (济南), Província de Shandong (山东), a Associação Confucionista Chinesa (中华孔子学会) e a
Associação Confucionista Internacional (国际儒家联合会), ambas
em Beijing (北京). A Associação mais antiga é a Fundação de Confúcio (中国孔子基金会)
de Shandong que foi criada em setembro de 1984 em Qufu (曲阜),
a cidade-natal de Confúcio, sendo mais tarde, em 1996, movida a para Jinan, a
capital da província de Shandong. Estabelecida sob a liderança do intelectual
Gu Mu (谷牧), de acordo com os estatutos, a Fundação de Confúcio
tem como objetivos: estudar, investigar, divulgar e desenvolver o pensamento de
Confúcio e da escola confucionista e a cultura tradicional chinesa; contribuir
para a construção de uma civilização com o espírito do socialismo de
características chinesas; promover a reunião de todos os chineses, que se
encontram dentro e fora da China, assim como o intercâmbio cultural. 58 De
acordo com estes objetivos, a Associação tem desenvolvido diversas atividades como
organização de “Reuniões do saber” (学术会议) sobre Confúcio e a sua filosofia, entre as quais se
destacam as reuniões de 1989, 1994 e 1999, onde se comemoraram o 2540.º, o
2545.º e o 2550.º Aniversário sobre a morte de Confúcio. Esta Fundação, que
depende de fundos públicos nacionais e também estrangeiros, tem também
publicado livros e revistas, entre os quais se destaca a revista “Estudos sobre
Confúcio” (研究孔子) publicada desde 2000 com uma regularidade
quinquenal. A Associação Confucionista Chinesa ( 中华孔子学会
) é outra das mais antigas Associações
existentes na China, dedicadas ao estudo e investigação da filosofia
confucionista. Anteriormente era somente um Departamento de Estudos sobre
Confúcio (中华孔子研究所) da Associação Chinesa de História Antiga (中国老年历史学会). Ora, dada a sua importância, em junho de 1984, o
governo chinês criou esta Associação, com o objectivo de desenvolver o estudo e
investigação de Confúcio e da sua Escola, assim como da cultura tradicional
chinesa. Constituída por importantes estudiosos do confucionismo de
instituições como a Academia Chinesa das Ciências Sociais (中国社会科学院),
a Universidade de Pequim (北京大学) e a Universidade Qinghua (清华大学), entre
outras, esta Associação tem procurado imprimir um cunho científico aos seus
estudos do confucionismo, através da atitude de “busca da verdade dos fatos” (实事求是), orientando-se pelo princípio “que Cem Flores
desabrochem, que Cem Escolas Rivalizem” (百花齐放,百家争鸣) e usando o método de “Sintetizar novas ideias a
partir da cultura” ( 文化综合创新 ). Esta organização tem organizado periodicamente
conferências sobre a relação do confucionismo com os diversos aspectos da
actualidade, nomeadamente a “Conferência Internacional sobre a Relação entre o
Confucionismo e a Modernidade”, em 1992 em Sichuan; a “Conferência Internacional
sobre o Pensamento Confucionista e a Economia de Mercado”, em 1995, em Pinggu,
Beijing; e a “Conferência Internacional sobre o Comerciante Confucionista e o
séc. XXI”, em 1999, em Jining, Shandong. Para além destas conferências e de
algumas publicações, recentemente a Associação Confucionista Chinesa ajudou no
estabelecimento de uma escola dedicada ao ensino da cultura tradicional
chinesa, em Beijing, em Andingmen, juntamente com a administração do Templo de
Confúcio em Beijing e o Departamento de Andingmen. A Escola de Cultura
Tradicional Chinesa de Andingmen (国学启蒙馆) 59, como é chamada, abriu em abril de 2002 no Templo
de Confúcio em Beijing, e fornece um conjunto de aulas em que se pretende
transmitir a cultura tradicional chinesa a crianças dos 4 aos 6 anos. Os atuais
alunos têm aulas um dia por semana (aos sábados) e através de um sistema de
ensino inovador aprendem matérias relacionadas com os clássicos chineses e as
virtudes confucionistas.60 Tal como nos sublinhou Zhang Yiyi, vice-diretora do
Departamento de Planeamento Familiar de Andingmen, “procura-se usar um método
inovador que combina as técnicas de ensino ocidentais para ensinar a cultura
tradicional chinesa. Desta forma se procura preservar a cultura antiga chinesa,
tornando o estudo dos clássicos em algo atrativo”. Os conselheiros são
especialistas na cultura tradicional chinesa, nomeadamente em literatura
clássica, em Ópera de Pequim, Artes Marciais, etc., pois é importante não só
desenvolver o conhecimento, mas também a postura, o que marca para a vida
inteira, em resumo trata-se de ajudar a constituir homens de virtude. Trata-se
de “manter a cultura chinesa antiga, por um lado, e de elevar a qualidade do
ensino desde a infância, por outro, contribuindo para a educação de futuros
alunos de grandes universidades como Universidade de Pequim e Universidade
Tsinghua”, segundo palavras de Zhang Yiyi.62 Com o objetivo de promover o
encontro entre os diversos estudiosos nacionais e internacionais do
confucionismo, foi criada, em outubro de 1994, a Associação Confucionista
Internacional (国际儒家联合会), com sede em Beijing. O principal objetivo desta
Associação é promover a investigação do confucionismo através do intercâmbio de
investigadores de diversos países e regiões, dentre os quais Caojian (曹建),
o Secretário da Associação, nos destacou como principais China, Singapura,
Coreia e Japão. No entanto, de entre os cerca de 200 intelectuais que fazem
parte desta Associação, incluem-se também alguns de países ocidentais como
Estados Unidos, Alemanha, França e Grã-Bretanha. A Associação é constituída por
dois Centros de Estudos: o Centro de Estudos do Confucionismo Contemporâneo e o
Centro de Estudos Internacional Tiras de Bambu63, e organiza com uma
regularidade anual, conferências internacionais sobre os mais diversos temas,
assim como publica também regularmente alguns livros e revistas. Para além
destas atividades promovidas pelo governo como forma de desenvolver os estudos
sobre a cultura tradicional chinesa, com especial relevo para a filosofia
confucionista, tem também o executivo chinês colocado em prática princípios
ditos confucionistas na sua administração como forma de resolução de alguns
problemas emergentes. Tal como defendia Jiang Zemin no seu discurso no 80.º
Aniversário do PCC, em relação aos recursos humanos dentro do Partido e do
governo, “devemos aprofundar a reforma do sistema de pessoal como forma de
produzir um contingente de oficiais de alto calibre que são capazes de assumir
responsabilidades. (…) O princípio do recrutamento e promoção através de uma
competição aberta e justa com base no mérito deve ser impulsionado”, Como tal,
conclui-se que os atuais líderes chineses procuram promover aos cargos
oficiais, as pessoas com as qualificações mais adequadas e que estejam
dispostas a assumir as responsabilidades respectivas. Trata-se do princípio
confucionista da “retificação dos nomes”, de colocar o funcionário adequado no
cargo respectivo, com todo o conjunto de tarefas e responsabilidades a que lhe
corresponde. Como forma de selecionar os mais dotados para os cargos
superiores, continua o governo a socorrer-se do sistema de seleção através de
exames para o cargo de funcionário público. Finalmente, no que diz respeito à
ideologia comunista propriamente dita, verifica-se a existência de alguns princípios
comuns à filosofia confucionista. Tal como sistematizaram Guy Kirsch e Klaus
Mackscheidt, “como o confucionismo, o marxismo defende que todas as coisas
estão sujeitas a leis inerentes que definem o que as coisas são e o que deviam
ser, é nossa obrigação desejar o que irá acontecer, liberdade é reconhecer o
que é necessário. (…). Ambos os ensinamentos derivam a sua legitimação de
livros clássicos e todo o discurso concentra-se em estabelecer se um argumento
avançado nas disputas sociais é ortodoxo ou heterodoxo; o único objetivo é
descobrir quem está correto de acordo com os velhos e veneráveis livros e de
acordo com as tradições e hábitos dos antepassados. (…). Ambos confucionismo e
marxismo enfatizam o significado de ordem vertical. Gostaríamos de convida a
audiência a substituir os termos confucionistas pelos marxistas ou comunistas:
príncipe – comité central do partido comunista; rito – prática revolucionária;
conhecimento – consciência proletária; Filho do Céu – cabeça do proletariado;
lei do Céu – dialética da História; tradição – história do movimento
trabalhador; murmúrios do povo – vontade das massas; autoridade do príncipe –
papel de liderança do partido; hierarquia – centralismo democrático. Se
substituíssemos os termos de um pelo outro, os textos poderiam ser lidos sem se
mudar o seu significado em profundidade. No entanto, as semelhanças existentes
entre o confucionismo e o comunismo não se cingem à forma. A nível do conteúdo
destas duas formas de pensar verificam-se também aspectos em comum. Ao adaptar
a ideologia comunista à realidade chinesa, os líderes chineses têm defendido
uma forma diferente de socialismo, trata-se do chamado “socialismo de
características chinesas”. Tal como recentemente defendido por Jiang Zemin no
16.º Congresso do PCC, em nde 2002, a China entra agora na fase da “Sociedade
modestamente acomodada”, em chinês, xiaokang shehui (小康社会), uma fase
intermédia antes de chegar ao fim último da ideologia chinesa, o socialismo.
Ora, é interessante notar que no Livro dos Ritos66, se fala de duas etapas do
desenvolvimento político, em que a xiaokang shehui é uma fase intermédia antes
de chegar ao ideal da “Grande Harmonia”, o datong shehui (大同社会).
Tal como descrito no Livro dos Ritos, numa sociedade modestamente acomodada,
“cada pessoa respeita os seus pais, cada pessoa cuida dos seus filhos. Os bens
armazenados e adquiridos são para si mesmos. O monarca hereditário deve,
através dos ritos, construir muralhas e proteger a cidade. Os ritos devem ser
usados como disciplina social, na relação entre governante e ministros, entre
pais e filhos, entre irmãos mais velhos e irmãos mais novos, entre maridos e
esposas. Através do sistema estabelecido, os campos são delimitados, os mais
dotados são colocados nos cargos oficiais, a indústria é estabelecida, por isso
ainda que hajam intrigas, resultarão em produção, ainda que hajam guerras,
resultarão em vantagem. (…). Se, algum soberano não usar os ritos para
governar, será deposto, o povo vê-lo-á como uma desgraça. Esta é a xiaokang
shehui. Como tal, conclui-se que a descrição feita da que então seria uma
“Sociedade Modestamente Acomodada” inclui que o governante deveria seguir os
ritos, a lei, e prover à satisfação das necessidades do povo, assim como à sua
proteção. Por outro lado, deveria colocar as pessoas mais qualificadas nos
cargos públicos, sempre tendo a noção de governo benevolente em mente, pois se
não o fizesse poderia ser deposto. Atualmente, a noção de xiaokang shehui
adoptada pelo governo chinês também inclui estes princípios gerais,
principalmente no que se refere à satisfação das necessidades básicas da
população e à provisão dos recursos educativos básicos. Tal como elucidou Jiang
Zemin no seu discurso no 16.º Congresso do PCC, os objetivos da “Sociedade
modestamente acomodada” são: desenvolvimento económico, melhoria da democracia
socialista e do sistema legal, promoção dos níveis ideológicos e éticos, assim
como das qualificações científicas e culturais e da saúde de todo o povo,
promoção do desenvolvimento sustentado. No “Livro dos Ritos” é também descrito
o ideal político, que já haveria existido na Antiguidade e que devia ser
restabelecido: “Quando a Grande Via prevalece, o mundo é uma comunidade, os
homens de talento são escolhidos para o governo, a confiança mútua e a amizade
prevalece entre os homens. Os homens não amam somente os seus pais, nem cuidam
somente das suas crianças, mas também dos outros. Uma adequada provisão é
fornecida para os mais idosos até à sua morte, emprego para os capazes e meios
para criar os mais jovens. Bondade e compaixão são demonstradas para com os
viúvos, órfãos, idosos sem filhos e incapacitados, para que todos tenham apoio.
Os homens têm trabalho adequado e as mulheres têm casa. Os homens lutam contra
o desaproveitamento dos recursos naturais, mas também não os exploram somente
para seu próprio benefício. As intrigas são reprimidas e não se desenvolvem.
Não há roubos nem rebeliões, e as portas podem ficar abertas. Esta é a Grande
Harmonia”. As características aqui descritas como o ideal dos confucionistas,
aproxima-se em muito do ideal utópico de comunismo, nomeadamente
características como a igual distribuição da riqueza, o bem-estar social, a
segurança e a promoção dos recursos humanos, numa sociedade que ao final é uma
comunidade mundial (tian xia wei gong, 天下为公). Como tal,
parece que já a civilização chinesa desde há muito preconizava ideais que mais
tarde haveriam de entrar na política através da ideologia comunista. Talvez por
este motivo, foi esta ideologia de origem estrangeira tão bem aceite pela
sociedade chinesa no século XX. O CONFUCIONISMO COMO BASE DO RENASCIMENTO DO
NACIONALISMO CHINÊS Para além das noções comuns existentes entre a filosofia
confucionista e a ideologia comunista, os princípios confucionistas têm
contribuído para a coesão do povo chinês e mesmo para o desenvolvimento de um
certo nacionalismo entre as suas gentes. E "o novo nacionalismo está a ser
construído, não no contexto das relações entre a maioria han e as outras
minorias, mas no contexto das relações entre a civilização chinesa e as outras
civilizações." Como tal, esse nacionalismo que renasce não coloca frente a
frente as diferentes etnias chinesas, mas une-as sob uma base comum, em defesa
das influências nocivas do exterior. Ora, a origem deste renascimento do
nacionalismo é recente. Tal como referido por Zheng Yongnian, o nacionalismo
surgiu de uma forma progressiva, para promover a cultura e civilização
tradicional chinesa em contraste com os valores ocidentais. O primeiro impulso
veio da invasão de ideias ocidentais de que a China foi palco durante a década
de 80, o que provocou um sentimento de inferioridade em relação à cultura
chinesa. Em início da década de 90, o desenvolvimento económico chinês levou os
intelectuais a acreditar que a China também era capaz, com base nos seus
próprios valores, em face da decadência de algumas potências estrangeiras,
nomeadamente com a dissolução da União Soviética. E no centro desses valores
tradicionais chineses, a base do nacionalismo, está no confucionismo. Tal como
sublinha Samuel Huntington, na sua teoria do "Choque de
Civilizações", o confucionismo é a base do nacionalismo chinês. E ele
chega mesmo a apresentar este nacionalismo como uma ameaça à civilização
ocidental, o que nos parece profundamente exagerado. Este sentimento
nacionalista com base em valores tradicionais está também presente nas
comunidades emigradas, em que sempre se reportam aos outros nacionais que se
encontrem na China ou no estrangeiro, para lhes oferecer o seu apoio. O
confucionismo privilegia as relações pessoais, o que no caso do relacionamento
entre a China e os países do Sudeste asiático é particularmente importante, em
vista das redes de guanxi (关系)que se estabelecem entre os
chineses naquela região. São sobejamente conhecidas as comunidades chinesas no
Sudeste Asiático que, por um lado, não permitem a entrada de desconhecidos,
ditos de outras etnias, mas que em contrapartida promovem os relacionamentos
entre pessoas etnicamente chinesas. Influenciados por estas considerações,
alguns intelectuais chineses chegaram mesmo a afirmar que a civilização
confucionista é superior à ocidental, sendo capaz de trazer paz e harmonia às
nações. Isto porque a civilização confucionista não é religiosa, ao contrário
da ocidental que, por isso, tem sido responsável pelo deflagrar de diversos
conflitos internacionais. A ênfase do confucionismo está relações pessoais,
entre as pessoas, pelo que enquanto as relações entre duas pessoas forem
harmoniosas, a paz reinará em sociedade. Por outro lado, ao contrário das religiões
ocidentais, não se sublinha aqui a crença na salvação, num mundo superior, mas
ensina-se a viver em sociedade. Os princípios confucionistas apresentam o
modelo de como tirar o melhor usufruto de viver em sociedade, no relacionamento
entre pais e filhos, irmãos, amigos e soberano e súbditos. É a lei das cinco
relações de Mêncio (372 AC 289) que se continua enraizada na sociedade chinesa
atual, promovendo a sua harmonia e estabilidade. Atualmente, o povo chinês
continua a respeitar estes princípios, ainda que inconscientemente porque já
faz parte do seu temperamento, os conceitos de benevolência e de piedade
filial, a aprendizagem pela experiência, a justiça, a humildade, o respeito
pelos mais velhos, etc. Todos estes conceitos transmitem uma grande harmonia e
estabilidade à sociedade chinesa. No entanto, estes valores confucionistas não
se cingem às fronteiras políticas da China, nem mesmo às fronteiras étnicas do
seu povo. Valores como o personalismo e o comunitarismo caracterizam a forma de
ser dos povos asiáticos que, com base nessas concepções pretendem constituir
uma forma própria de ser, a chamada “Asian Way”, por contraposição à
perspectiva ocidental. Estas perspectivas são particularmente evidentes em
relação à polémica questão dos direitos humanos, em que estas duas concepções
chocam. Como tal, pode considerar-se o confucionismo o núcleo duro da concepção
asiática, incluindo os países do Nordeste e Sudeste Asiático, numa combinação
mais ou menos consistente, mas ainda muito heterogénea. Há aqui a destacar os
esforços desenvolvidos por Lee Kuan Yew por promover a cultura tradicional e a
ética confucionista como centro de uma visão asiática mais abrangente. Neste
caso seria o confucionismo o centro de uma forma de sentir afeta não só os
chineses política e etnicamente definidos, mas também aos outros povos
asiáticos em geral, por contraposição aos ocidentais. O CONFUCIONISMO NA
POLÍTICA EXTERNA CHINESA ACTUAL As concepções confucionista e comunista não se
tocam somente a nível interno, mas também a nível externo. Ambas nascidas de
uma época de caos e desorganização, tanto a filosofia confucionista como a
atual política externa chinesa preconizam a ordem, a paz e o desenvolvimento. O
Período dos Reinos Combatentes, quando surgiu a filosofia confucionista, era
uma época de grande desordem e conflito, em que os vários reinos se digladiavam
por alargar os seus territórios, aumentar os recursos e conseguir a hegemonia.
Por outro lado, a degradação das condições de vida suscitava descontentamento e
insurreições sociais entre a população. Neste contexto, os confucionistas
enfatizavam a harmonia e defendiam o regresso ao estado de coisas ante, isto é,
à ordem característica da Antiguidade. Sendo a sociedade constituída por
diferentes sujeitos com diferentes personalidades e ambições, deviam os homens
e mesmo os Estados respeitar-se mutuamente, tentar compreender-se e mesmo fazer
algumas concessões quando necessário. Trata-se aqui da Doutrina do Meio (zhong
yong, 中庸), do meio termo, da tentativa de conciliar os
opostos, sem cair para um ou para o outro lado. Diziam os confucionistas que,
se se respeitam os princípios morais, os relacionamentos serão harmoniosos,
caracterizados por cooperação e confiança mútuas. E isto não se aplica somente
às relações sociais, mas também aos sujeitos internacionais, na época, ao
relacionamento entre diferentes reinos, segundo a teoria de Mêncio. Defendia
ele que os indivíduos, assim como os reinos, tinham os seus próprios
interesses, que são diferentes uns dos outros. Se as pessoas forem egoístas e
quiserem concretizar os seus interesses e desejos, às vezes provocam choques
pois não têm em atenção os interesses dos outros. Esta atitude pode resultar em
mal-estar e mesmo conflito, pelo que devem as pessoas assim como o Estados privilegiar
a justiça e retidão (义) em detrimento
do interesse (利). Por isso, “sempre foi posição firme dos
confucionistas oporem-se a guerras para lucros egoístas e advogarem «retidão
sobre os lucros» num esforço para eliminar guerras e conflitos entre blocos e
Estados. A posição reflete a sua esperança para uma pacífica comunidade
internacional, assim como o seu ideal humanitário”. É interessante notar que na
década de 50, Mao Zedong elaborou com o líder indiano um conjunto de princípios
que, a ser respeitados, permitiriam um bom relacionamento entre os diferentes
países com base na coexistência pacífica. E esses cinco princípios eram: -
respeito mútuo pela soberania territorial; - não agressão mútua; - não
interferência nos assuntos internos; - equidade e benefício mútuo; -
coexistência pacífica. Atualmente estes princípios encontram-se sintetizados na
teoria de Deng Xiaoping que advoga uma política externa de paz independente
cujo propósito é a manutenção da paz mundial e o desenvolvimento conjunto. Esta
perspectiva está de acordo com o ponto de vista de Confúcio de que “Conduzindo
os ritos, a harmonia é o princípio mais importante” (Analectos I:12). E essa
harmonia (he wei gui,和为贵) também inclui o respeito das especificidades de cada
um, de acordo com o princípio de “Harmonia na diferença” (he er butong, 和而不同),
o que significa que pode haver trabalho de cooperação harmoniosa mas
respeita-se a diferença. Segundo Confúcio, “O homem de bem estar em harmonia
com outros mas não os segue cegamente, o homem inferior segue os outros
cegamente mas não está em harmonia com eles.” (Analectos XIII:23) Tal como
explica Tang Yijie, “a situação da China e dos Estados Unidos é diferente, mas
podemos viver harmoniosamente, não é necessário entrar em conflito ou guerra”.
Esta tem sido a postura da China a nível internacional com relação a outros
países, especialmente os países vizinhos. Isto porque só neste harmonioso
ambiente internacional será possível realizar o objetivo básico da paz e
desenvolvimento económico (和
平与发展). Além disso, um dos outros princípios da atual
política externa chinesa chama a atenção para a completa unificação da China
sob o mote “um país, dois sistemas” (一国两制). Chama-se aqui a atenção
para a transferência das soberanias de Hong Kong, Macau e quem sabe Taiwan para
a mãe-pátria. Esta ideia pertence já a um antigo princípio chinês de
unificação, a chamada “Grande Unificação” (大一统), presente nos
Anais da Primavera e Outono. Na atualidade, este princípio foi expresso por Mao
Zedong e Deng Xiaoping, e continua a ser incluído como um dos mais importantes
princípios da política externa da atualidade. Por outro lado, a enunciação da
existência de dois sistemas, neste caso económicos, sob uma mesma liderança
política poderá ser facilmente entendido através do princípio confucionista de
“harmonia na diferença”, tal como já havia acontecido ao longo da História da
China em relação a outros sistemas. CONCLUSÃO. O confucionismo é uma teoria
que, tendo surgido num período de fortes convulsões políticas e sociais, só chegou
à categoria de doutrina política pela mão do Imperador Wudi. Contudo, ao longo
da longa História da Civilização Chinesa, estes princípios sempre serviram de
base ao relacionamento entre as pessoas, a nível do núcleo familiar, depois em
sociedade e, numa escala maior, dentro do Estado e mesmo nas relações entre
diferentes Estados. Mesmo apesar dos ataques de que foi alvo, especialmente
durante o período da Revolução Cultural Chinesa, valores como ren, xiao e li
permaneceram inalterados e inabalavelmente como diretores da vida em sociedade.
A adopção da ideologia comunista por diversas regiões de tradição
confucionista, como é o caso da China, do Vietnam e da Coreia do Norte, veio
trazer luz sobre o facto de existirem alguns traços em comum entre esta ideologia
estrangeira e a autóctone filosofia confucionista. A semelhança verifica-se
logo ao analisar o contexto do seu aparecimento, períodos altamente conturbados
em que a liderança havia sido posta em causa. Depois a comparação da própria
história dos principais defensores veio trazer a nu características semelhantes
relacionadas logo à partida como a própria vida, a liderança carismática, a
capacidade de atrair multidões, o método adoptado para comunicar e partilhar
experiências e a forma encontrada para transmitir o seu pensamento. O próprio
formato dos escritos básicos é bastante semelhante. No que se refere ao
conteúdo da doutrina e ideologia propriamente ditas, encontramos muitos pontos
em comum já sobejamente desenvolvidos, entre os quais se destaca os princípios
de reforma agrária adoptada e as preocupações com o povo que governam, num
período inicial de aplicação da ideologia comunista à realidade chinesa. Na
atualidade, com todas as mutações próprias de uma sociedade em permanente
evolução, é interessante verificar o retorno da ênfase concedida pelos
governantes aos valores tradicionais, que neste caso estão inevitavelmente
relacionados com o confucionismo. O aparecimento desta “febre de cultura
tradicional” encontra justificação nos efeitos perversos da modernização, tal
como a instabilidade económica e consequente desorientação social, indefinição
de valores diretivos em face da grande entrada de valores ocidentais, etc. Qual
ciclo vicioso, o confucionismo ajuda a manter a estabilidade do comunismo e o
comunismo promove a expansão do confucionismo. Ao adoptar princípios como a
promoção da educação, escolha dos funcionários mais qualificados para os cargos
públicos, obediência às chefias, os governantes chineses têm adoptado uma
postura confucionista. Disso exemplo é mote adoptado por Deng Xiaoping de
“procurar a verdade dos factos” (实事求是), a que
Jiang Zemin (1926 - ) veio juntar o “adequar-se aos tempos atuais” (与时俱进), o tem
bases profundamente confucionistas, de um conhecimento prático que se atualiza constantemente.
As influências confucionistas na ideologia chinesa atual, adaptada à realidade
chinesa, o dito socialismo de características chinesas, verifica-se não somente
na forma, mas também no conteúdo profundo. Ideias como “Sociedade Comodamente Acomodada”
e “Sociedade Comunitária” encontram raízes no Livro dos Ritos, onde a xiaokang
shehui e a Grande Harmonia são descritas. Trata-se afinal do que dizia
Jean-Louis Rocca, que "o confucionismo representa a única filosofia
política chinesa." Talvez pela existência milenar de ideais políticos
semelhantes, tenha a ideologia comunista sido tão bem aceite pelo povo chinês.
Por isso, é pouco provável que os princípios confucionistas se apaguem da
memória coletiva chinesa e mesmo asiática, como base dos “valores asiáticos”.
No que se refere ao caso da China continental, com uma visão profundamente
utilitária, parece certo que enquanto os princípios confucionistas servirem os
propósitos do governo, no seu rumo de promoção do desenvolvimento económico,
não serão esquecidos e continuarão mesmo a ser promovidos pelas entidades
oficiais, qual harmoniosa inter-relação de yin e yang. Resta-nos saber até
quando esta situação se manterá. Livro Os Princípios Confucionistas da
Ideologia Chinesa Atual. Abraço. Davi
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