Budismo. www.bodisatva.com.br. Kozan Ichikyo “De
mãos vazias entrei no mundo. De pés descalços eu parto. Meu vir, meu ir – Dois
simples eventos”. Texto de Dzongsar Khuyente Rinpoche. COMO OS BUDISTAS SE
PREPARAM PARA A MORTE. Os budistas vêm a morte como uma tremenda oportunidade
espiritual. Mas por quê? Sem
precisarmos fazer absolutamente nada, o processo pelo qual nós naturalmente
passamos vai nos colocar cara a cara com a base da liberação. O grande Chögyam
Trungpa Rinpoche famosamente descreveu essa base como “a bondade básica do ser
humano”. No momento da morte, a mente se separa do corpo e, por uma fração de
segundo, todos nós experienciamos a nudez da nossa natureza de buda, tathagatagarbha. Nessa fração de segundo, se
a base da liberação for apontada e nós a reconhecermos, seremos liberados. Colocando de outra forma: se
você morrer num ambiente favorável, se uma pessoa qualificada estiver presente
nessa hora para apresentá-lo à sua natureza de buda, e se você estiver
receptivo a essa apresentação, poderá ser liberado. Portanto, sim, o momento da
morte oferece uma oportunidade imensa. O ato de ter a base da liberação apontada para você
causa uma impressão poderosa no seu alaya. Assim, mesmo que você não se libere na hora da
morte, na sua próxima vida, quando ouvir palavras como “natureza de buda”, “tathagatagarbha”, “bondade básica do ser
humano” e “base da liberação”, elas soarão familiares ou trarão uma sensação
de déjà vu, — ambos são sinais de que
você é um bom recipiente para a prática de Mahasandhi. Neste exato instante, sua
natureza de buda está envolta pelo casulo do seu corpo físico, dos rótulos e
nomes que você atribui a todos os fenômenos, das distinções que você faz, e dos
seus hábitos, cultura, valores e emoções. O propósito inteiro do Darma do Buda
é nos libertar desse casulo. Mas, para que possamos entender plenamente essa
libertação, precisamos primeiro conhecer a base da liberação. O que é a “base da
liberação”? É mais ou menos
assim: imagine que você está sentado num sofá, numa sala muito pequena. De
repente, tudo o que você quer é dançar. Então, você move o sofá para a sala de
jantar. Você consegue mover o sofá porque, não importa o quão pesado e volumoso
ele seja, ele é móvel, e o espaço para onde você o leva é intrinsecamente
disponível. Explicando de
outra forma, a base da liberação — também chamada de “base do despertar” — é
algo como um estado de sonho acordado. Quando temos um pesadelo, por mais
aterrorizante que seja a experiência, nada acontece de fato porque, no momento
em que acordamos, o pesadelo se dissolve sem deixar nenhum traço. O fato de que
nada acontece é “a base da liberação”, a “natureza de buda”. Assim, se não há nenhuma
aranha na sua cama antes de você deitar, enquanto você dorme e quando você
acorda, por maiores e mais cabeludas que as aranhas do seu pesadelo sejam, não
há nem nunca houve uma aranha na sua cama. Em outras palavras: você não é o seu
sonho. Ninguém experiência sonhos de forma constante, apenas ocasionalmente. E
porque você não é o seu sonho, você pode acordar. Se você o fosse, nunca seria
capaz de despertar. É a “base da liberação” que
faz com que seja possível nós acordarmos da ilusão dessa vida, que se assemelha
ao estado de sono. Para um budista que está morrendo, é extremamente
encorajador saber que nesse momento nos é dada a todos a oportunidade de
acordarmos para a base da liberação. Isso nos lembra de que a hora da morte é a
grande chance que temos para despertar e atingir a liberação. Mas é claro que todos esses
exemplos e argumentos são baseados em conceitos budistas específicos. Sempre me
pergunto se alguém que não é budista e, portanto, não conhece o jargão budista
usado para descrever esses métodos seria capaz de aproveitar a oportunidade que
a morte oferece. Talvez a morte só seja uma oportunidade quando olhada desde
uma perspectiva budista. Corte todos os emaranhados mundanos. Os grandes yogis budistas do
passado, como Milarepa (1052-1135), costumavam ansiar de todo o coração por
morrer em um local solitário e completamente sozinhos. Ninguém para de me perguntar se estou
doente. Ninguém para chorar minha morte. Morrer sozinho neste eremitério. É
tudo o que um yogi pode desejar. Que os homens não saibam da minha
morte. E que os pássaros não vejam meu cadáver
apodrecer. Se eu puder morrer em retiro nessa
montanha. O desejo deste ínfimo ser se realizará. Como um praticante budista,
ainda que você saiba de cor e salteado que a morte é iminente e inescapável,
provavelmente sua agenda estará sempre cheia de reuniões de trabalho e de
eventos sociais. Quaisquer que sejam as suas crenças, haverá sempre umas férias
de verão a serem planejadas, ou um natal em família, ou um jantar de ação de
graças, ou uma festa de aniversário. Contudo, como eu já mencionei, não há
nenhuma garantia de que qualquer um dos seus planos se realizará de fato.
Agarrar-se à crença de que tudo vai dar certo apenas atiça a fogueira da
decepção — lembre-se disto, é importante. A maioria dos problemas mais sérios
da humanidade se origina da esperança cega e de suposições irracionais. Quando a morte for se
aproximando, tente desistir das suas preocupações mundanas. Pare de se
preocupar com a sua família. Pare de fazer planos. Pare de pensar sobre o que
você não conseguiu alcançar e sobre todos os compromissos da sua agenda. Se você for corajoso e se sua situação lhe permitir
fazer escolhas, normalmente é melhor não contar para o seu círculo maior de
amigos e conhecidos que você vai morrer. Sobretudo para as pessoas espirituais,
é importante se distanciar de preocupações mundanas desnecessárias que possam
causar apreensão e ansiedade no momento da morte. Tantrikas devem, é claro,
contar para o guru e para os amigos espirituais próximos que talvez sejam
capazes de oferecer ajuda espiritual durante o processo do morrer e além. Mas
tente se afastar dos seus amigos e familiares mundanos. Filhos (as), irmãos,
irmãs, pais e mães não budistas muito dificilmente compreenderão o aspecto
espiritual da sua morte, e sua dor e pesar poderão facilmente distraí-lo e
preocupá-lo. Os ensinamentos
budistas recomendam que, quando a morte estiver chegando, nós sigamos o exemplo
de um veado ferido e nos retiremos para um local solitário. Entretanto, na
nossa vida mundana de hoje, é muito difícil que nós de fato consigamos escolher
morrer sozinhos. Imagine o escândalo público que a mídia faria, as teorias conspiratórias
e os processos judiciais que se seguiriam à descoberta de um cadáver em
decomposição semanas após a morte! Para a maioria de nós, a total solidão na
morte será impossível. Contudo, o que nós podemos controlar é quem sabe e quem
não sabe sobre a iminência da nossa morte. Confesse. Traga à mente cada um dos
seus pensamentos e atos vergonhosos, egoístas, negativos e confesse-os todos.
Se você for um tantrika, também traga à mente e confesse todos os samaias,
votos e compromissos quebrados. Se puder, faça essa confissão cara a cara, seja
para um lama ou para um (a) irmã (o) do Darma. Se nenhum dos dois for possível,
confesse mentalmente. Em seguida, tome refúgio e renove seus votos de
Bodisatva. Idealmente, tantrikas deveriam pedir a um(a) irmã(o) vajra que segue o mesmo guru para testemunhar a
reafirmação dos seus votos de Bodisatva e Vajrayana. Lembre-se do que
está para acontecer. Comece a recordar
a si mesmo sobre o que acontece no “doloroso bardo do morrer”. Lembre-se de que
os estágios da dissolução podem acontecer todos ao mesmo tempo, um depois do
outro ou numa ordem diferente, dependendo da sua situação particular. Portanto,
é vital que você se familiarize com todos os detalhes antes de morrer. Se você
sabe que vai morrer em breve — se foi diagnosticado com uma doença terminal,
por exemplo — deve imediatamente retornar a estes ensinamentos para que, na
morte, você saiba o que está acontecendo. Tome refúgio e gere bodicita. Para os budistas, a mais simples das respostas à
pergunta “como devo me preparar para a morte?” é: tome refúgio e gere bodicita. O alicerce da sua preparação
para a morte é a tomada de refúgio, que lhe apresentará muito do que você
precisa saber e fazer. Despertando bodicita e “pensando grande”, você
encontrará a coragem e a determinação necessárias para continuar na direção do
seu objetivo de iluminar todos os seres, incluindo você mesmo, aconteça o que
acontecer. A sua disposição de morrer e
renascer bilhões de vezes para seguir ajudando os seres em sofrimento colocará
a morte em perspectiva. Assim, quando você estiver diante da sua própria morte,
ao invés de ela ser um grande obstáculo, vai parecer pouco mais do que um
pequeno revés. À medida que você
for se aproximando cada vez mais da morte, pense sobre e contemple bodicita
tanto quanto puder. Inicialmente, isso vai lhe parecer falso, mas só porque
você não acredita que é capaz de despertar a bodicita genuína. Desde este
estado de espírito, é fácil se sentir decepcionado consigo mesmo e se
considerar uma fraude. Pare de pensar assim! Tudo o que você precisa para gerar
bodicita é o desejo de fazer os outros felizes, e você tem esse desejo. Você é
generoso e bom. Você já fez pessoas felizes muitas vezes ao longo da sua vida,
e fazê-las felizes te alegrou. Lembre-se disso tudo, pois isso prova que você
tem a habilidade e a capacidade de querer fazer todos os seres sencientes
felizes. Confie nessa habilidade. Desperte e desenvolva o desejo de ajudar. É claro que haverá momentos
em que você vai ansiar por dirigir sua BMW numa autoestrada alemã pela última
vez. Ou, ao olhar para aquela mala tão querida, talvez você deseje
profundamente visitar a Índia antes de morrer. Ou quem sabe você sinta vontade
de viver o suficiente para ver sua sobrinha linda e gordinha ou seu sobrinho
magrelo se casar. Nessas horas, é importante contemplar a bodicita absoluta. Bodicita absoluta.
Será difícil
pensar sobre a bodicita absoluta quando você estiver morrendo e na hora da
morte. Por isso, contemple-a enquanto ainda está vivo. Pense: A vida é uma projeção, a vida é uma
miragem. A morte é uma projeção, a morte é uma ilusão. O nascimento é uma projeção, o
nascimento é um sonho. A própria existência é uma projeção, esta existência é
um sonho. Até mesmo o sabor do café é uma
projeção, até mesmo o café é uma ilusão. Lembre-se da natureza ilusória do samsara, por mais
artificial ou falso que isso pareça — ideias costumam soar falsas até que a
gente se acostume a elas. Esse fingimento é a melhor preparação para o momento
da morte. E quando a morte chegar, você realmente vai precisar convocar toda a
sua coragem. Recordar que a
vida é tão ilusória quanto um sonho ajuda a fazer com que vida e morte pareçam
pouco mais do que um pesadelo. Morte e vida são ilusões, mas isto não significa
que elas não existam. Café tem sabor de café, não de suco de laranja; ouro é
ouro, não é latão. Aceitar que vida e morte são ilusões é reconhecer que tudo o
que nós vemos e sentimos é uma projeção humana. Café não é café para um
besouro; suco de laranja não é suco de laranja para um camelo; ouro não tem
valor para um cachorro. Algumas projeções parecem valiosas enquanto outras
parecem inúteis, e você deve distinguir entre as duas com base nos valores que aprende
através de projeções humanas. Quando você finalmente acordar para a iluminação,
perceberá que tudo o que experienciou ao longo de trilhões de vidas foi apenas
um sonho. É como derramar água fria sobre água fervente. Este tipo de
contemplação ajuda. Foque na sua prática espiritual. Se você tiver a sorte de
saber que irá, quase certamente, morrer dentro de um ano, um mês ou uma semana,
então é claro que deve se concentrar na sua própria prática. Foque nas práticas
mais fáceis porque você já vai morrer: não terá tempo de aprender uma nova
filosofia ou de se acostumar a uma nova técnica, ou outra coisa do tipo. Para
você, a prática mais importante, e que também é a mais fácil e a mais
compatível com todos os seres, é se render ao Buda, ao Darma e à Sanga tomando
refúgio e, se for um praticante Mahayana, gerar bodicita. Se envolva de pleno
coração com estas práticas e faça preces de aspiração. Se você for um tantrika,
ofereça seu corpo na prática de Kusali enquanto ainda estiver vivo. Esta prática é
particularmente boa porque ela se assemelha à prática de transferência da
consciência no momento da morte (phowa). Distribua seus bens mundanos. Falando em termos práticos,
uma vez que você souber que sua morte é iminente e certa, tente garantir que
será feito um bom uso da sua propriedade e de seus pertences. Ofereça o que
quer que você possua aos seres sencientes e à propagação do Darma — mesmo as
menores coisas, como agulhas e linhas. Oferecendo tudo ao Darma, você se torna
destemido. Também é bom fazer oferendas a instituições de caridade, hospitais,
escolas e assim por diante. Acostume-se à ideia de que a morte é iminente. Ainda que você seja
suficientemente atlético e saudável para ganhar do Michael Phelps nos 200
metros borboleta, nunca é cedo para começar a se preparar para a morte. Quando estiver pegando no
sono, tente fazer a prática mencionada na página 47 (do livro Living is Dying, do qual este capítulo foi
extraído). Convença-se a si mesmo de que você vai morrer durante a noite e
anseie por renascer instantaneamente na terra de Amitaba. Quando acordar na
manhã seguinte, lembre-se que toda a existência fenomenal é temporária. Se sonhar, recorde-se de que
o sonho é um bardo. Originalmente,
este capítulo foi escrito especificamente para budistas, mas, na verdade,
qualquer um pode praticar estes métodos: budistas experientes, aqueles que
recém descobriram os ensinamentos do Buda, agnósticos, ateus, aqueles que se
importam com o morrer. Todo mundo. www.bodisatva.com.br.
Abraço. Davi
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